As investigações sobre política, corrupção e crime organizado em cidades de pequeno e médio porte do Brasil, México, Colômbia e Honduras estão na origem dos 139 casos de assassinato de profissionais da mídia registrados pela Repórteres sem Fronteiras (RSF) entre 2011 e 2020, demonstrando os riscos assumidos pelos que se dedicam ao jornalismo investigativo. Metade desses jornalistas relatou ter recebido ameaças por causa de seu trabalho.
Quatro países se destacam como os mais mortíferos para o jornalismo investigativo: 80% dos assassinatos de jornalistas cometidos nesta parte do mundo durante a última década estão concentrados no Brasil, Colômbia, México e Honduras.
Os dados foram computados como parte do projeto “Sob Risco – Análise dos programas de proteção a jornalistas na América Latina”, que conta com o apoio da UNESCO. O programa está avaliando a eficácia dos mecanismos de proteção do jornalismo investigativo nesses quatro países.
Ao final, a RSF apresentará ao poder público de cada país um relatório detalhado com recomendações capazes de contribuir para reverter o quadro de violência.
Na etapa de diagnóstico da situação, a RSF analisou os principais pontos em comum nas execuções de jornalistas na Região, que detém o título de continente com o maior número de profissionais de imprensa mortos por causa de sua profissão em 2020.
A organização não contabilizou nenhum jornalista assassinado no Brasil em 2019 e 2020. Nesse período o México se tornou o pior local para a imprensa. Em 2020, oito profissionais foram vitimados por agressores. Foi o país onde mais jornalistas morreram devido ao seu trabalho.
2015 e 2018, os piores anos
A análise dos dados de 2011 a 2020 foi feita em parceria com a Volt Data Lab. Os dois piores anos da série histórica foram 2015 e 2018.
Metade dos jornalistas assassinados trabalhava como repórter, fotojornalista ou cinegrafista e colaborava com pelo menos um meio de comunicação. A análise dos dados do RSF também revela que 46% cobriam o crime organizado; 39% deles temas políticos e 23% corrupção. Os principais alvos foram os jornalistas de campo que denunciam e criticam peculato e outros atos ilegais em sua região.
Execuções programadas
O termo “alvo” é utilizado no estudo porque em 92% dos casos, as circunstâncias do crime revelam que os agressores atingiram um jornalista que estava na sua mira. Do total de mortes registradas entre 2011 e 2020, apenas 7,2% (10 dos 139 casos) ocorreram durante coberturas de risco, em que o jornalista foi baleado sem necessariamente ser o ‘alvo’.
Embora alguns dos jornalistas tenham sido agredidos enquanto estavam em suas redações ou na frente de seus locais de trabalho, a maioria (58%) sofreu ataques perto de seus escritórios, em casa ou no trajeto entre suas casas e o trabalho.
As circunstâncias em que muitos desses crimes foram cometidos também são frequentemente as mesmas: os agressores estavam seguindo os jornalistas e está claro que sua execução foi planejada por assassinos profissionais, segundo apurou a RSF.
Quanto ao modus operandi, um em cada quatro jornalistas – principalmente no México – foi sequestrado antes de ser executado. Nesses casos específicos, a maioria dos corpos encontrados posteriormente apresentava sinais de tortura.
Alguns foram até mutilados, como Julio Valdivia Rodríguez. Em setembro de 2020, aos 41 anos, foi encontrado sem vida a poucos quilômetros do município onde trabalhava, no estado de Veracruz.
A maioria das vítimas era do sexo masculino e vivia em pequenas cidades
A maioria das vítimas (93%) são homens. No entanto, essa proporção não permite afirmar que as mulheres jornalistas estão mais protegidas, segundo a Repórteres sem Fronteiras. “Na região como um todo, onde 41% dos jornalistas são mulheres , estas também são silenciadas com ameaças violentas e campanhas de assédio, geralmente na Internet, lançadas contra elas e suas famílias, às vezes diretamente pelas autoridades de sua área”, diz a organização.
O estudo da RSF também mostra que os riscos são maiores para o jornalismo investigativo em cidades pequenas: 56% dos profissionais assassinados viviam em municípios com menos de 100.000 habitantes. Pelo menos 54% dos que moravam em municípios com 100.000 a 500.000 habitantes – que poderiam ser considerados cidades de médio porte, no Brasil, México e Colômbia – já haviam recebido ameaças antes de sua execução.
A RSF destaca que os números não confirmame o clichê popular do jornalista investigativo que trabalha para um grande jornal de capital e é assassinado por revelar informações de relevância nacional.
“Pelo contrário: em sua maioria, jornalistas assassinados deliberadamente no Brasil, México, Colômbia e Honduras entre 2011 e 2020 viviam longe de grandes centros urbanos, muitas vezes trabalhavam em situações precárias, para diversos meios de comunicação e cobriam temas que os afetaram diretamente sobre as autoridades e populações locais”, diz o documento.
Programas de proteção mais eficazes são necessários
A RSF sustenta que muitos assassinatos poderiam ter sido evitados, já que pelo menos 45% das vítimas relataram ter recebido ameaças e o fizeram publicamente, seja na mídia para a qual trabalharam, seja a partir de suas contas nas redes sociais ou mesmo diretamente para as forças de segurança das cidades onde residiam.
No entanto, apenas 10 dos 139 jornalistas assassinados – incluindo nenhuma mulher – se beneficiaram das medidas de proteção do Estado. Este número representa 7,2% do total de vítimas e quase 16% das que receberam ameaças.
“Esses dados levam a RSF a se perguntar e querer entender por que as medidas de proteção foram concedidas apenas a uma minoria dos jornalistas assassinados e por que os 10 jornalistas que se beneficiaram dessas medidas de segurança perderam a vida neste período” questiona o relatório.
Embora Brasil, México, Colômbia e Honduras não estejam oficialmente em guerra, esses números são especialmente preocupantes, salienta a RSF. No final de 2020, o Balanço Anual da RSF revelou que o México era o país mais perigoso do mundo para a profissão, com pelo menos oito casos de jornalistas executados, às vezes de forma selvagem, por investigar as ligações entre o crime organizado e a classe política.
Violência estrutural
Para a RSF, o asssassinato de jornalisats, considerado a forma mais extrema de censura, é apenas a parte mais visível da violência contra a imprensa.
“Essa prática se insere em um cenário mais amplo de contínuas ameaças e violência estrutural na região, que atinge sistematicamente os defensores dos direitos humanos e todos aqueles que denunciam publicamente aqueles que exercem o poder, sejam eles políticos ou organizações criminosas”, aponta a entidade.
O relatório aponta ainda as fragilidades que acabam expondo os profissionais de imprensa a riscos maisores:
“Esses jornalistas foram silenciados porque o contexto político e de segurança pública de sua região não garantia as condições para o exercício de sua profissão com total segurança. Além disso, a maioria dos meios de comunicação para os quais trabalharam era muito precária ou frágil para garantir sua proteção e 10% deles eram jornalistas freelance ou colaboravam com rádios comunitárias.”
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