O combativo jornal Apple Daily, de Hong Kong, que vinha resistindo à censura e às pressões da administração do território governado pela China, anunciou em um comunicado na manhã desta quarta-feira que vai fechar definitivamente.
Há menos de uma semana a redação tinha sido invadida pela polícia, que prendeu cinco jornalistas, incluindo o editor-chefe, vasculhou computadores e apreendeu anotações e arquivos de repórteres. Os ativos do jornal (HK$ 18 milhões, equivalente a US$ 2,32 milhões) foram congelados como forma de sufocar a operação.
A Next Digital, controladora do Apple Daily, informou que a edição final será impressa no sábado, e que o site sairá do ar no mesmo dia. Nos últimos dias tinha havido uma corrida da população para comprar exemplares do jornal, que chegou a aumentar a tiragem apesar do bloqueio de recursos, papel e tinta.
O comunicado agradece a lealdade dos leitores e o compromisso dos jornalistas, funcionários e anunciantes ao longo dos 26 anos de existência do jornal, mas não deu outros detalhes sobre o motivo da decisão, que já era esperada. Mas um conselheiro do jornal disse à rede BBC que uma reunião de conselho nesta quarta-feira teria sido invadida e um colunista teria sido preso, o que pode ter precipitado a decisão de encerrar de vez a operação.
A Next Digital é é de propriedade de Jimmy Lai, principal empresário de mídia de Hong Kong, de 73 anos, com patrimônio estimado em US$ 1 bilhão, que está cumprindo uma sentença de 14 meses de prisão desde 16 de abril por “assembleias não autorizadas” durante os protestos pró-democracia de 2019.
Ele e outros ativistas foram processados por uma nova lei de segurança nacional imposta pelo governo em 2020 como forma de estancar o movimento em favor da democracia na cidade.
Em 14 de maio, o gabinete de segurança da cidade já tinham congelado as ações de Jimmy Lai no grupo, bem como ativos nas contas bancárias locais de três empresas pertencentes a ele. O magnata da mídia detém 71,26 por cento das ações da Next Digital, avaliadas em mais de US$ 44 milhões.
A medida tinha o objetivo de evitar que “bens relacionados ao crime” fossem removidos de Hong Kong, disse o departamento de segurança em um comunicado. O congelamento pode ter dificultado o envio de recursos para o jornal do grupo em Taiwan, levando à decisão de suspender o impresso, com a demissão de mais de 300 profissionais. O diretor de redação, Chang Ye-Shing, renunciou ao cargo.
Em uma coletiva de imprensa na manhã de quinta-feira da semana passada, logo após a operação policial na redação do jornal, Steve Li, superintendente sênior da unidade de segurança nacional de Hong Kong, explicou o motivo pelo qual as autoridades avançaram no congelamento dos bens das próprias empresas e não apenas de seu acionista principal.
Li acusou o jornal de publicar mais de 30 artigos, tanto online quanto impressos e em chinês e inglês, que buscavam sanções estrangeiras. “Os artigos questionáveis desempenham um papel crucial na conspiração”, disse Li.
John Lee, Secretário de Segurança, acusou o Apple Daily de usar “o jornalismo como uma ferramenta para colocar em risco a segurança nacional” e um “guarda-chuva” para se proteger. Ele disse que a polícia está investigando ativamente se pessoas dentro ou fora do Apple Daily participaram ou instigaram atos que colocam em risco a lei de segurança nacional.
Lee evitou perguntas repetidas sobre se os artigos são reportagens ou artigos de opinião. Ele ressaltou que a operação não tem como alvo a imprensa em geral e pediu aos” jornalistas normais” que “mantenham distância dos criminosos”.
O jornal transmitiu ao vivo a operação policial em suas mídias sociais.
Segundo divulgou o Apple Daily no Twitter, o CEO Cheung Kim-hung, o COO Royston Chow, o editor-chefe Ryan Law, o editor associado Chan Pui-man e o diretor da plataforma do Apple Daily Digital, Cheung Chi-wai, foram levados por policiais, sob acusação de violar o Artigo 29 da lei de segurança nacional imposta por Pequim, que proíbe “conluio com um país estrangeiro ou com elementos externos para pôr em perigo a segurança nacional”.
Repressão ao grupo de comunicação está ligada a protestos
A repressão que sufocou o Apple Daily é consequência da reação da China aos protestos pró-democracia que começaram em 2019, estimulados pelo aperto cada vez maior de Pequim sobre as amplas liberdades prometidas a Hong Kong após seu retorno ao domínio chinês em 1997.
A cidade portuária foi colônia britânica por 150 anos e virou um importante centro financeiro e de negócios. Um acordo entre a China e o Reino Unido devolveu Hong Kong ao controle chinês, prevendo uma administração sob o modelo “um país, dois sistemas”, em que o regime comunista não seria estendido ao território.
Mas, gradativamente, a China passou a adotar iniciativas para limitar críticas, gerando uma onda de protestos que explodiu em 2019, com a população tomando as ruas da cidade. A repressão foi severa, e em 2020 entrou em vigor a nova Lei de Segurança Nacional, com penas severas até de prisão perpétua para crimes como secessão, subversão, terrorismo ou conluio com forças estrangeiras.
O motivo alegado para a invasão desta quinta-feira foi a cobertura do Apple Daily sobre as relações entre a China e Hong Kong e o pedido de sanções ocidentais. Em uma entrevista coletiva, Li Kwai-wah, chefe da força policial, declarou ter “fortes evidências de que os artigos questionáveis desempenham um papel crucial na conspiração, que fornece munição para países estrangeiros”.
Next Digital vem sendo alvo do governo chinês
O grupo Next Digital, que além do Apple Daily de Hong Kong tem outro jornal de mesmo nome em Taiwan e diversos negócios em mídia, virou um dos principais alvos da repressão chinesa sobre os que querem a manutenção da democracia em Hong Kong.
Jimmy Lai criou a empresa em 1995, quando lançou o Apple Daily Hong Kong, em chinês e inglês, tornando-se uma das principais vozes a favor da democracia local. A condenação do empresário, junto com ativistas contrários ao governo de Hong Kong controlado pela China, gerou críticas de governos ocidentais e de grupos de direitos humanos.
“A condenação injusta desses ativistas sublinha a intenção do governo de eliminar toda a oposição política”, disse a diretora da Anistia Internacional para a Ásia, Yamini Mishra.
A organização Repórteres sem Fronteiras também protestou, pedindo libertação imediata de Lai e o fim do assédio judicial contra ele. O empresário foi premiado com o 2020 RSF Press Freedom Awards (Prêmio de Liberdade de Imprensa).
“Um ano e dois meses de prisão por participar de dois protestos pacíficos é uma punição totalmente desproporcional que revela como o governo está desesperado para silenciar Jimmy Lai, um símbolo da liberdade de imprensa em Hong Kong ”, disse Cédric Alviani, chefe da RSF no Leste Asiático
Segundo a organização, a condenação é parte de uma campanha de assédio judicial de longa duração contra Lai, que está detido desde dezembro de 2020. O empresário enfrenta seis outros processos por fraude, conspiração para perverter o curso da Justiça e por conspirar com forças estrangeiras, correndo o risco de prisão perpétua à luz da nova Lei de Segurança Nacional.
Lai tinha trânsito livre em Washington, tendo se encontrado com autoridades como o ex-secretário de Estado Mike Pompeo, para angariar apoio ao movimento pela democracia de Hong Kong, levando Pequim a rotulá-lo de “traidor”.
Em 12 de abril, em uma carta escrita em sua cela de prisão, ele pediu os funcionários do Apple Daily para “se manterem firmes”: “É nossa responsabilidade como jornalistas buscar a justiça. Contanto que não estejamos cegos por tentações injustas, contanto que não permitamos que o mal passe por nós, estaremos cumprindo nossa responsabilidade. ”
Hong Kong, que segundo a RSF já foi um bastião da liberdade de imprensa, caiu do 18º lugar em 2002 para o 80º lugar no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa da organização. A República Popular da China, por sua vez, estagnou em 177º de 180º.
Leia também
Nicarágua nega entrada de jornalista do New York Times; jornal critica “esforço para silenciar”