Em 2021, a luta contra a pandemia parece um cabo de guerra. Enquanto a vacinação avança no Brasil e no mundo, as campanhas de desinformação também parecem desenvolver as suas próprias “novas variantes”.
O grupo de WhatsApp da família, da escola ou do condomínio tem passado menos tempo falando de cloroquina e tratamento precoce, mas agora não para de falar sobre Pfizer, AstraZeneca e CoronaVac.
É quase como se a desinformação fosse em si uma epidemia – ou uma “infodemia” – tão poderosa quanto a do coronavirus.
Em 2020, o termo “infodemia” (do inglês “infodemic”) surgiu bem discretamente, aparecendo pela primeira vez em um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) em fevereiro de 2020.
“O surto e resposta de 2019-nCoV [nome científico da Covid-19] têm sido acompanhados por uma enorme ‘infodemia’ – uma superabundância de informação – parte correta, parte não – que dificulta para as pessoas encontrarem fontes confiáveis e orientação confiável quando elas precisam”.
OMS e a “infodemia”
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, logo complementou:
“Nós não estamos apenas lutando contra uma epidemia, estamos lutando contra uma infodemia. Notícias falsas se espalham mais rápida e facilmente do que esse vírus, e são tão perigosas quanto”.
Nos meses seguintes, o termo explodiu: entre artigos científicos e editoriais, jornalistas e acadêmicos passaram a discutir a “infodemia” de todos os ângulos possíveis, de saúde e inteligência artificial à importância de bibliotecas.
Isso não é de se estranhar: poucos tópicos são mais sérios e perigosos do que desinformação durante uma pandemia.
No entanto, nesse entusiasmo pelo tema, pouquíssimas pessoas se deram ao trabalho de se perguntar se o próprio conceito de “infodemia” realmente tinha suporte científico, ou quais seriam as possíveis consequências do uso desse termo.
Infelizmente, nenhuma das duas perguntas tem uma resposta muito animadora.
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“Viral”, uma metáfora problemática
A ideia de usar metáforas de contágio para falar de comunicação não tem nada de novo. Mesmo ideias como “viralidade” surgiram bem antes do Facebook ou do WhatsApp. Os problemas dessa metáfora também são bem conhecidos.
Primeiro, quem exatamente é o vírus nessa história? Seria cada informação falsa compartilhada no WhatsApp como um vírus diferente, ou seriam as diferentes versões de uma história como as diferentes variantes do coronavírus?
E quanto às histórias verdadeiras, as que sobrevivem à checagem de fatos? Elas também se comportam como vírus? etc.
O problema dessa comparação é que epidemias de verdade costumam ter uma causa bem definida, como um vírus cujas variantes podem ser identificadas e rastreadas, enquanto informação é um objeto muito mais difuso, que frequentemente envolve fontes independentes, origens obscuras, qualidade de conteúdo variada e muita interpretação dependente do contexto.
Desinformação não é resfriado
Segundo ponto: (des)informação não se pega como resfriado. Segundo essa narrativa, as pessoas seriam suscetíveis a “vírus mentais”, como diria o biólogo britânico Richard Dawkins. E informações e ideias seriam transmitidas de uma pessoa para a outra como um patógeno oportunista.
Por mais atraente que essa ideia pareça, ela ignora grande parte das ciências cognitivas que estuda como nós tomamos decisões sobre que informação consumir, no que acreditar, o que compartilhar e com quem.
Uma terceira questão é que a informação não se espalha como uma epidemia. Certas coisas se espalham de forma bem ampla, como um post no Facebook ou uma notícia na TV. Outras se difundem mais lentamente, de uma pessoa para outra, dependendo das nossas interações sociais.
Resumindo: parece, mas não é. Rápido e abrangente não significa viral.
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Informação demais? Cérebro humano tem ferramentas para isso
Mas e quanto à “abundância de informação […] que torna difícil para as pessoas encontrarem fontes confiáveis e orientações confiáveis quando precisam”, como afirma a OMS sobre ao usar o termo “infodemia”?
Essa afirmação também deve ser considerada com cautela.
Abundância de informação é uma característica comum dos ambientes midiáticos modernos, e embora muitas pessoas percebam um excesso de informação, pesquisas indicam que nós sabemos lidar bem com isso.
O que permite a nossa sociedade funcionar em meio a timelines infinitas e feeds de notícias 24 horas por dia é um conjunto de estratégias cognitivas, como atenção seletiva, que nos ajudam a lidar com excesso de informação.
Pensar em “infodemia” ajuda a entender, mas pode gerar interpretação equivocada
Tudo bem então – precisamos de mais pesquisas para entender as consequências do ecossistema de informação que se desenvolveu durante a pandemia.
Na prática, a ideia de “infodemia” foi usada pela OMS por uma razão bem mais simples: metáforas ajudam a tornar as coisas menos abstratas, e são uma maneira muito prática de chamar todas as pessoas interessadas para trabalharem juntas na mesma direção.
O problema é quando essa simplificação vai longe demais: uma “crise infodêmica” validada por cientistas e pela mídia pode resultar em soluções que ignoram os problemas reais e as origens estruturais de problemas como a desinformação sobre vacinas. Isso pode levar a políticas ineficazes, na melhor das hipóteses, e, na pior, a violações dos direitos humanos.
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Esse exemplo não é puramente teórico: entre janeiro e julho de 2020, 18 governos em todo o mundo já haviam criado medidas em resposta à “infodemia” através de decretos e emendas parlamentares, alguns deles com o poder de afetar a liberdade da imprensa, a liberdade de expressão e, em última instância, a saúde da esfera pública.
O que fazer então? Escolher uma metáfora diferente e torcer para dar certo? Não.
Chegou a hora de diminuir o ritmo, abraçar rigor e cautela, e prestar atenção em quem se beneficia das histórias a respeito da pandemia. Metáforas como “infodemia” são atraentes justamente porque são intuitivas, mas dependendo do contexto, também existem termos como “informação falsa”, “propaganda” ou “teoria da conspiração”.
Em nome de fazer ciência melhor e encontrar melhores respostas e soluções para a pandemia, pode valer a pena o jornalista sacrificar algumas manchetes, e no caso do leitor, pensar duas vezes antes de enviar aquela notícia no grupo da família.
Baseado no artigo Autopsy of a metaphor: The origins, use and blind spots of the ‘infodemic’, por Felix M. Simon e Chico Q. Camargo, publicado na revista New Media and Society.
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