Um episódio de notícia falsa envolvendo o vermífugo ivermectina e a revista americana Rolling Stone mostra como o problema das notícias falsas pode afetar qualquer parte da imprensa, até mesmo uma publicação com perfil progressista, ligada historicamente à música e à liberdade de comportamento.
A ivermectina é um vermífugo usado frequentemente para medicar animais, e que foi alardeado sem comprovações científicas como tratamento para a Covid-19. A própria fabricante, MSD (Merck Sharp and Dohme), afirmou em fevereiro que o remédio não tem eficácia contra o coronavirus.
A organização de checagem de fatos americana First Draft apontou em um comunicado que a Rolling Stone reproduziu uma notícia sobre o medicamento em que apenas um médico serviu como fonte, contrariando a prática jornalística de checar a informação com mais de um especialista ou instituição para então considerá-la confiável, e acabou “pagando mico” na imprensa americana. Antes de a revista corrigir, a publicação já tinha ajudado a propagar o boato.
A reportagem, baseada apenas em declarações do médico Jason McElyea a uma rádio local, afirmava que, no estado de Oklahoma (EUA), pessoas com ferimentos de armas de fogo estavam sendo deixadas de lado nos hospitais, devido a uma onda de overdoses de pessoas usando ivermectina.
A princípio, o leitor pode ver a situação como um médico interessado em alertar contra os efeitos perigosos de se automedicar, ainda mais usando um vermífugo sem eficácia comprovada contra a Covid-19. Talvez a intenção até tenha sido boa, mas o doutor exagerou na dose, ao que tudo indica.
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Cidade citada pelo médico não teve casos de overdose de ivermectina, diz hospital
Após a publicação da nota, a revista foi desmentida pela administração do hospital de Sallisaw, cidade onde o médico trabalha. O Northeastern Health System Sequoyah afirmou que não há qualquer surto no uso de overdoses de ivermectina e que pacientes são atendidos normalmente na localidade, o que expôs a revista ao rótulo de mau jornalismo.
“O dr. McElyea não trabalha em nosso hospital de Sallisaw há mais de dois meses. O NHS Sequoyah não tratou nenhum paciente devido a complicações relacionadas ao uso de ivermectina. Isso inclui não tratar nenhum paciente com overdose de ivermectina. Todos os pacientes que visitaram nosso pronto-socorro receberam atenção médica conforme apropriado.”
A revista fixou uma atualização na reportagem publicada, afirmando que “não pôde verificar” a autenticidade das informações propagadas pelo médico. O título da reportagem era (aqui traduzido ao português): “Vítimas de tiros são deixadas esperando enquanto overdoses de vermífugo de cavalo inundam hospitais de Oklahoma, diz médico”.
Fake news gerou efeito cascata na imprensa americana e mundial
A Rolling Stone não foi a única a publicar a história baseada na entrevista do médico a uma rádio de interior nos EUA. A First Dfraft identificou que nomes de peso da mídia como BBC, Newsweek, Guardian e Business Insider também contaram a história, alguns tendo que reparar a situação da mesma forma que a revista.
A BBC foi mais prudente, com título menos sensacionalista (“Ivermectina: médico de Oklahoma alerta contra o uso de drogas para tratamento de Covid”) e trazendo dados para relativizar a afirmação do médico:
“O Sistema Nacional de Dados sobre Envenenamento dos EUA relatou 459 casos de exposição à ivermectina no país em agosto, embora nenhuma análise tenha sido fornecida para Oklahoma.”
A reportagem da BBC prossegue, mostrando que, de fato, a situação é preocupante, mas não exatamente como o médico ilustra: “O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) emitiu um comunicado dizendo que as ligações para os centros de controle de intoxicações nos Estados Unidos sobre a exposição humana à ivermectina aumentaram drasticamente, com as ligações de julho sendo cinco vezes superiores ao número padrão.”
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A praga da desinformação se prolifera nos detalhes. Em muitos casos, não se trata do que foi dito, mas como foi dito.
Segundo a First Draft, a publicação da Rolling Stone rendeu não apenas críticas, como também serviu de combustível a negacionistas das medidas de prevenção à Covid-19, defensores do chamado “tratamento precoce”, com remédios sem eficácia comprovada, como a cloroquina e a ivermectina.
Personalidades da extrema-direita americana acusaram “a mídia” de estar criando notícias falsas para desqualificar o medicamento. Outros, apenas repostaram a história, como a jornalista de TV Rachel Maddow, com 10,5 milhões de seguidores no Twitter.
"Patients overdosing on ivermectin backing up rural Oklahoma hospitals, ambulances"
"'The scariest one I’ve heard of and seen is people coming in with vision loss,' he said."https://t.co/P909GtxBQZ
— Rachel Maddow MSNBC (@maddow) September 2, 2021
O jornalista Glenn Greenwald, conhecido dos brasileiros por estar à frente do site de jornalismo investigativo The Intercept, cobrou o Twitter por não classificar a notícia da Rolling Stone como desinformação e pediu também a remoção de Maddow.
Why is this viral @Maddow tweet spreading a totally false story still up? Why doesn't it have a "DISINFORMATION" label appended to it by @TwitterSafety? Why hasn't Maddow herself removed it? Why hasn't Twitter?
Yes, these are rhetorical questions. https://t.co/xpRtlqvfBr
— Glenn Greenwald (@ggreenwald) September 5, 2021
Facebook e YouTube já foram alvos de críticas envolvendo desinformação e citam desafios
O Facebook passou recentemente por uma tempestade de críticas, também envolvendo a rede social na trama da desinformação.
Após a divulgação do relatório sobre os postos mais vistos no segundo trimestre do ano, dados que o Facebook nunca havia revelado, um relatório anterior veio à tona, mostrando que a plataforma ajudou a “bombar” uma notícia da imprensa americana verdadeira, porém sensacionalista, que foi usada amplamente por perfis negacionistas para associar a vacina contra a Covid-19 à morte de um médico nos EUA.
A notícia em si era real, o médico havia morrido, e no texto havia ainda um alerta de que a vacina não era comprovadamente responsável pelo óbito. Ainda assim, a manchete sensacionalista foi tudo que era preciso para disseminar ideias distorcidas — e a culpa recaiu sobre a rede social.
No relatório do segundo trimestre havia apenas conteúdos mais corriqueiros entre os mais vistos, quizzes, desafios e memes, embora um olhar atento encontre ali plágios e redes de fabricação de visualizações, mostrando que os dados revelados não são necessariamente orgânicos.
O porta-voz da empresa comentou sobre a dificuldade de lidar com a desinformação, onde nem tudo é fake, e portanto não pode ser simplesmente bloqueado, mas muita coisa é tirada de contexto para espalhar uma ideia falsa. É algo que as redes sociais estão ainda patinando para achar a melhor forma de lidar.
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YouTube afirma que apenas derrubar conteúdo não leva à solução para desinformação
O YouTube se pronunciou também sobre o tema, ao publicar um informe que atualizava usuários e interessados em geral sobre as iniciativas da plataforma de vídeos contra a desinformação.
Em texto publicado no blog oficial, a empresa defende sua moderação de conteúdo e afirma que abusos ao remover vídeos devem ser evitados.
Provocado por artigo no jornal The Washington Post, que acusa a empresa de se manter “na sombra” de Facebook e Twitter quando o assunto é se responsabilizar pelo conteúdo exibido, o executivo Neil Mohan, chefe de produto da empresa, detalhou a percepção do YouTube sobre o assunto, defendendo que mais do que remover vídeos, é necessário administrar bem o conteúdo que fica online.
“Uma abordagem excessivamente agressiva em relação às remoções também teria um efeito negativo sobre a liberdade de expressão. As remoções são um instrumento contundente e, se usadas amplamente, podem enviar uma mensagem de que ideias controversas são inaceitáveis.”
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