O inconformismo da China com o tratamento recebido da mídia ocidental e por entidades de defesa da liberdade de imprensa entrou em ponto de ebulição no último fim de semana, quando o governo utilizou um artigo de opinião assinado pelo editor do jornal estatal The Global Times para atacar frontalmente a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF).

A RSF, com sede na França, publica anualmente um índice de liberdade de imprensa no mundo considerado a maior referência sobre violações, e que este ano deixou a China em 177º lugar entre 180 nações.

O país contabiliza 122 jornalistas presos, segundo a entidade, muitos sem acusação formal. 

O texto do The Global Times, assinado pelo editor Hu Xijin, tem como ponto de partida o projeto JTI (Journalism Trust Iniciative), liderado pela RSF, considerado abusivo e excludente por não ter a participação da China.

Ele escala para um tom violento. Finaliza afirmando que o remédio é carregar um porrete na bagagem para combater “o cão selvagem que assombrará a estrada da China de tempos em tempos”.

Pinóquios

Uma charge mostra uma máquina de fabricar pinóquios, em referência às críticas da organização de imprensa ao regime comunista e seu apreço por censura. O The Global Times é chamado de “Fox News” da China, e ficou marcado por veicular desinformação sobre a Covid-19. 

Em reação, a Repórteres sem Fronteiras publicou uma resposta em que procura desconstruir as acusações que considera infundadas.

O diretor-geral da entidade, Christophe Deloire, classificou o artigo de opinião como “paranóico e incoerente, fazendo ameaças veladas” à RSF.

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Veja os pontos principais da discórdia entre a RSF e o Global Times

O jornal chinês, voz oficial do governo, acusa a RSF  de “tentar controlar a internet” por meio do projeto JTI (Journalism Trust Initiative), afirmando que “uma organização não governamental não está em condições de modificar e repor a lógica da divulgação de informações falsas na Internet”.

Ele diz: 

“Cheias de fanatismo ideológico, organizações ocidentais como a RSF são totalmente hostis à China, um país socialista. Não importa o que façam agora, eles sempre considerarão prejudicar a China como um de seus objetivos. 

O mundo que eles querem moldar é um reino espiritual irreconciliável com a China. Ao formar e reescrever várias “regras” e “padrões”, eles criarão uma lacuna entre o mundo e a China para demonstrar o “auto-isolamento” da China, que é incompatível com os chamados valores universais”. 

A RSF rebateu afirmando que a iniciativa tem por objetivo promover a confiabilidade das informações, incentivando o respeito pela ética jornalística por meio de um sistema de certificação de mídia totalmente independente da RSF”.

E afirma que longe de pretender ‘controlar a internet’, o objetivo é motivar as plataformas a favorecer fontes transparentes, a fim de reduzir o impacto da desinformação no mundo.

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Sobre a exclusão da China (e da Rússia) no projeto, a resposta da RSF foi que o a iniciativa está aberta a todos os meios de comunicação do mundo, desde que sejam capazes de demonstrar que seu sistema operacional permite que os critérios básicos de ética jornalística e independência editorial sejam atendidos.

E acrescentou que alguns meios de comunicação russos participaram da fase de definição de padrões.

China difamada

Subindo o tom, o texto do Global Times classifica a Repórteres Sem Fronteiras como “um dos piores mentirosos do mundo contemporâneo”, autora de uma campanha para “construir uma aliança de mentiras sobre a China”.

“A RSF é uma das muitas organizações ocidentais que mais difamam a China. Eles apoiaram quase todos os ataques contra a China. Eles perceberam que não é divertido se opor a pequenos países. 

Eles acreditam que podem ter público suficiente, exibir o quanto quiserem e desencadear tempestades ideológicas sem precedentes ao amaldiçoar a China. Assim, eles podem finalmente encontrar algo para fazer e desenvolver uma “carreira” que todo o Ocidente apoiará plenamente”. 

A organização afirmou que “o discurso conspiratório é regularmente retomado pelos propagandistas do regime chinês, apesar do rigor do nosso trabalho”.

Lembrou que é  uma organização independente cuja obrigação é apoiar e defender a liberdade de imprensa e que tem status consultivo com várias organizações internacionais, incluindo as Nações Unidas e a UNESCO. 

E admitiu que é muito crítica em relação às ações do atual regime chinês, que a seu ver “tenta por todos os meios controlar as informações dentro e fora de suas fronteiras e ameaça a liberdade de imprensa em todo o mundo, conforme demonstrado pelo relatório investigativo intitulado ‘China’s Pursuit of a New World Media Order ‘publicado em 2019”.

177º no ranking de liberdade de imprensa

A posição desfavorável no Índice Global de Liberdade de Imprensa, publicado anualmente em abril, é mais um ponto nevrálgico para Pequim. A classificação foi considerada injusta no artigo de opinião, sob o argumento que na prática, o público chinês ainda tem a liberdade de “expor” e “resolver” os problemas do país, o que na visão do editor não acontece em países ocidentais:

Em contraste, o campo da opinião pública dos Estados Unidos e de outros países ocidentais quase nada fez para promover soluções para seus problemas nacionais”. 

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Jamal Khashoggi

A Repórteres Sem Fronteiras explicou que “o índice, publicado desde 2002, reflete o grau de liberdade de que gozam os jornalistas com base em critérios objetivos como pluralismo, independência dos meios de comunicação, qualidade do enquadramento jurídico e segurança dos jornalistas”. 

E justificou a posição do país:

“Na China, o presidente Xi Jinping, no poder desde 2013, restabeleceu práticas da era maoísta, incluindo amplo controle do Partido Comunista Chinês sobre a mídia profissional, violenta repressão a jornalistas não profissionais e censura sem precedentes na internet. A má posição da China no nosso índice é, infelizmente, amplamente justificada”.

O tom ameaçador do texto do Global Times é um sinal de que a mensagem vem do governo, já que um jornal não seria capaz de cumprir tais ameaças.

O artigo de opinião diz que “como um cão selvagem, a RSF irá assombrar a estrada à frente da China de vez em quando. Portanto, devemos levar um porrete na bagagem quando formos adiante”.

 Para a RSF, “o regime de Pequim só conhece a intimidação e a violência para silenciar seus críticos. E indagou se as ameaças de Hu Xijin implicam quando ele fala do ‘bastão’ chinês sendo infligido à organização se ela continuar a denunciar os abusos do regime”.

Jornalistas presos e campanhas internacionais de desinformação

A China é o país do mundo com mais jornalistas na prisão, com o registro de 272 detidos até o fim de 2020. Casos como o da jornalista Zhang Zhan, presa por noticiar o surto de Covid-19 na cidade de Wuhan, considerada marco zero da pandemia, se acumulam.

A jornalista de 37 anos, condenada a quatro anos de prisão, está em greve de fome há mais de um ano e corre risco de morrer.

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Além da repressão dentro de suas fronteiras, a China é conhecida também por orquestrar campanhas de desinformação para distorcer fatos a favor do país. 

Reportagens e centros de monitoramento da internet já revelaram ações combinadas que usam influenciadores e estudantes chineses que vivem em outros países para promover conteúdo pró-China, bem como operações mais sofisticadas, envolvendo perfis falsificados para reproduzir posts em redes sociais.

China, que domina mídia interna, ataca cultura pop e redes sociais

O governo vem demonstrando, através de diversas iniciativas recentes, como pretende endurecer o controle sobre a cultura e a imprensa. Dentro do território da China continental, onde a imprensa já é praticamente toda estatal, a censura vem recaindo sobre ícones culturais modernos, como games, redes sociais e até karaokês, numa tentativa de filtrar os valores da juventude.

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A cultura de celebridades, fortíssima na China, também vem sendo combatida, com atores considerados maus exemplos, ou mesmo figuras afeminadas, sendo boicotados por programas e patrocinadores após “cancelamentos” incentivados pelo governo.

Rankings de celebridades foram proibidos em redes sociais, na tentativa de abafar a cultura fan quan, de seguidores fanáticos, que votam em massa em competições e concursos envolvendo suas estrelas preferidas.

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Diplomacia chinesa tem característica agressiva

O país tem também adotado uma estratégia de agressividade em sua diplomacia, como pôde ser visto durante os últimos Jogos Olímpicos, quando o perfil de Twitter da Embaixada da China em Sri Lanka passou a criticar fotos dos atletas chineses tiradas pelas agências internacionais. A reclamação: eles estavam feios, fazendo caretas.

Pequim pediu que suas embaixadas e diplomatas se manifestassem no cenário global e as representações e diplomatas chineses criaram contas no Twitter nos últimos dois anos, embora, como o Facebook e o Google, ele seja inacessível na internet restrita do país.

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Zhao Lijian, que já foi diplomata no Paquistão, foi aplaudido internamente em 2019 após chamar Susan Rice, ex-assessora de segurança nacional dos Estados Unidos, de “uma desgraça” no Twitter, depois que ela o criticou por fazer comentários racistas.

Após a troca de farpas online, Zhao foi promovido a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China. Ele agora é amplamente celebrado como um exemplo da diplomacia abrasiva do país.

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