A nova empreitada da Fox nos Estados Unidos, com a operação de um novo canal de streaming de previsão do tempo, o Fox Weather, gera os esperados debates sobre a concorrência em um mercado saturado, mas tem também contornos à la 2021: como irá uma emissora do magnata australiano Rupert Murdoch, conhecido pelo negacionismo em relação à mudança climática, tratar do assunto?
O serviço da Fox Weather está disponível online, no site e nos aplicativos da rede para smartphones, e iniciou a produção de conteúdo em 25 de outubro, às vésperas da COP26 recém realizada.
O novo produto não foi o único movimento de Murdoch em relação ao clima – na Austrália, a News Corp, grupo do magnata, promoveu uma grande campanha em jornais (veja mais abaixo).
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O ceticismo em relação à Fox Weather se deve à posição assumida pelo canal de notícias do grupo, a Fox News, que durante a gestão de Donald Trump encampou as bandeiras do negacionismo climático e as críticas contra as medidas de prevenção da Covid-19.
A emissora foi recentemente caracterizada pela ex-chefe de imprensa da Casa Branca como “TV estatal” durante o período em que o republicano esteve na Presidência. Stephanie Grasham lançou um livro em outubro como uma apoiadora arrependida, revelando um ambiente tóxico no governo Trump.
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Fox Weather emprega uma centena de profissionais e vai usar pessoal da Fox News
Com a entrada de Murdoch no negócio da previsão do tempo, surgem perguntas na mídia especializada sobre como a Fox Weather explicará uma onda de calor massiva, ou furacões e inundações provocados pela mudança climática nos EUA.
Além dos boletins nacionais e locais nos EUA, os usuários da Fox Weather poderão acessar previsões de longo alcance e mapas meteorológicos locais em 3-D.
O investimento inicial passa de US$ 10 milhões (R$ 56,2 milhões), segundo informações do jornal Los Angeles Times. A equipe conta com cerca de 100 pessoas, incluindo 40 meteorologistas, que terão ainda o apoio dos 120 meteorologistas das estações de televisão da Fox em todo o país.
Ainda de acordo com o jornal californiano, o quartel-general em Nova York vai operar com 32 sistemas gráficos de tempo, mapas de radar e câmeras ao vivo pelos EUA.
Especialistas são céticos quanto a uma “nova filosofia” na Fox quanto ao clima
O passado da Fox gera inquietação a respeito de como deve ser a abordagem da Fox Weather sobre o clima em momentos extremos. O que se vê a princípio são notícias sobre o tempo focadas no momento, sem muito espaço para comentários ou análises inter-relacionando eventos.
Uma análise sobre o furação Sandy, que surpreendeu os EUA em 2012 levando destruição à Costa Leste do país, não tocou na questão do aquecimento das temperaturas do planeta, apenas caracterizou o fenômeno como “anormal”, apesar de ouvir especialistas de diferentes origens.
Outra notícia, sobre o Haloween, comentou sobre o calor em algumas partes dos EUA que diminui colheitas de abóbora e seu armazenamento. Mas não comentou que a Califórnia teve um de seus maiores incêndios florestais nesta temporada, e que o calor que afeta as colheitas pode ser efeito da mudança climática.
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Na mesma linha, uma análise sobre o fim das queimadas na Califórnia igualmente não abordou o tema da mudança climática como fator associado a eventos extremos. Apenas creditou o fim do fogo às chuvas na região, que ajudaram a extinguir os incêndios.
“Desserviço a americanos”
“Se a Fox decidir usar seu acesso e credibilidade para informar a audiência sobre as realidades das mudanças climáticas e seus impactos no clima, isso pode mudar o jogo. Por outro lado, se optar por perpetuar a desinformação para promover objetivos políticos, será um enorme desserviço a todos os americanos”, afirmou o professor Edward Maibach, diretor do Centro de Comunicação sobre Mudanças Climáticas da George Mason University, dos EUA, em entrevista ao jornal The Guardian.
Em conversa com o Washington Post, Michael Mann, destacado cientista climático da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos EUA, que já foi alvo de ataques da Fox News, se mostra cético quanto a uma mudança real de paradigma.
“[A Fox Weather] teria a responsabilidade de dizer a verdade. Mas Murdoch demonstrou ser constitucionalmente incapaz de fazer isso. Devemos presumir, a menos que seja provado o contrário, que esta rede será usada para promover ainda mais a negação do clima e os pontos de discussão da indústria de combustíveis fósseis”.
Procurado pelo Post, um porta-voz da Fox Weather comentou as declarações de Mann: “Cientistas presumem que qualquer coisa é muito perigosa”.
Na Austrália, News Corp surpreendeu ao assumir a mudança climática, ainda que com ressalvas
Executivos ligados a Murdoch deram algumas sinalizações de que a Fox passaria a tratar a mudança climática como algo factual, tanto em declarações de executivos da Fox News quanto de uma campanha lançada em outubro em tabloides da Austrália, lar da News Corp, o grupo do empresário.
Jornais como The Daily Telegraph, Herald Sun e Courier Mail, veicularam a campanha “missionzero2050”, uma iniciativa anunciada para colocar “a Austrália no caminho para um futuro com zero emissões”.
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Com isso, o grupo de Murdoch passou por uma pequena “repaginada” no que diz respeito à abordagem sobre a mudança climática, assumindo a questão como algo real e preocupante, algo que surpreendeu os críticos e provocou bastante barulho nas redes sociais, como aponta a pesquisadora Gabi Mocatta, em artigo no portal The Conversation.
“A mudança surpreendeu os observadores da mídia australiana e, sem dúvida, os consumidores da mídia em geral, devido à posição de negação climática de longa data da News Corp, que está bem documentada em comentários públicos e pesquisas.”
Ainda assim, segundo a especialista, nas reportagens que seguiram as novas regras estabelecidas para o jornalismo climático, de contar histórias humanizadas e focar em soluções, foi possível identificar discursos que ainda favorecem a indústria de combustível fóssil, entre outras bandeiras anteriormente encampadas por publicações do magnata contra medidas para frear o aquecimento global.
Na análise da pesquisadora, o movimento do conglomerado – “a voz mais poderosa da política” na Austrália, segundo o ex-primeiro-ministro Malcom Turnbull -, vai na direção de preparar seus leitores para uma possível mudança de postura ambiental do governo australiano.
Outro ex-primeiro-ministro, Kevin Rudd, ironizou a guinada editorial da News Corp. “Murdoch passou anos trabalhando para assustar as pessoas e fazê-las pensar que não têm futuro além da mineração de carvão. Essa reversão prova que tudo foi uma mentira de motivação política”, afirmou.
Murdoch spent years working hand-in-glove with the LNP to frighten the people of central Queensland into thinking they have no future beyond thermal coalmining. This reversal proves it was all a politically-driven lie. #MurdochRoyalCommission / https://t.co/3ZKpxsNPsu pic.twitter.com/NeuIgj7mvL
— Office of Kevin Rudd, 26th PM of Australia (@MrKRudd) October 11, 2021
Negacionismo na News Corp levou filho de Murdoch a deixar o grupo
Outro precedente importante na história de negação da mudança climática em empresas de Murdoch foi a saída de seu filho, James, do conselho da News Corp em julho de 2020, após criticar a cobertura de veículos da corporação sobre incidentes climáticos, como o Black Summer – nome dado à temporada de incêndios florestais daquele ano na Austrália.
Na época, o executivo expressou suas preocupações sobre a “negação contínua” da mudança climática na News Corp em face de “evidências óbvias do contrário”.
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Em uma declaração conjunta publicada no site americano The Daily Beast, James Murdoch e sua esposa, Kathryn, disseram que suas “opiniões sobre o clima estão bem estabelecidas e sua frustração com parte da cobertura da News Corp e da Fox sobre o assunto também é conhecida.”
Em entrevista ao Financial Times em janeiro, James afirmou que o ataque ao Capitólio em Washington, quando cinco pessoas morreram, foi uma consequência da desinformação eleitoral defendida pelo presidente Donald Trump e divulgada pelos meios de comunicação.
O executivo e sua mulher publicaram novo comunicado conjunto, atacando a mídia. “Espalhar desinformação – seja sobre a eleição, saúde pública ou mudança climática – tem consequências no mundo real. Muitos proprietários de mídia têm tanta responsabilidade por isso quanto as autoridades eleitas que sabem a verdade, mas preferem propagar mentiras.”
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