Em entrevista a David Martin, do programa Sunday Morning, da emissora americana CBS, o consagrado jornalista americano Carl Bernstein fez o que pode se considerar uma das melhores definiรงรตes de bom jornalismo:

“Sempre tive na cabeรงa que toda boa reportagem รฉ a melhor versรฃo da verdade que se pode obter”, disse o jornalista que entrou para a histรณria junto com o colega Bob Woodward ao denunciar em 1972 o escรขndalo Watergate, que levou ร  queda do presidente Richard Nixon. 

Com 62 anos de profissรฃo, Bernstein โ€“ premiado com o Pulitzer โ€“ publica nesta terรงa-feira (11/1), seu segundo livro de memรณrias โ€œChasing History โ€“ a Kid in the Newsroomโ€ (โ€œPerseguindo a histรณria – um garoto na redaรงรฃoโ€ em traduรงรฃo livre). 

Paixรฃo pelo jornalismo

O livro, lanรงado pela editora Henry Holt and Co., รฉ o segundo em que Bernstein compartilha suas memรณrias. O primeiro foi “Loyalties”, de 1989 (nรฃo publicado em portuguรชs). 

No novo volume, Bernstein foca no inรญcio da carreira e conta fatos curiosos e engraรงados da vida nas redaรงรตes do passado. 

Em 1960, quando o famoso jornalista tinha apenas 16 anos, comeรงou a trabalhar no Evening Star, um vespertino de Washington. 

O primeiro emprego em jornal deflagrou nele a enorme paixรฃo pelo jornalismo, que o estimularia a fazer reportagens retumbantes, como a do caso Watergate, publicada pelo Washington Post. O episรณdio acabou influenciando geraรงรตes de jornalistas investigativos pelo mundo.

Em suas memรณrias, ele ressalta que sua formaรงรฃo de repรณrter ocorreu entre os 16 e os 21 anos de idade no Evening Star e nรฃo no Post. 

“Eu tinha um pรฉ na juventude e um pรฉ tentando descobrir o que eu ia fazer com a minha vida, porque nรฃo estava exatamente dando certoโ€, reconhece o jornalista, para quem o inรญcio da profissรฃo foi muito marcante para sua vida pessoal.

Nesta entrevista ร  CBS ele fala sobre o novo livro. 

A posse de Kennedy

Carl Bernstein aponta a posse de John Kennedy, em janeiro de 1961, como um dos pontos altos de sua vida no jornalismo. 

“Talvez tenha sido o momento mais emocionante da minha vida, sentindo a energia de escrever para nรฃo perder o deadline [prazo final para fechamento de uma reportagem, no jargรฃo da imprensa]”.

No Evening Star, Bernstein trabalhou cercado por repรณrteres vencedores do Prรชmio Pulitzer โ€“ homens e mulheres. Quando perguntado sobre seus modelos, Bernstein cita Sid Epstein:

“Devo muito a ele. De alguma forma, ele viu coisas que talvez eu nรฃo visse em mim. E era um รณtimo, รณtimo editor”.

Foi Epstein quem teve a coragem de apostar no iniciante, dando-lhe a incumbรชncia de cobrir a posse de John Kennedy. 

Entรฃo veio o assassinato em Dallas, em 1961, quando Bernstein recebeu a terrรญvel notรญcia de uma colega.

“Ela olhou para mim e disse: ‘Ele estรก morto!'”, lembrou na entrevista ร  CBS, chorando. “Alguns momentos em sua vida sรฃo incrรญveis.”

Memรณrias do jornalista americano nos anos 1960

No livro de 384 pรกginas, Bernstein mostra como encontrou uma espรฉcie de โ€œrefรบgio no jornalismo”, especialmente na maneira como o The Star fazia isso: “procedendo sem julgamento ou predisposiรงรฃo para onde quer que o questionamento rigoroso levasse  a alguma noรงรฃo da verdade em toda a sua complexidade”.

“Eu gostei daquele lugar. E o conforto e o propรณsito que isso me deu.โ€

Na resenha do livro publicada no The New York Times, o jornalista Dwight Garner afirma que as memรณrias de Bernstein evocam o espรญrito das redaรงรตes americanas nos anos 1960.

โ€œEle mostra o ambiente das redaรงรตes daquela รฉpoca: as escrivaninhas de metal, as mรกquinas de escrever Royal sujas, os boletins que chegavam, a prensa tipogrรกfica ressoando pelo chรฃoโ€, escreveu Garner.

ร‰poca romรขntica do jornalismo americano

Em suas memรณrias, o jornalista americano transmite bem aquela atmosfera que transformava o trabalho numa espรฉcie de atividade em famรญlia.

โ€œEle encontrou um tipo diferente de famรญlia no The Star. Seus prรณprios pais, em seu idealismo, haviam sido figuras distantes. No jornal, ele descobriu pessoas que eram โ€œmenos complicadas, menos carregadasโ€. Ele mal se formou no ensino mรฉdio e largou a faculdadeโ€, escreveu Garner, no NYT.

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Foto: Andy Feliciotti/ Unsplash

Os primeiros anos no jornalismo sรฃo uma espรฉcie de jardim de infรขncia, com a diferenรงa de que as brincadeiras eram levadas a sรฉrio.

โ€œTrabalhar para o Star era um pouco como fazer parte de uma trupe de atores em uma companhia de repertรณrioโ€, escreve ele. โ€œTodos nรณs absorvidos no mesmo projeto, todos envolvidos nas histรณrias, no trabalho.โ€

Ele continua: โ€œร‰ramos inteligentes, nunca tรญnhamos dinheiro suficiente e muitas vezes bebรญamos muitoโ€. Um jornalismo romรขntico que sedimentou o caminho para o profissionalismo de hoje.

Jornalista americano alvo de pegadinhas

No Star, Bernstein disse ter aprendido a cobrir incรชndios, a falar com policiais, a fazer boas anotaรงรตes, a carregar cartuchos cheios de moedas de dez centavos para ligar para a redaรงรฃo, por telefones pรบblicos.

E, assim como muito repรณrter iniciante, foi alvo de pegadinhas nas redaรงรตes, como a que um colega lhe aplicou, enquanto usava um engomado terno creme.

โ€œVocรช precisa lavar todo o papel carbono usado pela equipeโ€, disse o espertinho. Nessa รฉpoca, no Brasil, a maldade mais comum era mandar o novato pegar a calandra, que era uma peรงa do maquinรกrio de impressรฃo do jornal, impossรญvel de ser carregada por uma pessoa.

Um repรณrter na agitada dรฉcada de 60

Em “Chasing History: A Kid in the Newsroom”, Bernstein relembra as origens de sua histรณrica carreira jornalรญstica em meio ร  era Kennedy, ao crescente movimento pelos direitos civis e a uma sรฉrie de crimes terrรญveis.

O relato รฉ animado e frenรฉtico. Foi considerado pela resenha da Amazon como โ€œum livro de memรณrias extraordinรกrio da vida ร  beira da idade adulta de um jovem determinado por um compromisso obstinado com a verdade.โ€

Os anos 1960, relembrados por Bernstein, sรฃo apresentados como um caldeirรฃo de รกgua fervendo.

Fatos marcantes se sucedem nas pรกginas do livro: russos no espaรงo, o fiasco da invasรฃo da Baรญa de Porcos, a crise dos mรญsseis cubanos, a marcha pelos direitos civis em Washington, o assassinato de John F. Kennedy, a aterrissagem dos Beatles nos Estados Unidos, os assassinatos dos ativistas de direitos civis Chaney, Goodman e Schwerner no Mississippi e as marchas contra o racismo entre Selma e Montgomery, no Alabama.

Um dos jornalistas que expuseram o Caso Watergate

Testemunha ocular da histรณria โ€“ para usar o velho chavรฃo que dominou parcela da mรญdia por muitos anos โ€“ o jornalista americano tambรฉm fez histรณria com o Caso Watergate, que deu ao Washington Post ligeira vantagem na disputa com o New York Times, nos anos 1970.

A reportagem virou livro (โ€œTodos os homens do presidenteโ€, de 1974) e filme, no qual ele foi representado por Dustin Hoffman ao lado de Robert Redford, representando Bob Woodward, o parceiro nas matรฉrias.

Com Woodward, publicou tambรฉm em 1976 โ€œThe Final Daysโ€, uma espรฉcie de continuaรงรฃo de โ€œtodos os homensโ€.

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Antigo parceiro de Bernstein, Bob Woodward trabalha hรก 50 anos no Washington Post, do qual atualmente รฉ editor associado. Com a reportagem sobre Watergate, o Post ganhou o Prรชmio Pulitzer de Serviรงo Pรบblico em 1972.

Em uma lista de celebridade da mรญdia publicada em 2021, Woodward รฉ apontado como um dos 10 jornalistas que merecem ser seguidos no Twitter. Curiosamente, a lista nรฃo inclui Bernstein. 

As contribuiรงรตes de Woodward para a cobertura dos ataques de 11 de setembro tambรฉm ganharam o Prรชmio Pulitzer de Reportagem Nacional em 2002. 

Numa sรฉrie de trรชs livros sobre o governo Trump (nรฃo publicados no Brasil), Bob Woodward revelou o caso do general Mark Milley, do Estado-Maior americano, que teve que telefonar para oficiais chineses com o objetivo de contornar uma crise militar provocada por Trump apรณs a invasรฃo do Capitรณlio, em 6 de janeiro do ano passado.

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(Lisa Berg/Divulgaรงรฃo)

A revelaรงรฃo do livro, que virou manchete dos principais veรญculos da imprensa americana, obrigou o Pentรกgono a se manifestar.

Em nota, o Departamento de Defesa americano confirmou o fato, afirmando que โ€œo general Mark Milley estava desempenhando as funรงรตes de seu cargo โ€” sem supostamente desrespeitar a autoridade presidencial โ€” quando falou com seu homรณlogo chinรชsโ€.

Jornalista acusou Trump de golpe

Apรณs mais de seis dรฉcadas de bom jornalismo, Carl Bernstein mantรฉm a fรฉ no exercรญcio da profissรฃo baseada totalmente em  valores democrรกticos.

Em entrevista ao รขncora da CNN Anderson Cooper em outubro passado, Bernstein – que รฉ analista polรญtico da emissora americana – acusou Donald Trump de ter tentado dar um golpe na democracia, com a invasรฃo do Capitรณlio, numa operaรงรฃo encoberta pelo Partido Republicano.

“Esse episรณdio foi uma tentativa de golpe liderada pelo presidente dos Estados Unidos e possivelmente resultado de uma conspiraรงรฃo criminosa, de evidรชncias inegรกveis.”

“Pela primeira vez na histรณria americana, um presidente tentou subverter as eleiรงรตes livres e legais, criando uma crise institucional”, afirmou Bernstein, acrescentando que o entรฃo presidente americano tentou promover uma guerra civil.

No dia do aniversรกrio da invasรฃo do Capitรณlio, em 6 de janeiro, ele retuitou a entrevista, denunciando o acobertamento pelo Partido Republicano da “conspiraรงรฃo liderada por Trump”. 

Para o jornalista que provocou a renรบncia de Nixon, em 1972, Trump agiu de forma pior do que aquele presidente americano. 

โ€œComo รฉ possรญvel que tantas pessoas de nosso povo permaneรงam seguindo esse sociopata?โ€, questionou Bernstein, referindo-se a Trump.

Livro ร  venda em livrarias online 

 โ€œChasing History: A Kid in the Newsroomโ€, estรก ร  venda no site da MacMillian Books por US$ 14,99 (R$ 84,00) na versรฃo e-book, e por US$ 32,99 (R$ 186,00) em audiobook. 

Na Amazon Brasil ele pode ser encontrado por R$ 118,00 em versรฃo para Kindle e R$ 251,00 em papel.

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