Londres – A cultura do cancelamento já atingiu celebridades, anônimos (cancelados de grupos por amigos e parentes), figuras históricas homenageadas com monumentos e até espécies animais, mas agora chegou a um lugar inusitado: o teclado do computador.
A BBC já tinha feito o mesmo no ano passado, embora sem atribuir a decisão ao passado de Gill. Esta semana, uma estátua criada por ele que enfeita a fachada da emissora foi atacada.
Cultura do cancelamento retroativa
O inglês Eric Gill não pode ser cancelado pessoalmente, porque morreu em 1940. Até recentemente era considerado um dos mais importantes tipógrafos do século XX, além de escultor, ilustrador e gravurista.
Mas o artista, que criou a fonte com seu nome em 1928, tornou-se particularmente desconfortável para uma instituição dedicada a proteger os direitos das crianças, o que motivou o cancelamento.
Trechos dos diários particulares de Gill, publicados meio século após sua morte por sua biógrafa, Fiona MacCarthy, revelaram uma figura controvertida. A descrição do criador da fonte no museu Tate Modern diz:
“As visões religiosas e temáticas de Gill contrastam com seu comportamento sexual, incluindo sua arte erótica e (como mencionado em seus próprios diários) seus casos extraconjugais e abuso sexual de suas filhas, irmãs e cachorro.”
A biografia conta que ele era uma figura excêntrica, que tinha o hábito de trajar uma batina de padre sem roupas por baixo. O texto relata os casos de adultério, incesto e as relações sexuais com o cachorro.
Uma das fontes tipográficas mais populares do mundo
Em uma época em que fatos desabonadores relativos à vida pessoal não eram levados em conta, a Gill Sans logo se tornou popular.
Ela foi inspirada na fonte usada pelo Metrô de Londres.
Em 1929, foi adotada como como o tipo de letra padrão para a London and North Eastern Railway (LNER), nas placas de identificação de vagões e nas tabelas de horários. E virou a marca registrada das capas dos livros da Penguin Books.
Muitas outras empresas (particularmente na Inglaterra) adotaram a Gill Sans como fonte da logomarca corporativa em meados dos anos 1900, incluindo a BBC e a British Railways.
Ela continua popular até hoje, presente em marcas globais famosas como Benetton e Tommy Hilfiger.
Estátua atacada por ativista
As iniciativas de cancelamento de Eric Gill vão além da repulsa à fonte que o artista desenhou.
No dia 12/1, um homem tentou destruir com um martelo uma estátua de pedra criada por ele. A figura adorna a fachada do prédio principal da BBC, no centro de Londres, desde 1933.
Apesar de ter renegado a fonte criada por Eric Gill em sua comunicação, a BBC não pretende remover a estátua.
O episódio alimentou o debate sobre os limites da cultura do cancelamento sobre figuras histórias, um movimento que ganha força no Reino Unido desde o assassinato de George Floyd, em 2020.
Em nota, a diretoria da emissora disse que a estátua de Próspero e Ariel da peça de Shakespeare A Tempestade pode promover a discussão sobre se as obras de arte podem ser dissociadas de seus criadores.
“Quando a estátua foi encomendada, Ariel era visto como um símbolo apropriado para o novo alvorecer da radiodifusão”, disse a rede em um comunicado.
“A BBC não tolera os pontos de vista ou ações de Eric Gill. Claramente, há debates sobre se você pode separar o trabalho de um artista da própria arte.
Achamos que a coisa certa a fazer é que as pessoas tenham essas discussões. Não achamos que a abordagem correta seja danificar a obra de arte em si.”
Há mais uma escultura do artista na recepção do prédio. Ele também colaborou para a produção dos afrescos da fachada.
O fim do uso da fonte Gill Sans pela BBC não tem relação com o ataque. A decisão foi tomada bem antes, em outubro de 2021, sob o argumento de que sua aparência era “antiquada” e “desatualizada”.
‘Cancelamento’ da Save The Children foi explícito
Já com a Save The Children a história foi diferente, sem espaço para debates sobre a cultura do cancelamento que divide opiniões.
A organização disse que a decisão foi tomada no ano passado, antes da tentativa de destruição da escultura de Gill instalada na BBC.
O manual de marca da Save the Children, publicado em 2016, estabelecia que a fonte Gill Sans Infant Standard deveria ser usado na grande maioria de seus materiais gráficos e digitais.
Isso vai mudar. A instituição de caridade disse: “Após uma revisão global de branding no ano passado, estamos deixando de usar a fonte Gill Sans. Nossa nova fonte será apresentada este ano.”
Igreja pode seguir exemplo e cancelar Gill
Enquanto a BBC optou pela neutralidade e o debate a respeito da estátua feita pelo artista, uma igreja sinaliza que pode seguir o exemplo da Save The Children e adotar uma posição mais radical.
A Catedral de Guildford confirmou que está considerando a remoção das estátuas de Cristo e de João Batista criadas por Gill e exibidas em seu interior.
Nicola Pratt, chefe de desenvolvimento, disse ao jornal The Daily Telegraph que “a Catedral está analisando qualquer nova interpretação necessária para reconhecer os erros de Gill.”
A controvérsia da cultura do cancelamento
Depois de uma onda inicial de revisionismo histórico, a cultura do cancelamento e o comportamento ‘politicamente correto’ entraram no debate público e até político no Reino Unido, já que a riqueza e a glória conquistadas na época do Império Britânico estão apoiadas em negócios ligados ao escravismo e ao domínio de um vasto território colonizado.
Um dos episódios mais emblemáticos aconteceu na cidade de Bristol e envolveu a estátua do comerciante de escravos Edward Colston.
Ela foi derrubada e jogada num rio durante um protesto do movimento Black Lives Matter em julho de 2020.
O vídeo documentando a derrubada do monumento viralizou nas redes sociais, e quatro reponsáveis foram julgados pelo ato. No dia 6 de janeiro eles foram absolvidos.
Os que defendem o fim das homenagens a pessoas com passado discutível à luz dos valores e leis atuais comemoraram. Outros ficaram preocupados com o veredito, temerosos de que estabeleça um precedente para futuras tentativas de vandalismo.
Até a rainha Elizabeth foi vítima da cultura do cancelamento. Em junho de 2021, alunos de uma faculdade de Harvard votaram por unanimidade a favor da remoção de um retrato dela pendurado na parede da sala.
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No Reino Unido e nos Estados Unidos, espécies de animais e plantas também viraram alvo da cultura do cancelamento, porque muitas receberam o nome de exploradores com algum fato controverso em seu passado.
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Em entrevista ao jornal The Times, a historiadora Mary Beard, professora de clássicos da Universidade de Cambridge, apoiou a posição da BBC de não retirar a escultura criada por Gill Sans.
“É importante que continuemos discutindo essas questões, que na verdade têm sido debatidas há milhares de anos, e são fundamentais para a arte e a crítica literária”, disse ela. “Elas são mais complicadas do que parecem à primeira vista.
Colonialismo britânico na mira do cancelamento
O Império Britânico foi uma potência que dominou a indústria, o comércio e as finanças globais. Chegou a controlar 25% das terras do mundo, dando origem à expressão “o império onde o sol nunca se põe”. Entre as antigas colônia estão grandes países como Estados Unidos, Austrália, África do Sul, Canadá e Índia.
Depois da independência de vários deles, foi fundada em 1931 a Comunidade Britânica das Nações (Commonwealth), uma associação entre o Reino Unido e parte de suas antigas colônias.
A coroa britânica não tem ingerência sobre os governos locais, mas a rainha é uma figura simbólica importante para a manutenção do soft power britânico e para as relações internacionais.
Todo ano é celebrado o Dia da Commonwealth, em março, com um discurso oficial valorizando os laços de amizade.
No entanto, nos últimos anos o desconforto com o passado colonial só aumenta. Além do cancelamento de figuras históricas, há um movimento (que também acontece em outros países europeus) pressionando museus a devolverem peças antigas que foram compradas ou levadas ilegalmente para o Reino Unido.
Uma das iniciativas mais incisivas nesse sentido é a que tenta levar de volta para a Grécia os chamados Elgin Marbles.
Trata-se das peças de mármore retiradas da Acrópole de Atenas, que estão entre as principais atrações do Museu Britânico.
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