A jornalista russa Zhanna Agalakova trabalhou por mais de 20 anos na emissora estatal Channel One — a mesma em que uma editora protestou ao vivo contra a guerra na Ucrânia neste mês e foi acusada de ser espiã britânica.
A invasão da nação vizinha motivou Agalakova a pedir demissão do meio de comunicação número 1 do Kremlin, deixando o cobiçado posto de correspondente em Paris.
Com a experiência de quem viu a engrenagem da propaganda política do Kremlin por meio das mídias estatais funcionar por dentro, ela fez um relato sobre como funciona o processo e o quanto é nocivo para a população da Rússia.
Jornalista russa denuncia manipulação de fatos na TV estatal
“Não foi possível para mim trabalhar chamando o que está acontecendo na Ucrânia de ‘operação pacífica’”, disse ela a jornalistas de vários países na sede da organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), em Paris, onde fez seu relato.
“É uma guerra e isso deve ser dito claramente.”
Zhanna Agalakova ingressou no Pervi Kanal (Channel One, em inglês) em outubro de 1999. Ela foi âncora de programas diurnos e noturnos, incluindo o principal telejornal de notícias da emissora, o Vremya.
No dia 14 de março, imagens da editora Marina Ovsyannikova protestando contra a guerra com um cartaz ao vivo no telejornal viralizaram nas redes sociais.
Após ser detida por algumas horas e receber uma multa, Marina foi acusada de ser espiã do Reino Unido pelo chefe da divisão de notícias da emissora estatal, Kirill Kleimyonov, e deve enfrentar um processo legal para provar sua inocência.
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Assim como a editora que protestou no ar, Zhanna Agalakova estava frustrada com a cobertura da guerra na Ucrânia feita pelo Channel One.
Na emissora, a jornalista russa também trabalhou como correspondente em Paris de setembro de 2005 a janeiro de 2013 e, depois, foi correspondente especial em Nova York até agosto de 2019.
Até sua demissão, ela era a correspondente da estatal russa na capital francesa, um posto importante na hierarquia do jornalismo.
Na sede da RSF, Agalakova relatou conhecer bem o funcionamento da propaganda do Kremlin na televisão.
Ela disse que já havia pensado em deixar o emprego várias vezes devido à forma como as notícias são manipuladas no Channel One, assim como em todos os meios de comunicação estatais na Rússia, mas que até agora “não tinha tido coragem de sair. ”
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Entre os exemplos do funcionamento da propaganda política da Rússia utilizando os meios estatais, Agalakova destacou como o atual presidente, Vladimir Putin, interferiu para construir a imagem do que viria a ser o seu sucessor, Dmitry Medvedev.
“Era o início do segundo mandato do atual presidente e a mídia se sentia pressionada”, relatou. O tempo todo no noticiário, tínhamos que mostrar apenas uma pessoa, o que quer que ele estivesse fazendo, tínhamos que mostrá-lo.
Ninguém o conhecia na época, mas com essa visibilidade, três anos depois ele se tornou presidente.”
Medvedev venceu as eleições de março de 2008 e recebeu a presidência de Vladimir Putin, que havia atingido naquele momento o limite constitucional de dois mandatos seguidos como chefe de Estado.
“Fomos nós que forjamos essa imagem”, disse Agalakova, reconhecendo seu papel na construção artificial de um novo presidente.
Como outro exemplo do controle do Kremlin sobre a mídia, a jornalista russa descreveu como era ser correspondente em Nova York em 2014 durante o conflito em Donbass, no leste da Ucrânia.
“Fui orientada a procurar más notícias sobre os Estados Unidos, como crianças adotadas por americanos que estavam sendo abusadas.”
O objetivo, segundo ela, era noticiar fatos enviesados para criar uma visão negativa do “Ocidente”.
“A propaganda não é somente mentira, pode ser uma soma de fatos justapostos de uma certa maneira para dar uma visão incompleta da realidade”.
Mas Agalakova admite que a propaganda estatal russa às vezes também dissemina mentiras descaradas.
“A mídia russa divulga apenas o ponto de vista do Kremlin, e outros pontos de vista não têm chance”, disse ela.
“Só falamos de um homem, o homem número 1 do país, o que ele comeu, o que ele bebeu. Até o vimos sem camisa.
Mas quando as pessoas não se veem refletidas nas notícias, quando sua voz não é ouvida, é um caminho infalível para o suicídio de um país inteiro”.
Ela acrescentou: “Durante todos esses últimos anos, o governo tentou estrangular a mídia independente”.
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A Rússia está classificada em 150º entre 180 países no último ranking de liberdade de imprensa da RSF.
Com o conflito deflagrado na Ucrânia, o relato de Zhanna Agalakova corrobora denúncias de agressões contra jornalistas e demais profissionais de mídia por tropas russas.
Nas acusações, é possível perceber que há uma nova tática para coagir jornalistas durante a guerra: forças da Rússia prendem por alguns dias ou mesmo horas profissionais de imprensa para coagi-los a não retratarem a invasão de forma negativa.
Na segunda-feira (21), quatro profissionais ucranianos ligados à agência de notícias MV foram detidos e mantidos reféns por algumas horas antes de serem libertados.
Enquanto estavam em poder dos soldados russos, os jornalistas tiveram “conversas preventivas” com o objetivo de desencorajar reportagens sobre o conflito armado.
No mesmo dia, a repórter Viktoria Roshchina, do canal ucraniano independente Hromadske, foi libertada depois de 10 dias detida em território controlado pelo exército da Rússia.
Ambos casos foram reportados pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), que denuncia a prática das forças russas na Ucrânia como forma de impedir que a imprensa nacional e estrangeira cubra a guerra livremente.
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