Em um ousado movimento de fake news na guerra da Ucrânia, a máquina de propaganda estatal da Rússia fez um vídeo falso usando o estilo e logo da emissora britânica BBC para atribuir a tropas ucranianas a autoria do ataque a uma estação de trem em Kramatorsk, que deixou dezenas de mortos.
O vídeo de pouco mais de um minuto, veiculado em emissoras estatais e compartilhado nas redes sociais, usa imagens verdadeiras do atentado e imita o estilo gráfico usado pela BBC para descrever em texto que a destruição teria sido feita pela Ucrânia, e não pela Rússia.
A emissora britânica é uma das mais perseguidas pelo governo de Vladimir Putin e uma das únicas estrangeiras a permanecer no país durante a invasão ao território vizinho, depois do Kremlin aprovar uma lei que prevê prisão de até 15 anos para jornalistas que chamarem a “operação especial” de “guerra”. Mesmo assim, sua credibilidade é reconhecida pelo Kremlin, que a utilizou para convencer sua população.
Kremlin fabrica fake news durante guerra na Ucrânia
No dia 8 de abril, dois mísseis russos atingiram a estação de trem em Kramatorsk, na região separatista de Donetsk, no leste da Ucrânia.
No local, milhares esperavam para embarcar e fugir da região em conflito. Ao menos 57 pessoas, cinco delas crianças, morreram e 109 ficaram feridas, segundo agências internacionais. O Kremlin negou que o ataque tenha sido feito por tropas russas.
Para endossar a mentira, um vídeo falso com imagens no local do bombardeio usando o logo da BBC foi divulgado na mídia pró-Putin, alegando que o número de série do míssil era semelhante aos disparados pelo exército ucraniano.
O vídeo nunca foi postado no site nem redes sociais da BBC. A emissora confirmou que o vídeo não foi feito por ela e disse que tomou medidas para removê-lo do ar.
Um dos que reproduziu o vídeo para alertar sobre a falsificação foi o canal Nexta, de Belarus, país que apóia Putin. O editor do Nexta foi preso em 2021 pelo ditador Aleksander Lukashenko.
https://twitter.com/nexta_tv/status/1514167823458881538?s=20&t=47LQm6JvLc5irm0F5Xf-JA
Sem narração, exibe uma sequência de imagens reais com textos usando a mesma tipologia gráfica usada pela emissora britânica.
O clipe começa com uma imagem explícita de corpos espalhados pelo chão — algo que a BBC provavelmente não iria exibir de forma, como é praxe do jornalismo tradicional.
Ao mostrar mísseis que atingiram a estação de trem, o texto afirma que os números de série são semelhantes aos disparados pelos militares ucranianos.
“Quando os números da fábrica de mísseis chegaram às redes sociais, a mídia ucraniana parou de cobrir esse tópico”, alega o texto falso. “Especialistas militares enfatizam que a Ucrânia muitas vezes começou a usar notícias falsas para promover sua posição”.
Em outra parte do vídeo, o texto se refere ao presidente ucraniano “Zelenskyy”, quando o site da BBC escreve seu sobrenome como “Zelensky”.
A Rússia alegou repetidamente que não foi responsável por ataques à infraestrutura civil, incluindo hospitais e escolas.
Após o bombardeio à estação de trem, Zelensky acusou as tropas russas de “destruirem cinicamente a população civil” e chamou isso de “um mal sem limites”.
No entanto, separatistas apoiados pela Rússia em Donetsk alegaram que as forças ucranianas eram responsáveis. Em resposta, o Ministério da Defesa russo disse que seu Exército não tinha alvos designados em Kramatorsk no momento do ataque e alegou que o tipo de míssil envolvido é usado apenas pelas forças ucranianas.
No Twitter, a BBC se manifestou sobre o uso do vídeo falso com sua logomarca:
“Estamos cientes de um vídeo falso com a marca BBC News sugerindo que a Ucrânia foi responsável pelo ataque com mísseis da semana passada na estação de trem de Kramatorsk.”
“A BBC está tomando medidas para remover o vídeo. Pedimos às pessoas que não o compartilhem e verifiquem as histórias no site da BBC News”.
We are aware of a fake video with BBC News branding suggesting Ukraine was responsible for last week’s missile attack on Kramatorsk train station. The BBC is taking action to have the video removed. We urge people not to share it and to check stories on the BBC News website.
— BBC News Press Team (@BBCNewsPR) April 13, 2022
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Na quarta-feira (13), números divulgados revelam que o Kremlin aumentou três vezes os gastos com propaganda no ano passado, em uma indicação de quão crítica é a campanha de desinformação para a guerra da Rússia, apontou o britânico The Times.
Entre janeiro e março, o governo gastou 17,4 bilhões de rublos (cerca de R$ 968 milhões) em “mídia de massa”, segundo dados divulgados pelo Ministério das Finanças russo. Durante o mesmo período de 2021, apenas 5,4 bilhões de rublos (R$ 307 milhões) foram gastos.
Os gastos com propaganda aumentaram enormemente após o início das hostilidades. Em março, o Tesouro gastou 11,9 bilhões de rublos (R$ 678 milhões), duas vezes mais do que em janeiro e fevereiro juntos.
As tentativas de pintar a Rússia como um exército “libertador” e manter o moral entre o público em geral são cruciais para o esforço de guerra de Putin — e que ganhou um terrível aliado no Ocidente.
Um estudo do Institute for Strategic Dialogue (ISD) apontou como mentiras divulgadas pela propaganda estatal russa está sendo abraçada pelos seguidores da teoria conspiratória QAnon.
Por causa das fake news difundidas na guerra, o grupo conspiratório vê a China como aliada numa reformulação da imagem de Xi Jinping de vilão para herói.
“Agora, adeptos da conspiração nos EUA descrevem o presidente chinês como um inimigo do Partido Comunista do país, trabalhando juntamente com Donald Trump e Vladimir Putin contra a ‘cabala global’ — a suposta elite de pedófilos adoradores de Satanás que comanda o mundo”, alerta a pesquisadora Elise Thomas, do ISD.
A invasão russa à Ucrânia difundiu a propaganda estatal do país para o Ocidente em larga escala, aponta a análise publicada pelo ISD.
Mas, além das informações manipuladas pelo Kremlin, a Rússia conseguiu exportar também uma antiga teoria de conspiração divulgada no país: a de que os EUA têm “armas biológicas” secretas. Essa tese infundada chegou ao QAnon e foi amplificada por jornalistas da Fox News, como o apresentador Tucker Carlson.
Para a autora do estudo, a aceitação da fake news por seguidores da conspiração de extrema-direita nos EUA revela como a comunidade do QAnon serviu como um canal eficaz entre a propaganda estatal da Rússia e a mídia ocidental.
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