Londres – Há três semanas, o presidente dos EUA, Joe Biden, havia feito um manifesto contra o racismo e pela tolerância ao nomear a jornalista Karine Jean-Pierre como porta-voz, ato que teve grande repercussão na imprensa global e nas redes sociais. 

Negra, imigrante (nasceu na Martinica), criada no bairro novaiorquino Queens e gay, ela se tornou uma das faces mais visíveis da maior potência do planeta, transmitindo as posições do governo nos briefings da Casa Branca assistidos no país e no mundo.

No entanto, o recado enviado por Biden não está sendo bem assimilado. O atentado em Buffalo no dia 14/5, que custou 12 vidas e foi transmitido ao vivo pela rede Twitch, é mais um da série de atos movidos por ódio racial, chaga que os EUA não conseguem curar. 

Racismo disseminado nas redes sociais 

Para muitos acadêmicos e ativistas, essas tensões agravaram-se com a ajuda das redes sociais, solo fértil para teorias conspiratórias como a da grande substituição, que teria inspirado o autor da matança de sábado, Payton Gendron, de apenas 18 anos.

A ideia é que a imigração destruirá valores das sociedades brancas e exterminará a civilização ocidental. Foi alimentada pelas narrativas anti-imigração fomentadas por políticos conservadores como Donald Trump e pela extrema direita.

Os mais racistas creditam esse plano a judeus. Nos EUA, a defesa de imigrantes latino-americanos por políticos democratas é vista pelos adeptos da teoria conspiratória como um movimento pela “substituição”. 

Dois dias depois do atentado motivado por racismo, o Estado de Nova York abriu uma investigação sobre o papel das redes no caso. 

Os alvos principais são o streaming de vídeo Twitch, a plataforma de mensagens Discord e o quadro de mensagens anônimo 4chan, utilizados para disseminação de teorias conspiratórias por sua baixa moderação. 

Ela foi solicitada à procuradoria pela governadora de Nova York, Kathy Hochul, sob a justificativa de que as plataformas de mídia social devem ser responsabilizadas por colocar o engajamento acima da segurança pública. 

Leia mais 

Procuradora de NY abre investigação sobre papel das redes sociais no ataque de Buffalo

Letitia James Procuradora Nova York ataque Buffalo racismo teoria da substituição redes sociais investigação
Letitia James, procuradora-geral do Estado de Nova York (foto: Twitter)

A associação das redes com crimes motivados por teorias conspiratórias e ódio a minorias não acontece só nos EUA. Jake Davison, um britânico de 23 anos adepto do Incel, movimento de aversão a mulheres, matou cinco pessoas em agosto do ano passado no Reino Unido.

Dois meses depois, o somaliano Ali Harbi Ali, de 25 anos, assassinou o parlamentar britânico David Amess a facadas, alegando vingança contra políticos favoráveis a ataques aéreos na Síria.

O criminoso, agora condenado à prisão perpétua, foi apontado como exemplo do que a inteligência britânica chama de bedroom radicals, jovens aliciados no tempo em que ficaram trancados em seus quartos durante a pandemia.

“Mesma cartilha digital”, com transmissão ao vivo nas redes sociais 

A organização Center for Countering Digital Hate tem sido uma das mais fervorosas críticas da atuação das empresas de mídia digital no controle do discurso de ódio.

Imran Ahmed, diretor-geral da ONG, escreveu em um artigo no jornal britânico The Guardian que a tragédia de Buffalo poderia não ter acontecido se o problema tivesse sido enfrentado depois do caso de Christchurch, na Nova Zelândia, em 2018.

Ahmed observou que o autor “usou a mesma cartilha digital que o terrorista de Christchurch: imagens ao vivo do ataque e um ‘manifesto’ citando a grande substituição e outras teorias supremacistas brancas”. E destacou que o americano mencionou o terrorista de Christchurch em seu manifesto.

Para Ahmed, estes não são ataques de lobos solitários, e sim de indivíduos conectados por meio de comunidades online, compartilhando ideias, táticas e conteúdo. Ele cobra ação de governos para regulamentar as plataformas, seguindo o exemplo do Reino Unido e da União Europeia.

O racismo na mídia engajada dos extremistas 

Ainda que as redes sociais tenham sua parcela de responsabilidade na disseminação de racismo, que não é pequena, elas não estão sozinhas nisso. 

Os males causados à sociedade pela chamada “mídia de opinião”, cujo principal exemplo é a americana Fox News, foram destacados pela organização Repórteres Sem Fronteiras no índice anual de liberdade de imprensa.

Leia mais 

Brasil em 110º no Índice de Liberdade de Imprensa 2022, que aponta ‘nova era de polarização

Na mesma semana, o secretário-geral da ONU, António Guterres, criticou a mídia polarizada no discurso pelo Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

António Guterres, Secretário-Geral da ONU, em mensagem no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa

A Fox é uma das que permite o endosso de teorias como a da substituição, que faz parte da narrativa do controvertido âncora Tucker Carlson. Mas dela já se espera isso.

O problema é que tais narrativas aparecem também em veículos menos visados. Na semana em que o parlamentar britânico foi esfaqueado, um artigo de opinião no jornal conservador Daily Telegraph, que não é um tabloide irresponsável, tinha um título feito sob medida para alimentar preconceitos: “A União Europeia é um império falido que condenou a si próprio à irrelevância”.

Ter opinião e criticar é a essência do trabalho da imprensa, embora nem sempre políticos e celebridades gostem de ser criticados. Há uma grande diferença, no entanto, entre criticar atos e posições, ou endossar teses racistas e discriminatórias contra minorias, imigrantes e pessoas LGBTQ+. 

Veículos como a Fox News e outros que se tornaram apoiadores de Donald Trump nos EUA estimulam o ódio racial e suas opiniões reverberam nas mídias sociais, fortalecendo teorias como as que inspiraram o atirador de Buffalo. 

Liberdade de expressão nas redes sociais 

Sobre a chamada ‘mídia de opinião’ não há ainda medidas concretas em curso para controlar seus efeitos, apenas reclamações.

Já a regulamentação das redes sociais para limitar discurso de ódio está avançada e parece um caminho sem volta.

Reino Unido e União Europeia mandaram para os respectivos parlamentos projetos de lei destinados a obrigar as plataformas a agirem com mais rigor, mesmo diante de riscos de impacto sobre a liberdade de expressão. 

A grande questão é se liberdade de expressão pode ser aplicada a quem pede a morte de grupos religiosos ou étnicos. Ou faz com que ameaças online saiam das redes sociais e cheguem ao mundo real, como em Buffalo. 

O estado americano do Texas, governado por Greg Abbott, do Partido Republicano, conseguiu uma vitória judicial sob essa tese esta semana.

Uma corte superior voltou a proibir que as plataformas digitais removam postagens consideradas “pontos de vista”, restabelecendo uma lei promulgada por ele em setembro do ano passado. 

Para os conservadores e representantes da extrema direita em vários países, não somente nos EUA, não cabe a uma empresa decidir sozinha o que um usuário das redes sociais pode postar.

O risco é que isso abre a possibilidade de que ódio a imigrantes, negros, judeus ou outros grupos étnicos e religiosos  seja considerado um ponto de vista.

Daí a usar as redes para promover a teoria da grande substituição e motivar atos como o de Buffalo é um pulo. 

Leia mais 

Lei polêmica que proíbe redes sociais de banirem usuários por ‘pontos de vista’ volta a valer no Texas