Londres – Em um arriscado ato de protesto contra uma ordem do regime Talibã, jornalistas homens da emissora TOLONews, uma das poucas que continua a tentar praticar jornalismo independente no Afeganistão, apareceram neste domingo (22) na bancada de rosto coberto, solidarizando-se com as colegas mulheres que deste ontem estão proibidas de mostrar o rosto na TV. 

Saad Mosheni, diretor do ToloNews, postou no Twitter uma foto do âncora Sebghat Sepher apresentando o jornal das 18h (horário local) com uma máscara semelhante às utilizadas como proteção contra o coronavírus.

No entanto, a proibição anunciada na última quarta-feira (18) nada tem a ver com a pandemia, e sim com a onda de censura à imprensa e restrições a mulheres que crescem sem parar desde que o Talibã tomou o poder, em agosto de 2021. 

A imagem de uma foto coletiva de jornalistas homens e mulheres da emissora com o rosto coberto também foi postada nas redes sociais e retuitada pelo diretor da emissora. 

Um vídeo publicado no canal da rede no YouTube mostra jornalistas e técnicos de máscara falando sobre a nova determinação. 

A decisão de proibir mulheres mostrarem o rosto na TV foi tomada pelo Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício, que substituiu o Ministério da Mulher quando o Talibã assumiu o governo.

Reação de jornalistas à ordem do Talibã 

Logo após a proibição ser anunciada, na semana passada, várias âncoras postaram fotos nas redes sociais com os rostos cobertos com máscaras durante a apresentação de jornais e programas.

A apresentadora da ToloNews Yalda Ali escreveu que estava “sendo apagada” sob as ordens do Talibã ao publicar um vídeo colocando o acessório na face.

No sábado (21) algumas apresentadoras ainda apareceram sem a máscara, mas diante da ameaça de serem obrigadas a sair do ar, acabaram aceitando a proibição – e agora receberam a solidariedade dos colegas homens. 

Em entrevista à agência de notícias AFP no domingo, a apresentadora da TOLONews Sonia Niazi disse:

“Resistimos e fomos contra o uso de máscara. Mas a TOLOnews foi pressionada e disse que qualquer apresentadora que aparecesse na tela sem cobrir o rosto deveria receber algum outro trabalho ou simplesmente ser removida.”

‘O Talibã quer jornalistas fora da TV’, diz âncora

Logo que a ordem foi anunciada, duas apresentadores da TOLONews choraram na redação da emissora, em Cabul, em relato à CNN.

“Eles querem que as mulheres sejam removidas da televisão. Eles têm medo de uma mulher com bom nível de escolaridade”, disse Khatera, de 27 anos, à rede americana. Ela é âncora do noticiário matinal há cinco meses.

O diretor da TOLONews, Khpolwak Sapai, disse à CNN que considerou fechar a emissora após a nova ordem, mas desistiu para dar a chance das funcionárias que estivessem dispostas a apresentar com o rosto coberto.

Nos últimos nove meses, ele viu mais de 90% de sua equipe fugir do país após o retorno do Talibã ao poder.

“Repórteres e apresentadores, homens e mulheres, saíram”, relatou Sapai à CNN. “E produtores… . No nível gerencial, eu fiquei sozinho”, disse.

A apresentadora Tahmina, de 23 anos, chorou ao questionar o que as mulheres jornalistas devem fazer com mais retrocessos aos direitos conquistados nas últimas duas décadas.

“Estávamos prontos para lutar para realizar nosso trabalho até o fim, mas eles não nos permitem.

Esta é uma prisão psicológica e desmotivadora.Nós não temos a motivação para entrar no ar livre e abertamente.”

A CNN conseguiu falar sobre a proibição às jornalistas com o porta-voz do governo talibã Zabihullah Mujahid durante uma celebração tardia do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, que foi em 3 de maio.

Ele disse que a determinação é “um conselho do ministério” e, sobre a obrigatoriedade, respondeu apenas que as mulheres na TV “devem usar [a máscara]” em comparação à pandemia.

“Como durante a pandemia de covid-19, a máscara era obrigatória.”

Jornalistas censurados pelo Talibã

O Talibã voltou ao poder do Afeganistão com a queda do governo oficial em agosto do ano passado. Desde então, a imprensa local e estrangeira e as mulheres como um todo vivem cada vez mais repressão.

A proibição de mostrar o rosto confirma o pessimismo dos que não acreditaram na promessa do Talibã de que o jornalismo seria respeitado, feita logo após a tomada do poder, em agosto de 2021. Desde então, o jornalismo vem sendo dizimado no país.

Em dezembro passado, 40% dos veículos independentes tinham deixado de funcionar, segundo levantamento da organização Repórteres Sem Fronteiras.  

As mulheres foram as mais atingidas. Em novembro, os líderes do país anunciaram um pacote de regras para o setor audiovisual.

Mulheres foram proibidas de aparecer em programas ficcionais (como novelas) ou de entretenimento, e as apresentadoras de noticiários ficaram obrigadas a cobrir a cabeça com o hijab (véu islâmico). 

Pesquisa da Federação Internacional de Jornalistas publicada em março mostrou que menos de seis meses depois da tomada do poder, 87% das mulheres jornalistas sofreram discriminação de gênero durante o regime Talibã, e 60% delas perderam seus empregos e carreiras. 

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A nova ordem de cobrir atinge as que ainda tentam resistir na profissão. 

Na década de 1990, quando controlou o país pela primeira vez, o grupo fundamentalista islâmico exigiu que as mulheres usassem a busca, vestimenta que cobria até os olhos, além de proibirem o acesso à educação.

Num primeiro momento, ao reassumir o poder em 2021, o Talibã sinalizou que não reimporia o código de vestimenta para as mulheres, o que vem mudando nos últimos meses.

Uma nova ordem estipulada no início de maio obriga todas as mulheres a usarem roupas que deixem apenas os olhos visíveis em público.

O decreto diz que mulheres devem sair de casa apenas quando necessário e que familiares homens enfrentariam punições por violações cometidas sobre vestimentas inapropriadas.

O Talibã também voltou proibir meninas de frequentarem a escola após a sexta série.

Em março, a investida do grupo contra jornalistas atingiu três empresas internacionais que distribuíam seus conteúdos por meio de parceiros afegãos.

As emissoras locais foram proibidas de transmitirem os boletins de notícias em pashto, persa e uzbeque da BBC, enquanto um talk show da alemã DW foi banido.

A emissora financiada pelo Congresso dos EUA Voice of America (VOA) também teve seus programas retirados do ar no Afeganistão.

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