Londres – Dois anos depois do início da pandemia da covid-19, o arsenal de desinformação em torno da doença ganhou uma segunda vida: teóricos da conspiração estão reciclando as principais fake news sobre o coronavírus para a varíola dos macacos.
Uma pesquisa da organização Institute for Strategic Dialogue (ISD) investigou como as mentiras espalhadas por conspiracionistas sobre a covid-19 foram adaptadas para replicar as mesmas falsas teorias sobre o novo vírus que se espalha pelo mundo.
Temas, organizações e figuras públicas amplamente usados para espalhar desinformação sobre o coronavírus estão ressurgindo e, para os pesquisadores, rastrear essas narrativas desde o início é fundamental para estancá-las e impedir impactos na saúde pública semelhantes aos provocados na pandemia da covid.
Fake news sobre varíola dos macacos usa nova ‘roupagem’ com velhas mentiras
Na análise do ISD, os pesquisadores Moustafa Ayad e Ciarán O’Connor identificaram que o surto de varíola dos macacos está revivendo teorias conspiratórias usadas para propagar fake news sobre a covid-19 numa espécie de “recorta e cola” — ou seja, velhas mentiras estão ganhando uma nova “roupagem” para dissseminar invenções sobre a doença.
Em comunidades conspiratórias no Telegram, Twitter, Facebook, BitChute, 4Chan e TikTok — plataformas onde tomaram forma as conspirações mais preocupantes sobre o coronavírus — já está circulando, por exemplo, que a varíola dos macacos é mais uma tentativa das “elites globais” em dominar o planeta.
Nessa fake news, é apontada a ideia de um trabalho coordenado com governos e organizações não governamentais (ONGs) para conter as liberdades individuais e impor “controle totalitário” sobre todos os seres humanos.
Para os analistas, essa e outras teorias da conspiração “evoluíram para se apegar a qualquer crise de saúde pública” que enfrentaremos daqui para frente.
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O ISD percebeu que teorias conspiratórias relacionadas à covid perderam espaço após a invasão da Ucrânia pela Rússia, momento em que houve uma mudança significativa em muitas comunidades conspiratórias nas redes sociais, que passaram a atacar o apoio internacional à Ucrânia.
Dessa forma, as conspirações nos primeiros meses de 2022 focaram em relacionar os Estados Unidos ao Batalhão Azov, unidade neonazista da Guarda Nacional ucraniana, e citar os upostos laboratórios biológicos administrados pelo governo americano no país.
Com o surgimento da varíola dos macacos na Europa, as comunidades conspiratórias se demonstraram céticas (assim como com a covid-19) ao próprio vírus e à origem da doença.
Para os pesquisadores, muitos conspiracionistas e influencidades estão agora bem cientes dos sucessos de sua “cartilha de desinformação pandêmica”, que buscava deslegitimar as autoridades de saúde pública e suas instituições.
Fake news sobre covid-19 deu espaço para varíola dos macacos
Com a nova “roupagem”, as fake news sobre a varíola dos macacos estão se utilizando de muitos dos falsos argumentos que primeiro apareceram com a covid-19.
Um dos principais debates é sobre a origem da doença. Os pesquisadores encontraram narrativas apontando para o laboratório de Wuhan como o suposto responsável pela “liberação do coronavírus”, enquanto outras alegavam que era um plano de longa data para atacar comunidades gays e culpar a Rússia.
Algumas narrativas sugerem que a OTAN desenvolveu a doença em laboratórios baseados na Ucrânia, e que Bill Gates profetizou um conjunto de “guerras de germes” usando varíola às quais os surtos atuais podem estar ligados.
“Figuras como Bill Gates e George Soros, que foram o foco de grande parte da desinformação durante o auge da pandemia de covid-19, estão mais uma vez sendo identificados como os vilões por trás desse ato mais recente de suposto ‘bioterrorismo’ “, diz o estudo.
No Telegram e no Twitter, por exemplo, pesquisadores do ISD encontraram inúmeras conspirações ligadas ao criador da Microsoft, que, em geral, são uma extensão das mesmas narrativas empurradas pelos conspiradores durante a pandemia de coronavírus.
“De forma geral, as fake news buscam deslegitimar o fato de que o atual surto de varíola é uma ocorrência natural. Em vez disso, os conspiradores culpam Bill Gates, bem como instituições como o Fórum Econômico Mundial e a Organização Mundial da Saúde (OMS)”, dizem os pesquisadores.
Eles os acusam de estarem envolvidos em uma conspiração generalizada para despovoar o planeta e impor formas de lei marcial totalitária, indicativas da “Nova Ordem Mundial”.
Assim como na pandemia da covid-19, a OMS tem sido particularmente atacada pelos conspiracionistas por causa da varíola dos macacos.
As acusações são de que a organização é corrupta e irresponsável, assim como a ONU e ONGs famosas que trabalham em prol da saúde pública. Os pesquisadores detalham:
“Teorias em constante expansão os acusaram de usar a pandemia como uma cobertura para distrair a sociedade, a fim de aprovar secretamente regulamentos que privariam ainda mais as pessoas de seus direitos e liberdades.”
Assembleia da OMS usada para alimentar fake news
Com a nova doença, surgiu a conspiração do “tratado pandêmico” da OMS, baseada na reunião da Assembleia Mundial da Saúde, o principal órgão de tomada de decisão da organização, que aconteceu entre 22 e 28 de maio.
Um dos itens da agenda foi uma proposta de emenda apresentada pelos EUA ao Regulamento Sanitário Internacional, destinada a melhorar a resposta do mundo a crises de saúde em larga escala.
Nas comunidades de conspiração online, a emenda foi distorcida e manipulada para apoiar a alegação de que o governo do presidente Biden está voluntariamente assinando a soberania do governo dos EUA em questões de saúde para a OMS, dando à organização autoridade para implementar bloqueios no futuro.
Essa alegação, que circula online desde maio, foi rotulada como falsa pelo site de verificação de fatos Snopes.
Teóricos conspiracionistas alegam que o vírus da varíola foi vazado pela OMS para “desviar a atenção” de sua Assembleia, onde, supostamente, se votaria para tomar a soberania da saúde de seus 193 estados membros e usar a ameaça da doença para depois impor novas restrições sanitárias nesses estados.
Os círculos da conspiração acreditam que concordar com abordagens e protocolos compartilhados de saúde pública, como máscaras, vacinas e bloqueios, resultará em uma população global de “bots” e “sheeple”, uma mistura de pessoas e ovelhas com fidelidade cega a um pastor – neste caso, as “elites corruptas”.
A quantidade de conteúdo online que promove a narrativa da varíola da conspiração do “tratado pandêmico” está crescendo, segundo o ISD. Antes da primeira reportagem sobre novos casos de varíola no início de maio, não havia discussão online sobre essa narrativa.
Na semana entre 16 e 23 de maio os pesquisadores acharam 189 tweets e 41 postagens em páginas e grupos do Facebook que o mencionaram, e manifestaram preocupação:
“Essas postagens estão recebendo alto nível de engajamento, com 3.532 e 4.683 interações, respectivamente, no momento da redação do relatório da pesquisa.
Isso é preocupante, pois destaca a capacidade contínua das narrativas de conspiração de ganhar força nas plataformas convencionais, apesar das políticas de desinformação e desinformação de saúde pública.”
O estudo aponta que série de sites vinculados a proeminentes teóricos da conspiração dentro e fora dos EUA já publicaram artigos estranhos e infundados que avançam falsas alegações sobre a previsão de Bill Gates a respeito do surto de varíola.
“Mais uma vez, essas alegações são emprestadas de algumas das conspirações mais duradouras do COVID-19 que alegaram que Gates estava ciente do que estava por vir na forma do coronavírus”, afirmam os pesquisadores.
Alguns sites publicaram artigos que apoiam a alegação de que a varíola dos macacos foi projetada em laboratório, enquanto outros aceitam que o vírus é real, mas estão prevendo que os governos o usarão para inaugurar o autoritarismo.
Um site deu como manchete: “Monkeypox: A Nova Ordem Mundial Prepara Seu Ataque Final”.
No cerne da conspiração, racismo e preconceito contra LGBTs
Os pesquisadores do ISD identificaram que assim como as conspirações sobre a covid-19 direcionaram o ódio aos cidadãos asiáticos, elas agora estão usando o surto de varíola dos macacos para atacar africanos, LBGTQ+ e comunidades de imigrantes em todo o mundo.
Eles destacam que George Floyd, o homem negro morto por um policial branco há dois anos nos EUA, virou um “símbolo de trolling racista” em comunidades nacionalistas de conspiração e brancas nas redes sociais.
No início das notícias em torno do surto de varíola, a imagem e nome de Floyd foram usadas por trolls racistas”. No Telegram, as pesquisas que tentaram renomear a doença para “Floydbola” receberam milhares de respostas.
As respostas racistas ao surgimento da varíola na Europa e em outros lugares foram combinadas com narrativas anti-LBGTQ+ generalizadas que colocam homens gays como a fonte do surto.
Esta narrativa encontrou seu caminho do Telegram para influenciadores do Twitter na extrema direita.
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Fake news saem de nichos para as grandes plataformas
A exemplo do que aconteceu na covid, plataformas alternativas de vídeo e mídia social também estão desempenhando um papel significativo na disseminação do conteúdo de conspiração contra a varíola, segundo o estudo.
Eles estão fornecendo a infraestrutura de suporte sobre a qual grande parte do conteúdo está sendo criado.
Mas as fake news não ficam restritas a elas. Links para esse conteúdo estão sendo compartilhados em plataformas convencionais com públicos maiores, muitas vezes contornando as diretrizes da comunidade e viralizando para uma audiência ampla.
Quando a pesquisa do ISF foi feita, o Bitchute hospedava 582 vídeos relacionados à varíola dos macacos, sendo que 556 deles (96%) foram postados entre 16 e 23 de maio.
O principal deles foi também visto mais de 60.000 vezes e compartilhado mais de 1.100 vezes no Facebook. Ele apresenta uma famosa ex-influenciadora canadense do QAnon, Amazing Polly, dizendo aos espectadores que a “Máfia da Saúde Pública” foi pega “em flagrante planejando outro ‘surto’ do qual eles podem aterrorizar o público e fazer banco”.
O segundo vídeo mais visto descreve potenciais vacinas contra a varíola dos macacos como “veneno”, e o terceiro vídeo tem como alvo Bill Gates.
Março de 2020 e o Whataboutism
O ISD identificou ainda grupos de usuários em fóruns online populares entre conspirações e comunidades extremistas que estão comparando esse período com os primeiros tempos da pandemia da covid-19 para espalhar o que os autores da pesquisa descrevem como revisionismo ou whataboutism do coronavírus.
As autoridades de saúde e os noticiários estão alertando as pessoas que a transmissão de pessoa para pessoa não é comum; que a varíola dos macacos não é considerada tão contagiosa quanto a covid; e que é um vírus fundamentalmente diferente do coronavírus.
No entanto, os usuários online ignoram isso, segundo o estudo. Em vez disso, sua resposta a esse conteúdo seguiu amplamente as linhas de “Eles disseram a mesma coisa sobre a covid no começo” ou alegam que isso equivale a uma espécie de encobrimento:
“O que estamos vendo aqui é uma demonstração do aspecto de autovedação das teorias da conspiração, em que denúncias, desmascaramentos ou esclarecimentos que podem dissipar um boato são incorporados à teoria da conspiração como mais uma prova de que há um encobrimento sinistro da verdade.”
O que a covid ensinou sobre fake news
Embora a varíola dos macacos não tenha o alcance da covid, os pesquisadores do ISD alertam para a possibilidade de que mais casos sejam descobertos em todo o mundo.
E lembram como a pandemia do coronavírus deu elementos para comunidades de conspiracionistas distorcerem qualquer acontecimento para se adequar à sua agenda, tentando demonstrar que “tudo está conectado”.
“Não é de surpreender que essas comunidades estejam encontrando maneiras de continuar a travar guerra de informação, mas é preocupante que, após três anos de combate às conspirações da covid, ainda tenhamos que aprender lições fundamentais sobre como combater a desinformação em saúde”.
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