Londres – Em um país marcado por tensões religiosas, a religião foi usada como justificativa para a prisão do jornalista muçulmano Mohammed Zubair, cofundador do principal site de verificação de fatos da Índia, o Alt News. Além dele, outras duas jornalistas foram processadas no país nas últimas semanas sob a mesma acusação: “ferir o sentimento religioso”.
Zubair é um crítico famoso do primeiro-ministro indiano Narendra Modi e já enfrentou outras disputas judiciais por publicações nas redes sociais classificadas como discurso de ódio antimuçulmano pelo governo.
A prisão de Zubair e acusações contra as jornalistas indianas Navika Kumar e Saba Naqvi provocaram reações de entidades internacionais, incluindo da Anistia Internacional e Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), que enxergam nos atos uma forma de repressão à mídia do país.
Jornalista preso por ofensa a religião já estava na mira de partido na Índia
Mohammed Zubair tem 39 anos e fundou o site de fact-checking Alt News em 2017, com o colega Pratik Sinha. A plataforma se tornou referência no país pela checagem de fatos e de declarações públicas do governo.
Na última segunda-feira (27), o jornalista foi convocado pela polícia para interrogatório sobre um caso de 2020 que envolvia publicações em mídias sociais, e do qual ele já estava protegido de ir para cadeia pelo Supremo Tribunal de Delhi, segundo informações da imprensa local apuradas pela FIJ.
Mesmo assim, Zubair foi detido. As autoridades apresentaram uma denúncia separada, feita por pessoa anônima, por causa de uma postagem dele no Twitter, em 2018, sobre o deus hindu Hanuman.
O tweet satírico dizia: “Antes de 2014: Honeymoon Hotel. Depois de 2014: Hanuman Hotel”.
A denúncia anônima afirmava que a relação feita pelo jornalista entre a divindade e a palavra “Honeymoon” (lua de mel, em inglês) era um insulto direto aos hindus devido à conexão do deus com o celibato.
Before 2014 : Honeymoon Hotel
After 2014 : Hanuman Hotel. #SanskaariHotel pic.twitter.com/1ri5i3IXy8— Mohammed Zubair (@zoo_bear) March 23, 2018
Sob o pretexto da religião, um dos jornalistas mais críticos do primeiro-ministro da Índia foi preso. Ele foi acusado de “promover a inimizade entre diferentes grupos” e “atos maliciosos, destinados a indignar os sentimentos religiosos”.
No dia seguinte à detenção, foi decretada a prisão preventiva do jornalista, que ficará mais quatro dias sob custódia para interrogatório.
Zubair estava na mira do Partido Bharatiya Janata (BJP) de Modi há muito tempo por causa do trabalho de checagem do Alt News, que por diversas ocasiões apontou com falsas alegações e notícias compartilhadas pelo grupo político, de acordo com reportagem da Al Jazeera.
No último mês, o BJP enfrentou uma de suas maiores crises dos últimos anos. Duas funcionários fizeram comentários depreciativos contra o profeta Maomé, incluindo a porta-voz do partido, Nupur Sharma, que foi suspensa do cargo.
A Al Jazeera aponta que Zubair foi possivelmente um dos primeiros jornalistas a compartilhar no Twitter, onde possui mais de 500 mil seguidores, o vídeo das falas polêmicas de Sharma.
No passado, o jornalista já foi alvo de assédio judicial por publicações nas redes sociais. Em junho de 2021, ele e Rana Ayyub, outra repórter perseguida por Modi, foram investigados por “provocar agitação comunitária”, após compartilharem um vídeo no Twitter.
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Entidades se manifestam contra prisão de jornalista na Índia
A prisão de Mohammed Zubair repercutiu internacionalmente e mobilizou diversas entidades a pressionarem o governo indiano para libertá-lo.
O país ocupa o 150º entre 180 nações no índice de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras desde ano O Brasil está em 11oº.
Representantes do Sindicato de Jornalistas Indianos (IJU, em inglês) disseram que a detenção dele é mais um “ataque flagrante” à liberdade de imprensa no país.
“[É] uma continuação da caça às bruxas pelo governo para silenciar a mídia e os críticos independentes”, afirmam, em comunicado.
“O Sindicato dos Jornalistas Indianos condena nos termos mais fortes a prisão de Muhammad Zubair, cofundador do site de verificação de fatos Alt News. Sua prisão pela polícia de Delhi cheira a má-fé no que diz respeito ao seu post em 2018, alegado por um usuário do Twitter como ‘ferir sentimentos religiosos’”.
A FIJ também condenou a prisão de Zubair, cobrando que a polícia indiana retire imediatamente todas as acusações contra ele e liberte-o da custódia policial.
A Anistia Internacional se manifestou duramente sobre o caso.
Aakar Patel, presidente do conselho da organização na Índia, disse que as autoridades do país estão mirando Zubair por “seu trabalho crucial no combate ao aumento de notícias falsas e desinformação e por denunciar a discriminação contra minorias.”
“A prisão de Mohammed Zubair mostra que o perigo enfrentado pelos defensores dos direitos humanos na Índia chegou a um ponto de crise”.
The arrest of Mohammed Zubair, co-founder of @AltNews – an independent fact checking website, for a 2018 satirical tweet shows the danger facing human rights defenders has reached a crisis point in India.
— Amnesty International (@amnesty) June 28, 2022
Jornalistas são processadas por ‘desrespeito a religião’ na Índia
Em outros dois casos separados, na semana passada, jornalistas também foram processadas sob a justificativa da religião na Índia, mas não chegaram a ir para prisão.
Navika Kumar, editora-chefe do Times Now Navbharat, foi a apresentadora do programa que causou polêmica com a porta-voz do BJP, Nupur Sharma.
Em debate exibido no dia 26 de maio, Sharma fez uma “declaração censurável sobre o profeta Maomé e o Islã”, segundo o partido, que decidiu suspendê-la.
No dia 14 de junho, as duas mulheres foram denunciadas à polícia por “desrespeitar o Islã e afetar o sentimento religioso” no país.
Ambas foram processadas em um dos artigos que o jornalista do Alt News também é investigado: ““atos deliberados e maliciosos, destinados a indignar sentimentos religiosos de qualquer classe, insultando sua religião ou crenças religiosas”.
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Em incidente não relacionado, a jornalista Saba Naqvi foi acusada de prejudicar o sentimento religioso ao compartilhar um meme satírico no Twitter sobre um símbolo do deus hindu Shiva, que teria sido encontrado em uma mesquita da cidade de Varanasi.
Ela foi acusada em inquérito policial de “promover a inimizade entre diferentes grupos”, “atos deliberados destinados a indignar sentimentos religiosos de qualquer classe” e “induzir a cometer um crime contra o Estado ou contra a tranquilidade pública”.
Segundo o FIJ, esta é a segunda vez que Naqvi é acusada de conexão com postagens de mídia social. Em 2021, ela foi processada junto com Mohammed Zubair e Rana Ayyub por compartilhar um vídeo no Twitter.
“Processos criminais contra jornalistas por transmissões de televisão e o compartilhamento de postagens de mídia social mostram a extensão dos esforços das autoridades indianas para silenciar a reportagem independente”, declarou a federação, em nota, exigindo que o governo da Índia retire as acusações contra as mulheres.
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