A premiada jornalista indiana Sana Irshad Mattoo foi mais uma vítima de um método usado pelo governo de Narendra Modi para evitar que profissionais da mídia exponham no exterior questões políticas sensíveis ao país: impedir que embarquem em voos internacionais. 

Mattoo é fotojornalista da agência Reuters e venceu o Prêmio Pulitzer 2022 pelo registro da covid-19 na Índia. Mesmo com o prestígio, ela foi impedida de viajar para a Europa, onde participaria de eventos ligados a prêmios que recebeu. 

A proibição de jornalistas viajarem para fora do país não é novidade na Índia. Em março, Rana Ayyub, crítica de Modi que lida frequentemente com assédio judicial, também foi impedida no aeroporto de Mumbai de embarcar para Londres.

Jornalista indiana vive na conflagrada Caxemira

O assédio judicial e fiscal a jornalistas tem sido um instrumento usado para silenciar a mídia crítica e intimidar jornalistas em países cujos governantes foram eleitos democraticamente, caso da Índia.

Diferentemente de nações sob ditaduras como Vietnã ou Mianmar, que lançam mão de leis de segurança nacional para reprimir a imprensa, líderes como Narendra Modi e o filipino Rodrigo Duterte, que acabou de deixar o cargo, adotam a fórmula de processos judiciais ou fiscais para coagir jornalistas e sufocar financeiramente veículos críticos. 

Sana Irshad Mattoo é natural da Caxemira, região administrada pela Índia que vive há anos uma grande disputa territorial e religiosa, já que parte da população islâmica quer se integrar ao Paquistão. Ela vive em Srinagar, capital do território.

No sábado (2), a jornalista indiana de 28 anos publicou no Twitter que foi impedida de viajar de Nova Delhi a Paris para participar do lançamento de um livro e de uma exposição de fotografia, em convite feito por ser uma das 10 vencedoras do Serendipity Arles Grant 2020.

Mesmo com um visto francês, ela foi parada no balcão de imigração do aeroporto e impedida por agentes de embarcar.

“Não me deram nenhum motivo, mas disseram que eu não poderia fazer uma viagem internacional”, ela escreveu na publicação, compartilhando fotos do passaporte e da passagem carimbada com os dizeres “cancelada sem prejuízo”.

“Isso é loucura, não há nada contra mim”, disse Mattoo em entrevista à emissora Al Jazeera.

“Um dos oficiais me disse que eu deveria verificar o motivo com [o governo da] Caxemira, de onde as ordens vieram. Não entendo por que fui parada [no aeroporto]”, acrescentou.

“Estou muito desanimada. Estava ansiosa por esta oportunidade faz tempo”, desabafou a jornalista.

‘Padrão sistemático’, diz entidade sobre jornalista indiana impedida de viajar

Sana Irshad Mattoo dividiu o Pulitzer de “Fotografia Especial” (“Feature Photography”) deste ano com outros três fotógrafos da Reuters, incluindo Danish Siddiqui, que morreu em uma emboscada do Talibã, no Afeganistão, em 2021.

Os profissionais retrataram os impactos da pandemia de coronavírus nas comunidades carentes da Índia.

A proibição de viagens internacionais se tornou uma forma de assédio judicial frequente na Índia. O país se utiliza disso para intimidar jornalistas e veículos opositores.

Nos últimos anos, vários jornalistas e ativistas indianos foram impedidos de viajar para o exterior pelas autoridades do país.

Em abril deste ano, Aakar Patel, ex-chefe da Anistia Internacional na Índia, relatou que não pôde viajar aos Estados Unidos por causa de um processo aberto contra a entidade em 2019. Segundo a Al Jazeera, Patel é um crítico aberto do governo Modi.

Dias antes, a renomada jornalista indiana Rana Ayyub também havia sido impedida de embarcar em um voo para Londres, onde deveria discursar em um evento sobre ataques a jornalistas mulheres na Índia. Ela conseguiu viajar depois de recorrer à justiça. 

Conforme denunciado pelo CPJ, os profissionais da mídia naturais da Caxemira também são alvos frequentes das autoridades.

No início deste ano, o jornalista independente Sajad Gul, que estudava a situação da mídia no território ocupado, foi preso.

No mês seguinte, o editor do portal de notícias The Kashmir Walla, Fahad Shah, também foi detido, de acordo com as informações do jornal paquistanês Dawn.

Entidades defensoras da liberdade de imprensa criticaram o veto a Mattoo 

A organização Repórteres sem Fronteiras (RSF) afirmou que a “arbitrariedade das autoridades indianas contra jornalistas não tem limites”.

Já o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) disse que o governo indiano “deve encerrar imediatamente sua prática de impedir que jornalistas da Caxemira viajem ao exterior”:

“As proibições de viagem fazem parte de um padrão sistemático de assédio contra jornalistas da Caxemira, que enfrentam cada vez mais prisões arbitrárias, casos legais frívolos, ameaças, ataques físicos e incursões desde agosto de 2019.”

Jornalistas processados por motivação religiosa

Além do veto a viagens internacionais, jornalistas indianos sofrem outros tipos de repressão dentro do território. Na semana passada, a religião foi usada como justificativa para a prisão do jornalista muçulmano Mohammed Zubair, cofundador do principal site de verificação de fatos da Índia, o Alt News.

Além dele, outras duas jornalistas foram processadas no país nas últimas semanas sob a mesma acusação: “ferir o sentimento religioso”.

Zubair é um crítico famoso do primeiro-ministro indiano Narendra Modi e já enfrentou outras disputas judiciais por publicações nas redes sociais classificadas como discurso de ódio antimuçulmano pelo governo.

A prisão de Zubair e acusações contra as jornalistas indianas Navika Kumar e Saba Naqvi provocaram reações de entidades internacionais, incluindo da Anistia Internacional e Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), que enxergam nos atos uma forma de repressão à mídia do país.

Assédio judicial virou prática no mundo

O assédio judicial também é praticado de outras formas em países com governantes eleitos. O caso mais recente aconteceu também com outra jornalista premiada, a filipina Maria Ressa, vencedora do Nobel da Paz 2021.

Dois dias antes da saída do presidente Rodrigo Duterte do cargo, o site de notícias Rappler, comandado por Ressa, recebeu da Comissão de Valores Mobiliários (SEC, na sigla em inglês) uma notificação de revogação de sua licença para funcionar.

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