Londres – A divulgação pela imprensa de um vídeo de câmeras de segurança mostrando a demora dos policiais a entrar na sala de aulas onde um atirador praticava um massacre em Uvalde, nos Texas, que resultou em 21 mortes em maio, provocou a ira de parentes das vítimas.

A exibição foi feita na terça-feira (12) pelo jornal Austin American Statesman e pela emissora KVUE, do mesmo grupo, antes de as famílias verem as imagens, um dos motivos da revolta.

Segundo a comissão de investigação, elas seriam divulgadas posteriormente. Mas o jornal afirma que não seriam liberadas na íntegra, razão pela qual decidiu se antecipar. 

O que mostra o vídeo do massacre no Texas 

O episódio coloca em questão os limites entre a busca pelo furo jornalístico e o respeito a seres humanos envolvidos em uma história, em um debate que ganhou a mídia nacional americana.

O vídeo da Robb Elementary School é chocante, pois comprova visualmente a falta de ação da polícia, que poderia ter evitado pelo menos parte das mortes. 

As imagens mostram o atirador andando armado pelo corredor. Ele entra na sala e os tiros começam a ser ouvidos, enquanto um aluno que vê a cena se afasta gritando. 

Os policiais chegam, protegidos por escudos e coletes, fortemente armados. Mas permanecem no corredor, caminhando de um lado para o outro, sem entrar na sala.

Um deles limpa as mãos com álcool gel, em uma calma impressionante para quem está a poucos metros de um massacre de crianças. Outros são flagrados rindo.

Embora as famílias estejam unidas nas críticas à atuação da polícia, que levou mais de uma hora para agir no caso, a exibição gerou controvérsia. 

Alguns familiares postaram notas nas mídias sociais pedindo a outros que não compartilhassem o vídeo vazado. “Isso é o oposto do que as famílias queriam!!!!!”, escreveu no Facebook Gloria Cazares, cuja filha Jackie foi uma das vítimas do massacre.

Em uma entrevista coletiva junto com um grupo de parentes, Felicia Martinez, mãe de uma criança que perdeu a vida na escola, criticou os que vazaram o vídeo para o jornal. 

“Estamos com raiva. Muita raiva. Queremos justiça para nossas crianças e por isso ter sido divulgado sem vermos antes. Somos os pais que perderam suas crianças.

Deveríamos ter visto isso juntos. São nossos bebês”.

O repórter investigativo Tony Plohestski, um jornalista premiado que trabalha para o jornal e para a emissora da TV, anunciou o “furo” pelo Twitter. 

Antes da exibição do vídeo pela TV, o âncora Bryan Myers disse: “Estamos fazendo isso por essas pessoas, por suas famílias em Uvalde, pelas pessoas da cidade e, na verdade, pelas pessoas do estado do Texas, que estavam desesperadas para saber o que aconteceu dentro daquela escola em maio”.

A reportagem do jornal destaca o caráter “exclusivo” da notícia, e alerta que as imagens podem ser “perturbadoras”.

Já prevendo que a veiculação tinha o potencial de despertar críticas, o jornal publicou junto com a reportagem um outro texto explicando o motivo da decisão. 

O editor, Manny Garcia, assume que o video de uma hora e 22 minutos é “trágico de ouvir e assistir”. E explica que a opção feita pelo Statesman foi objeto de “longas e ponderadas discussões”. 

Ele informa que foram produzidas duas versões, uma editada para pouco mais de quatro minutos destacando os momentos mais críticos, e outra com a cena completa.  

Ressalta que desfocaram o rosto de uma criança e removeram o som de gritos quando o atirador entra na sala de aula. 

De forma contraditória, Garcia afirma que a política da empresa é não glorificar criminosos, mas que nesse caso resolveram mostrar a face do atirador para evitar suspeitas de que poderiam estar “escondendo algo”.

E admite que esse ponto foi alvo de discórdia entre editores e integrantes da equipe de reportagem.

Em sua justificativa, o editor criticou as autoridades por “rejeição de solicitações da mídia para obter informações públicas por líderes policiais, funcionários públicos e representantes do povo eleitos”, afirmando que “muitos dos pedidos agora estão nas mãos do gabinete do procurador-geral Ken Paxton, que ainda não decidiu o que deve ser divulgado”. 

No entanto, pode não ser exatamente o caso do vídeo da câmera de segurança. 

O presidente do comitê que investiga o tiroteio na escola, Dustin Burrows, havia antecipado na manhã de terça-feira (12) que se encontrariam com membros da comunidade primeiro e dariam a oportunidade de ver o vídeo do corredor e discutir o relatório preliminar. E que “muito em breve”, relatório e imagens seriam divulgados ao público.

Entretanto, o jornal argumentou que o vídeo do massacre que o comitê do Texas tornaria público não incluiria imagens do atirador entrando na escola e a vista do atirador no corredor.  

Também falando em nome do grupo de parentes, Nikki Cross, tia de uma das crianças, confirmou que as famílias vinham pedindo acesso ao vídeo há semanas, sem sucesso. Mas lamenta que “agora o mundo inteiro viu antes”. 

Sob esse argumento, as imagens poderiam ter sido guardadas pelo jornal e pela TV e publicadas apenas se a suspeita de que o vídeo não seria liberado na íntegra tivesse se confirmado. 

Mas embora a gravação não traga revelações capazes de mudar o curso das investigações, pois a informação de que a polícia não entrou na sala embora protegida e armada já era conhecida, ele elevou a fúria popular contra os policiais, dificultando atenuar culpas. 

Trechos de momentos como o da limpeza das mãos ou de um policial checando mensagens no telefone continuam sendo compartilhados, com comentários implacáveis sobre a responsabilidades dos policiais e das autoridades locais e estaduais. 

Em uma análise do caso para o boletim Reliable Sources, da CNN, o colunista de mídia Ben Stelter fez duas perguntas cujas respostas não são fáceis de responder: 

“Se você estivesse no comando de uma redação e recebesse uma cópia vazada do vídeo do corredor, poderia segurá-la?

Por outro lado, se seu filho fosse um dos assassinados na escola? Você gostaria que o vídeo de vigilância fosse visto?”

O próprio Stelter não tem a resposta. Questionando sobre se os meios de comunicação fizeram a coisa certa, e do jeito certo, ele diz: “Suspeito que isso será debatido por muito tempo”.

O assunto também entrou na pauta do talk show The View, da rede ABC, que tem a atriz Whoopi Goldberg como uma das integrantes da bancada. 

Na edição desta semana, ela criticou o jornal: 

“Acho indefensável. Sinto muito. Você esqueceu que, associados a todos esses sons estão os filhos das pessoas”. E vocês não precisavam fazer isso. Eles iam ver este vídeo no domingo. […]Eu acho terrível, e vocês deveriam ter vergonha de si mesmo por fazer isso.”

No final, Goldberg simulou estar cuspindo no chão, em sinal de condenação. 

A opinião não foi a mesma entre os demais participantes. A apresentadora Sunny Hostin, e a convidada do dia, Alyssa Farah Griffin, apresentadora de um programa de análise política, argumentaram que os vídeos são fundamentais para desmantelar a narrativa da polícia de que os agentes estavam despreparados.

Hostin observou que o vídeo é “a prova definitiva de que a polícia foi covarde”.

Notoriedade a terroristas 

Além da sensibilidade em relação às famílias, a exibição do vídeo do massacre no Texas coloca em questão também a notoriedade dada a autores de crimes dessa natureza. 

Só que em geral as redes sociais é que ficam sob os holofotes, e não a imprensa tradicional.

Um dos casos mais emblemáticos foi o da matança de 51 pessoas em duas mesquitas de Christchurch, na Nova Zelândia, em 2019.  O autor dos tiros transmitiu o ato ao vivo pelo Facebook, e as imagens continuaram circulando por muito tempo. 

Uma semana antes do ataque de Uvalde, um outro atentado, em Buffalo (EUA) que custou 12 vidas foi transmitido ao vivo pela rede Twitch. 

A organização Center for Countering Digital Hate tem sido uma das mais fervorosas críticas da atuação das empresas de mídia digital no controle do discurso de ódio.

Logo após o ataque, o diretor-geral da ONG Center for Countering Digital Hate, Imran Ahmed, escreveu um artigo no jornal britânico The Guardian afirmando que a tragédia de Buffalo poderia não ter acontecido se o problema tivesse sido enfrentado depois do caso de Christchurch, na Nova Zelândia.

Ahmed observou que o autor “usou a mesma cartilha digital que o terrorista de Christchurch: imagens ao vivo do ataque e um ‘manifesto’ citando a grande substituição e outras teorias supremacistas brancas”. Ele cobra ação de governos para regulamentar as plataformas. 

Leia mais 

Análise | Christchurch, Buffalo e o papel das mídias sociais no discurso de ódio