Pouco mais de seis meses depois da reeleição do presidente Daniel Ortega, a situação da liberdade de imprensa na Nicarágua não dá sinais de que pode melhorar, deixando para trás a esperança de que após a tensão do pleito as pressões sobre opositores – políticos, ativistas e jornalismo – fossem atenuadas.
Nas semana passada, Voces Del Sur, SIP (Sociedade Interamericana de Prensa) e OEA (Organização de Estados Americanos) fizeram alertas sobre o aumento de perseguições a jornais independentes, fechamento de veículos e riscos de vida a que estão submetidos jornalistas presos desde o ano passado.
E em um episódio atípico, dois motoristas de um dos principais jornais do país, o La Prensa, foram presos em associação com uma reportagem sobre freiras católicas expulsas da Nicarágua.
‘Pesadelo’ para jornalismo na Nicarágua
A Nicarágua está em 160º lugar no ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras, que lista 18o nações.
Na análise sobre o país, a RSF aponta que mesmo após a reeleição de Ortega, em novembro, para o quarto mandato consecutivo, o jornalismo “continua a enfrentar um pesadelo de censura, intimidação e ameaças”, com jornalistas submetidos a assédio, arbitrariedades, prisões e ameaças de morte, razão pela qual vários foram para o exílio.
Um relatório divulgado pelo projeto Voces del Sur, que reúne organizações da sociedade civil da América Latina, revelou a gravidade do cenário enfrentado pela mídia no país em junho.
“Graves violações foram registradas no período, incluindo a remoção de canais católicos da TV a cabo do país e perseguição a um jornalista da emissora privada Canal 10, impedido de registrar imagens de um acidente de trânsito”, diz o documento.
O alerta mais importante, no entanto, foi para a censura deliberada que veículos de comunicação tradicionais estão sofrendo.
Sem identificar quais são as empresas, a organização apontou que o governo nicaraguense fez ameaças diretas de fechar em definitivo três grandes veículos do país.
Isso obrigou dois deles, segundo o Voces del Sur, a parar de cobrir questões políticas, enquanto o terceiro também está “gradualmente” deixando de noticiar assuntos sobre o tema.
“O jornalismo tem a responsabilidade histórica de continuar informando sobre política, especialmente no contexto das votações municipais que se aproximam e que já apresentam dezenas de arbitrariedades”, destaca a organização.
O relatório também denuncia que dois jornalistas foram impedidos de deixar o país por ordem do governo Ortega.
Ao mesmo tempo, a jornalista Tifani Roberts foi impedida de entrar na Nicarágua para visitar a família.
“Lamentamos o aumento dos exílios forçados e exigimos que o Estado resguarde a integridade daqueles que permanecem no país fazendo um jornalismo corajoso, ético e humano”, acrescenta o documento.
#Nicaragua | “Lamentamos el aumento de los exilios forzados y demandamos al Estado salvaguardar la integridad de quienes se mantienen en el país realizando periodismo valiente, ético y humano”, finaliza el documento.
➡️ https://t.co/zhE7HyHKNU— Voces del Sur (@VDSorg) July 11, 2022
O relatório da Voces del Sur sobre o estado do jornalismo foi publicado na sequência da prisão de dois funcionários do La Prensa, o jornal mais antigo da Nicarágua.
Os homens, que não tiveram a identidade revelada a pedido de familiares, não são jornalistas do veículo, mas sim motoristas.
Eles foram condenados a 90 dias de prisão preventiva enquanto as autoridades investigam a participação deles numa cobertura do jornal que irritou o governo.
A reportagem era sobre a expulsão de 18 freiras da Associação Missionárias da Caridade, ordem fundada por Madre Teresa de Calcutá, obrigadas a deixar o país sob escolta da polícia e atravessar a fronteira com a Costa Rica a pé.
O caso das religiosas expulsas é apenas o mais recente na esteira da repressão contra os defensores dos direitos humanos na Nicarágua. Ortega já fechou mais de 900 ONGs no país desde os protestos pedindo sua renúncia em 2018.
E, no domingo (10), ordenou que mais 100 organizações sem fins lucrativos fossem fechadas.
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Jornalistas ‘Presos de consciência’ na Nicarágua
A perseguição ao La Prensa não é recente. Em agosto de 2021, o prédio da publicação foi invadido pela polícia e o seu diretor, Juan Lorenzo Holmann Chamorro, preso.
Além dele, outros dois membros do conselho de administração do jornal, Cristiana e Pedro Joaquín Chamorro Barrios, também estão presos.
O caso dos motoristas foi classificado pela Associação Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol) como uma “nova onda de perseguição” do governo nicaraguense ao jornal.
“Nós responsabilizamos o regime Ortega pelo que pode acontecer com cada um dos trabalhadores do La Prensa, vítimas de abusos, intolerância e desrespeito a seus direitos fundamentais”, disse Jorge Canahuati, presidente da SIP.
Na quarta-feira (13), a entidade emitiu uma nota alertando para a deterioração da saúde de vários dos presos.
A organização pediu a libertação imediata de todos “por serem prisioneiros de consciência”, que foram condenados em “julgamentos sumários, sem o devido processo e por crimes inexistentes”:
“A SIP reitera seu pedido à comunidade internacional para que se encesse os casos dos jornalistas Miguel Mora, Miguel Mendoza, Jaime Arellano, Cristiana Chamorro, Pedro Joaquín Chamorro e Juan Lorenzo Holmann, os três últimos do jornal La Prensa , que sofrem de [problemas de] saúde e cujos direitos são violados nas normas internacionais sobre o tratamento de prisioneiros e direitos humanos.”
A SIP ainda instou as associações de imprensa regionais e internacionais e organizações multilaterais a “manterem o caso da Nicarágua na agenda pública para demonstrar solidariedade com os jornalistas nicaraguenses e suas famílias, e exigir liberdade”.
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Celebridades do jornalismo presas na Nicarágua
A associação detalhou a situação judicial e de saúde dos seis jornalistas, todos figuras conhecidas no jornalismo da Nicarágua.
Miguel Mora, 56 anos, fundador do canal de TV 100% Notícias, foi condenado a 13 anos de prisão.
Ele está preso desde junho de 2021 na Diretoria de Assistência Judiciária (DAJ), conhecida como a “nova Chipote” (em referência à prisão usada na ditadura militar), onde foram denunciadas torturas, abusos, tratamentos degradantes e outras violações de direitos humanos.
Segundo a SIP, ele já perdeu mais de 13 quilos desde então. Mora não tem o direito de se comunicar com seu filho nem de ter uma Bíblia. Ele foi acusado de minar a integridade nacional.
Miguel Mendoza, 51 anos, foi preso em junho de 2021 e condenado em fevereiro passado a 9 anos de prisão. Jornalista esportivo, ele também falava de política e criticava o governo Ortega nas mídias sociais.
A SIP relatou que ele compartilha uma cela “em condições deploráveis” com o também jornalista Juan Lorenzo Holmann, com paredes mofadas e sem janelas. A entidade diz que luz fica acesa 24 horas por dia e os dois só podem sair para o pátio uma vez por semana.
Jaime Arellano, comentarista político de 61 anos, cumpre 13 anos de pena de prisão domiciliar desde junho de 2021.
Ele foi acusado de conspiração para minar a soberania nacional e disseminação de notícias falsas por meio de tecnologia da informação e comunicação. Segundo a SIP, o jornalista sofre de obesidade, problemas de circulação e pressão alta.
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Cristiana Chamorro Barrios, 67 anos, integrante de uma dinastia de jornalistas nicaraguenses, era vice-presidente do jornal La Prensa e chegou a ser candidata à presidência. Seu pai, Pedro Joaquim Chamorro Cardenal, fundou o jornal e foi assassinado em 1978.
Ela também fundou uma ONG de direitos humanos em memória da mãe, Violeta, que presidiu o país em 1990. Em junho de 2021 foi presa e condenada a 8 anos de prisão domiciliar, pena que cumpre de forma incomunicável e com restrição absoluta, segundo a SIP.
Ela foi acusada de gestão abusiva, falsidade ideológica, apropriação e retenção indevidas e lavagem de dinheiro.
A mesma acusação foi aplicada ao seu irmão, o também jornalista Pedro Joaquín Chamorro, 70 anos. Condenado a 9 anos de prisão, ele ficou no cárcere até maio passado. Devido à deterioração de sua saúde, passou a cumprir prisão domiciliar.
A SIP afirma que Chamorro perdeu mais de 13 quilos e tem problemas de audição.
Outro jornalista de grande notoriedade na Nicarágua e também do La Prensa colocado atrás das grades pelo regime de Daniel Ortega é Juan Lorenzo Holmann, 55 anos.
Editor do jornal, ele está preso desde agosto de 2021 e foi condenado a nove anos de prisão depois de um processo com audiências sigilosas e sem o direito a se encontrar com o advogado.
Holmann sofre de pressão alta, tem problemas de visão e fez uma cirurgia cardíaca no ano passado, cujo acompanhamento não foi feito regularmente devido à prisão, denunciou a SIP. Ele foi acusado de lavagem de dinheiro e apropriação indevida de bens.
OEA condena escalada de repressão na Nicarágua
O Gabinete do Relator Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou em nota emitida no dia 15 de julho a escalada da repressão das autoridades contra jornalistas e empresas de mídia na Nicarágua.
E cobrou do Estado que cesse “a perseguição, a intimidação e o assédio contra a imprensa independente que informa sobre questões de interesse público, incluindo a crise dos direitos humanos”. E que restaure todas as garantias para o exercício do direito à liberdade de expressão”.
A OEA relata ter recebido relatos de aumento nas operações policiais nas casas de jornalistas e instalações de empresas de mídia, confisco de equipamentos de trabalho e exílio forçado de jornalistas.
“Essas ações realizadas pelo Estado buscam silenciar a imprensa e controlar qualquer discurso que questione ou contradiga as vozes oficiais, minando as garantias básicas para o exercício das liberdades fundamentais”, diz a nota.
Além do caso do La Prensa, o comunicado destaca também o fim do portal Trinchera de la Noticia, quarto meio de comunicação fechado na Nicarágua desde a eclosão da crise política, em abril de 2018.
Segundo a OEA, o fechamento ocorreu”por perturbação da paz social e recusa a apresentar as informações dentro do prazo estabelecido ou apresentá-las de forma incompleta ou imprecisa”, de acordo com a resolução do Judiciário que dissolveu a entidade.
A organização destaca ainda o aumento de jornalistas e comunicadores em deslocamento forçado e exílio devido ao crescente medo de represálias, que podem variar de cerco policial a suas casas, ameaças envolvendo familiares e criminalização, com penalidades exorbitantes.
E ressalta que a repressão tem impacto maior sobre mulheres jornalistas, que estão em uma dupla situação de vulnerabilidade, já que além dos ataques relacionados ao trabalho jornalístico, também são desproporcionalmente afetadas por represálias baseadas em gênero
O Gabinete do Relator Especial para a Liberdade de Expressão é um escritório criado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com o objetivo de estimular a defesa do direito à liberdade de pensamento e expressão nas Américas.
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