Mais antigo e combativo veículo de imprensa da Nicarágua e alvo de uma perseguição implacável do regime de Daniel Ortega, o La Prensa reagiu contra o confisco de seus ativos e instalações e a intenção de transformá-las em um centro cultural, anunciada há dois dias pela primeira-dama e vice-presidente do país, Rosario Murillo. 

Em um comunicado publicado nesta quarta-feira (25) intitulado “Eles são o passado”, a direção do jornal afirma que vai lutar para reverter o confisco, mas que mesmo sem sede e bens continuará fazendo jornalismo “enquanto houver nicaraguenses que o leiam”. 

E em entrevista, ao site argentino Infobae, Ana Chamorro de Holman, de 95 anos, filha do fundador do jornal, disse estar “indignada” e com esperança de que em breve os jornal volte a usar as máquinas e os funcionários retornem ao “prédio roubado”.

Ortega e a imprensa na Nicarágua

O governo de Daniel Ortega utiliza todas as armas para exterminar a imprensa independente do país. O La Prensa é o principal alvo. 

Fundado em 1926, o veículo teve as instalações ocupadas pelo governo Ortega em agosto de 2021, mas continuou a operar, com jornalistas na Nicarágua e exilados.  

Além da ocupação do prédio, avaliado em US$ 10 milhões, da tomada de equipamentos de impressão e de ameaças e prisões a funcionários, três diretores herdeiros do fundador do jornal estão presos – Cristiana Chamorro Barrios, Pedro Joaquín Chamorro Barrios e Juan Lorenzo Holmann Chamorro. 

E Carlos Fernando Chamorro, irmão de Cristiana e editor do site Confidencial, fugiu do país após ter sua casa invadida para “salvaguardar sua liberdade”. Ele é um dos jornalistas mais importantes da Nicarágua. 

Em julho, o assédio foi intensificado. Dois motoristas do veículo de imprensa  foram presos em reação a uma reportagem sobre a expulsão de freiras por Ortega. O jornal anunciou atransferência de todos os funcionários para fora do país

A redação funciona agora na Costa Rica, apenas para uma versão online. 

Na nota em que afirma a disposição de continuar desafiando as perseguições, o Conselho Editorial disse:

“Nenhuma ditadura mostrou tanta crueldade contra os valores que o La Prensa representa como a ditadura de Daniel Ortega e Rosario Murillo”. 

O jornal lembra que não é a primeira vez que enfrenta desafios, pois já conviveu com três regimes que viram no jornal um obstáculo aos seus objetivos.

Mas sobreviveu a “bombardeios e incêndios em suas instalações, cerco de turbas fanáticas, censura, bloqueio alfandegário aos insumos que possibilitavam a impressão e, por fim, a ocupação e roubo de seus bens imóveis, suas instalações e equipamentos de trabalho.”

Um dos momentos mais trágicos da história do jornal foi o assassinato de seu diretor, Pedro Joaquín Chamorro Cardenal, em 10 de janeiro de 1978, durante a ditadura Somoza. 

Governo Ortega anuncia centro cultural em homenagem à intelectual que defendia imprensa 

O novo capítulo da perseguição ao La Prensa surpreendeu não apenas pela suposta ilegalidade da tomada da sede, mas porque usou o nome de um intelectual com história associada à defesa da liberdade de expressão e de imprensa.

Na terça-feira (23), Rosario Murillo anunciou em uma cerimônia fechada que a sede do La Prensa seria transformada no “Centro Cultural e Politécnico José Coronel Urtecho”, a ser administrado pelo Instituto Tecnológico Nacional (Inatec). 

A procuradora-geral da República (PGR), Wendy Morales, entregou às autoridades do Inatec a escritura que afirma que o imóvel estava “devidamente registrado em favor do Estado”.

Jornais estatais publicaram as declarações da vice-presidente, associando o centro cultural à espiritualidade e ao “rompimento com o passado”

Rosario Murillo Nicarágua Daniel Ortega
Rosario Murillo (foto: perfil Twitter)

“Aqueles lugares que foram tocas de maquinação de crimes contra a humanidade, hoje são centros de espiritualidade profunda.

“Estes são os últimos dias de ódio, porque esta pátria abençoada e nosso povo, o povo de Deus, exigem, diariamente exigem paz e bem, harmonia, segurança, tranquilidade.” 

“No Centro Cultural e Politécnico José Coronel Urtecho, o passado não voltará”.

Ironicamente, Murillo fez parte deste passado. Ela trabalhou no La Prensa na década de 70. Ana María Chamorro Holman, conhecida como Dona Anita, apontou a incoerência na entrevista ao Infobae.

“É incrível que seja ela”. 

Ela era muito do La Prensa quando trabalhou conosco, por sete anos foi secretária de Pedro (Joaquín Chamorro Cardenal). Daquela Rosario Murillo eu não esperava, mas desta eu espero tudo”.

O confisco da sede despertou protestos de entidades defensoras da liberdade de imprensa e de figuras importantes no jornalismo.

Do exílio, Carlos Chamorro salientou a ilegalidade da ação à luz da constituição do país, e afirmou que “o jornalismo não será confiscado”. 

No comunicado sobre o novo uso da sede, que já estaria em obras e teve o logotipo do jornal removido,  a direção do La Prensa explica que a Constituição Política da Nicarágua, que em seu artigo 44 “garante o direito de propriedade privada de bens móveis e imóveis e de instrumentos e meios de Produção”.

“Este artigo proíbe o confisco de bens e estabelece que os funcionários que violarem esta disposição “responderão sempre com seus bens pelos danos infligidos”.

E critica o uso do nome do poeta e intelectual nicaraguense José Coronel Urtecho para o centro cultural, apontado como justificativa para a nova destinação da propriedade.

“Em 1973, quando La Prensa voltou a circular após o terremoto de Manágua, o poeta Coronel Urtecho enviou um telegrama que dizia: ‘Parabéns pelo reaparecimento de La Prensa’.

Para a consciência do país, quando o La Prensa deixa de ser publicado, é como se nada tivesse acontecido, ou tudo fosse mentira”.

A direção do La Prensa afirmou que “vai buscar a justiça nos lugares e nos momentos possíveis, para recuperar o que nos pertence por direito e exigir punição contra aqueles que, abusando de seu poder, violaram nossos direitos e as leis do país”. 

Imprensa católica no alvo do governo nicaraguense 

As iniciativas para sufocar vozes dissidentes na Nicarágua pelo regime de Daniel Ortega atingiram também a imprensa católica.

Em julho, imagens da expulsão de freiras da Associação Missionárias da Caridade, ordem fundada por Madre Teresa de Calcutá, chocaram o mundo, com as religiosas sendo escoltadas pela polícia para deixarem o país a pé.

Na primeira semana de agosto, autoridades nicaraguenses fecharam veículos de comunicação associados à Igreja Católica e invadiram templos religiosos para apreender equipamentos de radiodifusão.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos disse que estava ciente do fechamento das rádios católicas, ocorrido após uma “ação policial violenta” e pediu que o governo “cessasse imediatamente” a repressão aos cidadãos nicaraguenses.

Sob Ortega, Nicarágua é 160º do mundo em liberdade de imprensa 

O ranking anual de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras lista a Nicarágua na 160ª posição entre 180 países, responsabilizando diretamente Daniel Ortega pela situação crítica.

Na América Latina, apenas Cuba e Honduras estão em posição pior (173º e 165º respectivamente). 

Presidente da Nicarágua desde 2007, após um primeiro mandato de 1979 a 1990, Ortega “não pára por nada para controlar notícias e informações e usa uma combinação de assédio legal e estrangulamento econômico contra a mídia independente”, afirma a RSF.

A organização destaca medidas como suspensão de publicidade estatal, restrições à importação de insumos e equipamentos jornalísticos, auditorias abusivas, detenções arbitrárias e “leis absurdas e inconstitucionais”.