Londres – Menos de seis meses depois da entrada em vigor do artigo 207.3 do Código Penal da Rússia, criminalizando a disseminação de “fake news” sobre o exército do país, pelo menos 100 pessoas já foram processadas com base no dispositivo criado para controlar manifestações sobre a guerra com a Ucrânia em desacordo com a narrativa do governo.
Entre os casos mais recentes estão os dois primeiros envolvendo militares russos, de acordo com a organização de defesa dos direitos humanos Агора (Agora), que defende 34 dos acusados. Eles são Ilya Karpenko, da cidade de Petropavlovsk-Kamchatsky e Valery Kotovich, em Rostov-on -Don, que está detido.
O número de pessoas processadas por “desacreditar o exército” é bem maior, mas a pena é mais branda. Na semana passada, o diretor da entidade, Pavel Chikov estimou que 3,5 mil casos já tenham tramitado nos tribunais russos, a maioria resultando em condenação.
‘Fake news’ x ‘desacreditar exército da Rússia’
O artigo artigo 207.3 foi introduzido no Código Penal da Federação Russa em 4 de março, após a invasão da Ucrânia pelo regime de Vladimir Putin, que determinou proibições como a de chamar o conflito de guerra ou invasão.
Ele prevê que “a disseminação pública de informações deliberadamente falsas sobre o exército da Federação Russa” pode valer multas e penas de prisão de até três, cinco, 10 ou 15 anos, dependendo das circunstâncias e se o crime teve “consequências graves”.
Outro artigo, o 280.3, afirma que “ações públicas destinadas a desacreditar o uso das forças armadas da Federação Russa” são puníveis com multas e penas de prisão de até três anos em casos menores, ou cinco anos se houver danos resultantes à vida, propriedade, ordem pública e segurança.
Segundo o jornal russo Kommersant, o Ministério da Justiça da Rússia distribuiu em agosto um manual a investigadores e juízes explicando a diferença entre desacreditar o exército e a ofensa mais grave, a de espalhar fake news.
A Agora relatou que na semana passada, mais sete casos de indiciamento sob o artigo 207.3 chegaram ao seu conhecimento, fazendo o total passar de 100.
Entre os novos casos está o de Ilya Ponomarev, um ex-deputado do parlamento russo (Duma) expulso por atividades anti-Kremlin e que vive agora em Kiev.
Logo após o atentado a bomba que matou a filha do filósofo Aleksander Dugin, considerado por muitos “o cérebro de Putin”, ele acusou o Exército Nacional Republicano de ter sido o autor do ataque. O grupo clandestino teria como objetivo derrubar o regime de Putin.
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A organização afirma 57 dos acusados foram enquadrados na parte 2 do artigo 207.3, que classifica a infração como grave e prevê pena de 5 a 10 anos de prisão.
Outros 24 foram indiciados sob a primeira parte do texto legal, que classifica o ato como de baixa gravidade e pode levar a até três anos de prisão.
Pavel Chikov destacou o caso do deputado Dmitry Petrenko, de Omsk, acusado de sete episódios de espalhar fake news sobre o exército de uma só vez.
A organização não deu detalhes sobre o que levou ao indiciamento dos militares. Mas a imprensa ocidental tem noticiado casos de deserção ou de descontentamento com a guerra.
Em julho, a rede de notícias Radio Free Europe transmitiu um vídeo mostrando o que seria um motim de dois soldados, enviado pela mãe de um deles.
Entre os que já foram condenados pelo artigo 207.3 está a jornalista Marina Ovsyannikova, sentenciada a dois meses de prisão domiciliar após ser acusada por um tribunal da Rússia de “divulgar fake news” sobre o exército do país.
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Acusações atingem até quem deixou a Rússia
A perseguição a quem supostamente desrespeita o exército russo se estende a cidadãos exilados. A Agora contabilizou 32 casos – um em cada três – em que os acusados não estão na Rússia.
“No entanto, os casos contra eles são investigados, eles são presos à revelia, colocados na lista de procurados, seus bens são presos”, explica Chikov.
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Dentre os acusados que estão em território russo, 28 estão detidos e seis mantidos em prisão domiciliar.
Nove sentenças já foram proferidas pelos tribunais. A primeira foi a do deputado municipal Alexei Gorinov , de Moscou, sentenciado a sete anos de prisão.
O motivo foi a oposição a um projeto de concurso infantil no distrito. Durante uma reunião política, ele disse discordar do projeto porque havia crianças morrendo na Ucrânia. Uma gravação da reunião foi postada no YouTube, despertando a ira do governo.
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Outro condenado à prisão, Eduard Shcherbakov recebeu uma pena de seis meses em uma colônia penal por infração enquadrada na primeira parte do artigo 207.3.
Os demais casos julgados resultaram em condenações a trabalho corretivo e multas entre 1 milhão e 3 milhões de rublos (R$ 86 mil a R$ 260 mil).
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