Londres – Houve um tempo em que sediar grandes eventos era garantia de publicidade favorável para o país, mas não é o que está acontecendo com a Copa do Mundo no Catar e a COP27 no Egito, nações com histórico negativo de respeito aos direitos humanos.
Ambos são notórios por atos de censura, cerceamento da liberdade de expressão e perseguições a dissidentes ou a quem não se alinha aos princípios religiosos, sobretudo mulheres e pessoas LGBTQ+. E os grandes eventos ocorrem em uma época em que tais práticas não são mais toleradas.
Nas semanas que antecedem as aberturas do campeonato de futebol e da conferência do clima, preocupações sobre restrições ao trabalho da imprensa, riscos para torcedores e obstáculos a manifestações disputam espaço com conversas sobre as seleções favoritas e o futuro do planeta.
Na Copa do Mundo do Catar, direitos humanos em evidência
O Catar é criticado pela criminalização de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e seu histórico de desrespeito aos direitos humanos.
A Copa do Mundo no país já começou diferente, marcada para novembro para fugir do calor do meio do ano, fato inédito na história da competição.
Logo após a escolha do país como sede, a Fifa enfrentou denúncias de corrupção para a decisão de levar o torneio a um local que não parecia reunir as melhores condições climáticas ou sociais, como liberdade de imprensa e de expressão e um ambiente seguro para visitantes.
Depois vieram acusações de trabalho escravo na construção dos estádios, assunto que continua nas manchetes e nas conversas em redes sociais.
Elas podem ter motivado alguns itens do regulamento divulgado pelo governo do Catar para o trabalho da imprensa durante o evento, que não costuma se limitar aos jogos, estendendo-se à vida do país.
Essa é a opinião da Repórteres Sem Fronteiras, que na semana passada fez uma nota condenando exigências consideradas uma “forma engenhosa” de o governo do Catar desencorajar os jornalistas a fazerem reportagens fora dos estádios.
O pacote proíbe fotos e filmagens em “propriedades residenciais, empresas privadas e áreas industriais”, o que para a RSF é uma tentativa de bloquear a cobertura sobre alojamentos dos operários.
Quem teve a ideia de brigar para levar a Copa do Mundo para o país talvez esteja arrependido, pois as proibições não impedirão matérias negativas. Podem no máximo dificultar imagens. E podem ainda virar crise maior, caso alguma imagem seja veiculada e o autor receba punição.
A Federação Internacional de Jornalistas fez outra nota, pedindo garantias para o trabalho das profissionais mulheres.
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Torcedores também estão no alvo. Em uma entrevista à Sky News, que repercutiu em todo o mundo, o dirigente principal da Copa do Mundo do Catar garantiu que pessoas LGBTQIA+ serão respeitadas, podendo “até” ficar de mãos dadas em público.
Mas informou que bêbados serão levados para um lugar especial para se recuperarem.
E pediu que os torcedores desfrutem do torneio esportivo “sem transformá-lo em plataforma de declarações políticas”.
Nada mais anacrônico no universo do esporte, em que atletas usam a atenção da mídia internacional para se posicionarem sobre causas, como o combate ao racismo.
Foi o que aconteceu nos Jogos Olímpicos do Japão, por exemplo, em que atletas aproveitaram a visibilidade para abordar temas sensíveis como a doença mental.
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A primeira seleção a verbalizar críticas ao país-sede da Copa do Mundo foi a da Austrália. Em um vídeo divulgado na quinta-feira (27), 16 jogadores criticaram o tratamento do país anfitrião aos trabalhadores migrantes e à comunidade LGBTQ +.
Vários atletas, incluindo Jackson Irvine, Bailey Wright e Jamie Maclaren, juntamente com o presidente do sindicato Professional Footballers Australia (PFA), Alex Wilkinson, se revezaram em breves declarações.
Eles reconheceram que as condições melhoraram para os trabalhadores no estado do Golfo, mas observaram que a implementação das reformas “continua inconsistente e requer melhorias”.
O capitão do time, Ryan, disse:
“Existem valores universais que devem definir o futebol. Valores como respeito, dignidade, confiança e coragem.
“Quando representamos nossa nação, aspiramos incorporar esses valores.”
A message from the Socceroos. pic.twitter.com/Sd2R6ej8kK
— Subway Socceroos (@Socceroos) October 26, 2022
Enquanto isso, no Reino Unido, uma declaração do Secretário de Relações Exteriores britânico, James Cleverly, em uma entrevista de rádio na quarta-feira (26) foi fortemente criticada
Ele disse que os torcedores LGBT devem “ser respeitosos” e mostrar “flexibilidade e compromisso” no Catar durante a Copa do Mundo, o que foi interpretado como um pedido para que manifestações de afeto não fossem feitas em público em respeito aos valores islâmicos do país.
Um dos que criticou foi o ex-jogador e atual comentarista esportivo da BBC Gary Lineker, uma das figuras mais seguidas nas redes sociais britânicas.
Ele indagou: “seja lá o que você faça, não faça nada gay. É esta a mensagem?”
Whatever you do, don’t do anything Gay. Is that the message? https://t.co/u7wf9tD4Xb
— Gary Lineker (@GaryLineker) October 26, 2022
Apesar de ser presidente da FA (Football Association) e aparecer regularmente em estádios, o príncipe William não vai ao Catar, segundo divulgou a assessoria.
O motivo oficial é “agenda cheia”, mas a ausência foi interpretada como sendo associada aos problemas de direitos humanos do país-sede.
No Egito, protestos cerceados
Também no Egito a COP27 promete ser diferente da edição passada do evento, em Glasgow, mas não pela data e sim pela participação popular.
Há um ano, a cidade escocesa foi tomada por manifestantes, que protagonizaram demonstrações criativas e divertidas, incluindo uma passeata de jovens liderada por Greta Thunberg e por outros jovens ativistas de vários países.
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Sharm el-Sheikh, onde acontecerá a conferência, é uma cidade balneária frequentada por turistas ocidentais e tem vida social intensa. Os visitantes circulam livremente por bares e restaurantes, como em qualquer cidade turística.
Mas não é isso que acontece no restante do país. O regime que sufocou ativistas da Primavera Árabe é criticado pela repressão e censura, sob o comando do General Abdel Fattah Saeed Hussein Khalil as-Sisi.
O caso mais notório é o de Abd El-Fattah, preso há sete anos por “divulgar notícias falsas”. Ele está em greve parcial de fome desde abril.
O The Guardian publicou na semana passada uma texto de autoria de Naomi Klein, que colabora com o Intercept e é professora de Justiça Climática na Universidade British Columbia, sobre a campanha que a família empreende para libertá-lo.
O título é Lavagem verde de um estado policial. Ela questionou a pouca importância dada à situação do preso pela comunidade internacional que estará no Egito daqui a alguns dias.
Abd El-Fattah escreve cartas temáticas semanais à família, mas na semana em que o tema era mudança climática a carta não foi entregue, mesmo não tendo mencionado o governo ou a COP27, segundo Klein.
O espaço para ativistas é outro ponto controverso. Há duas semanas, o Financial Times apontou que altos custos de hospedagem, dificuldades de visto e medo de expor manifestantes a riscos estariam levando algumas ONGs a limitarem atos fora da zona azul do pavilhão oficial.
O espaço reúne cientistas, políticos, líderes empresariais, celebridades e ativistas para trocar ideias sobre questões climáticas importantes, mas muitos ativistas não têm acesso a ele e usam as ruas para se posicionar.
Só que situação pode ser ainda pior. Na última segunda-feira (24/10), o Guardian disse ter visto um e-mail da ONU informando que o governo do Egito teria proibido eventos no pavilhão em 7 de novembro, quando os líderes mundiais estarão na conferência.
Várias organizações protestaram pelo fechamento do espaço cívico, medida que não ajuda em nada na busca de soluções para o problema que afeta o futuro da humanidade. Diálogo e pressão fazem parte da equação.
Esses dois eventos não devem deixar saldo positivo de imagem para os países-sede, que não perceberam que mar cristalino como o do balneário egípcio escolhido para sediar a COP27 e estádios monumentais construídos para a Copa do Catar não são suficientes para ocultar verdades incômodas e violações dos direitos humanos.
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