Londres – O Brasil Ć© nĆ£o sĆ³ um dos dez paĆ­ses com maior nĆŗmero de assassinatos de jornalistas como tambĆ©m um dos dez de maior impunidade para os autores desses crimes. A conclusĆ£o Ć© do ƍndice Global de Impunidade 2022 divulgado pelo ComitĆŖ de ProteĆ§Ć£o aos Jornalistas (CPJ).

O Brasil aparece na oitava posiĆ§Ć£o entre os de maior nĆŗmero de assassinatos de jornalistas (13) e na nona colocaĆ§Ć£o considerando a quantidade desses crimes em relaĆ§Ć£o Ć  populaĆ§Ć£o do paĆ­s (0,06 por milhĆ£o de habitantes).

O levantamento considera assassinatos cometidos entre 1Āŗ de setembro de 2012 e 31 de agosto de 2022 e que nĆ£o foram solucionados atĆ© hoje. O campeĆ£o de assassinatos no perĆ­odo Ć© o MĆ©xico, mas a lĆ­der do ranking, que considera a proporĆ§Ć£o com a populaĆ§Ć£o, Ć© a SomĆ”lia.

Oito em cada dez assassinatos de jornalistas na Ćŗltima dĆ©cada permanecem impunes

Ao longo dos Ćŗltimos dez anos, o estudo registrou 263 assassinatos de jornalistas em retaliaĆ§Ć£o ao seu trabalho.

NinguƩm foi responsabilizado em 206 desses casos, o que equivale a uma impunidade completa em 78% do total apurado.

O Ć­ndice sĆ³ relaciona os assassinatos que permanecem em total impunidade. NĆ£o inclui aqueles para os quais foi feita justiƧa parcial, como nos casos em que os acusados foram mortos durante a prisĆ£o ou nas condenaƧƵes de alguns dos suspeitos, mas nĆ£o de todos.

TambĆ©m nĆ£o sĆ£o incluĆ­dos os casos em que suspeitos se encontram sob custĆ³dia, mas sem nenhuma condenaĆ§Ć£o, ou mortes de jornalistas cobrindo combates ou eventos de risco, como protestos que se tornaram violentos.

O ƭndice da dƩcada terminada em 2022 permanece em linha com o apurado na dƩcada encerrada em 31 de agosto de 2021, na qual a total impunidade foi constatada em 81% dos assassinatos relacionados ao trabalho de jornalistas do perƭodo.

SomƔlia lidera impunidade pelo oitavo ano consecutivo

Considerando o nĆŗmero de assassinatos de jornalistas em relaĆ§Ć£o Ć  populaĆ§Ć£o, a SomĆ”lia continua na lideranƧa do ranking de impunidade pelo oitavo ano consecutivo. Ɖ o Ćŗnico paĆ­s com mais de um crime desse tipo por milhĆ£o de habitantes.

Aparecem no Ć­ndice apenas onze paĆ­ses porque somente foram consideradas as naƧƵes com pelo menos cinco assassinatos nĆ£o resolvidos de jornalistas durante a dĆ©cada encerrada em agosto de 2022.

Ranking de Impunidade dos Assassinatos dos Jornalistas ComitĆŖ de ProteĆ§Ć£o dos Jornalistas

Seis dos paĆ­ses listados na ediĆ§Ć£o 2022 apareceram em todas as 15 ediƧƵes do ranking: SomĆ”lia, MĆ©xico, Iraque, Filipinas, PaquistĆ£o e ƍndia. O AfeganistĆ£o apareceu em 14 e o Brasil em 13, seguidos pela SĆ­ria com 9 e o SudĆ£o do Sul com 8 apariƧƵes.

A vice-diretora editorial do CPJ, Jennifer Dunham, comenta em artigo em que comenta os resultados do levantamento que se esperava que as Filipinasmelhorassem sua performance depois da eleiĆ§Ć£o do presidente Ferdinand Marcos Jr.

PorĆ©m, ela conta que a esperanƧa caiu por terra depois dos assassinatos de dois comentaristas de rĆ”dio – Percival Mabasa, um veemente crĆ­tico do presidente eleito, e Renato Blanco, que noticiava sobre polĆ­tica local e corrupĆ§Ć£o.

Quanto a Mianmar, Ć© a primeira vez que aparece no levantamento de paĆ­ses de maior impunidade de assassinatos de jornalistas, depois de ter sido incluĆ­do no ranking dos piores carcereiros de jornalistas do mundo divulgado em dezembro de 2021 pelo CPJ.

Dunham ressalta que a inclusĆ£o de Mianmar no ranking acontece como consequĆŖncia do golpe que suspendeu a democracia em fevereiro de 2021, a partir da qual a junta militar prendeu dezenas de jornalistas.

A partir de entĆ£o, o CPJ atribui Ć  junta a responsabilidade pelo assassinato de pelo menos trĆŖs jornalistas, entre eles Aye Kyaw e Soe Naing, que apĆ³s fotografar protestos foram presos e mortos sob custĆ³dia.

As ausĆŖncias de RĆŗssia e Bangladesh

O ranking deste ano Ć© o primeiro em que RĆŗssia e Bangladesh nĆ£o aparecem desde que o Ć­ndice comeƧou a ser compilado em 2008.

Isso porque a RĆŗssia registrou trĆŖs assassinatos nĆ£o resolvidos de jornalistas no perĆ­odo e Bangladesh quatro, abaixo da linha de corte de cinco para figurar no ranking.

Mas Dunham esclarece essa ausĆŖncia  nĆ£o significa que a liberdade de imprensa tenha melhorado nos dois paĆ­ses.

Ela ressalta que Bangladesh continua a prender jornalistas sob a Lei de SeguranƧa Digital, eque um ā€“ Mushtaq Ahmed ā€“ morreu na prisĆ£o sob circunstĆ¢ncias pouco claras em 2021, depois de supostamente sofrer abusos fĆ­sicos sob custĆ³dia policial.

Quanto Ć  RĆŗssia, ela reforƧa que hĆ” muito tempo figura entre os piores paĆ­ses do mundo em homicĆ­dios de jornalistas, com repĆ³rteres que cobrem setores como corrupĆ§Ć£o oficial e violaƧƵes dos direitos humanos rotineiramente visados por seu trabalho.

Ela menciona que desde que Vladimir Putin assumiu o poder no final de 1999, pelo menos 25 jornalistasforam assassinados em retaliaĆ§Ć£o a seu trabalho, mas que nos Ćŗltimos anos os homicĆ­dios tĆŖm diminuĆ­do Ć  medida em que se diminuiu o espaƧo da imprensaindependente.

Dunham cita o exemplo da Novaya Gazeta, que jĆ” foi um dos principais veĆ­culos investigativos na RĆŗssia, e que teve pelo menos seis de seus jornalistas e colaboradores mortos em virtude desuas corajosas reportagens desde 2000.

No entanto, ela ressalta que em 2022, tanto a Novaya Gazeta como centenas de outros veĆ­culos nĆ£o puderam mais atuar de forma independente na RĆŗssia. Ela cita uma fala de setembro do PrĆŖmio Nobel e editor-chefe da Novaya Gazeta, Dmitry Muratov:

ā€œNa RĆŗssia, o genocĆ­dio da mĆ­dia foi consumado. Os cidadĆ£os russos estĆ£o sozinhos diante da propaganda do governoā€.

MĆ©xico lidera quantidade de assassinatos de jornalistas nĆ£o resolvidos

Com 28 assassinatos de jornalistas nĆ£o solucionados na Ćŗltima dĆ©cada, o MĆ©xico Ć© o paĆ­s do ranking com a maior quantidade de crimes desse tipo que permanecem impunes, o que o torna o mais perigoso do hemisfĆ©rio ocidental para a prĆ”tica do jornalismo.

Apesar desse nĆŗmero elevado, o paĆ­s aparece em sexto no ranking da impunidade, porque as classificaƧƵes sĆ£o calculadas em proporĆ§Ć£o Ć  populaĆ§Ć£o do paĆ­s.

Impunidade assassinatos de jornalistas ComitĆŖ de ProteĆ§Ć£o dos Jornalistas

Pelo menos 13 jornalistas foram mortos no MĆ©xico nos primeiros nove meses de 2022, o nĆŗmero mais alto jĆ” documentado pelo CPJ naquele paĆ­s em um Ćŗnico ano.

Pelo menos trĆŖs desses jornalistas foram assassinados em retaliaĆ§Ć£o direta por sua reportagem sobre crime e corrupĆ§Ć£o polĆ­tica, e tinham recebido ameaƧas antes de suas mortes. O CPJ estĆ” investigando o motivo dos outros 10 assassinatos para determinar se eles estavam relacionados ao trabalho.

Em marƧo deste ano, as autoridades mexicanas destacaram que 16 pessoas haviam sido detidas em conexĆ£o com os assassinatos de seis jornalistas em 2022.

A vice-diretora Jennifer Dunham, porĆ©m, ressalta que a maior taxa de prisƵes ainda nĆ£o levou a condenaƧƵes. AlĆ©m disso, ela destaca que alguns dos detidos ā€“ como os suspeitos do assassinato do jornalista Jacinto Romero Flores em 2021 ā€“ foram libertados por falta de provas.

No Brasil, perigos crescentes na cobertura de questƵes ambientais e sociais

Com relaĆ§Ć£o ao Brasil, Jennifer Dunham menciona o assassinato em junho do jornalista britĆ¢nico Dom Phillips, junto com o indigenista Bruno Pereira, como evidĆŖncia dos perigos enfrentados pelos jornalistas que cobrem a AmazĆ“nia e temas ambientais em geral.

Ela tambĆ©m destaca o assassinato em fevereiro do jornalista comunitĆ”rio Givanildo Oliveira por supostos membros do Comando Vermelho, que demonstrou os riscos crescentes enfrentados pelos jornalistas na cobertura de favelas e comunidades marginalizadas do Brasil.

Outro caso destacado no artigo de Dunham Ć© o do radialista esportivo ValĆ©rio Luiz de Oliveira, assassinado a tiros em GoiĆ¢nia em 2012, em retaliaĆ§Ć£o Ć s suas crĆ­ticas Ć  gestĆ£o do ex-presidente do AtlĆ©tico Goianense, MaurĆ­cio Sampaio, apontado como mandante do crime.

Ela menciona os repetidos adiamentos do julgamento de Sampaio ocorridos ao longo de 2022 e o comentĆ”rio do filho da vĆ­tima, que classificou o esforƧo para punir os assassinos como ā€œum pesadelo que nunca acabaā€.

O pesadelo mencionado quase acabou logo depois da publicaĆ§Ć£o do artigo. Dez anos depois do crime, o dirigente MaurĆ­cio Sampaio foi finalmente julgado e condenado a 16 anos de prisĆ£o como mandante do assassinato de ValĆ©rio Luiz no dia 9 de novembro. 

SĆ³ que dois dias depois um desembargador da justiƧa local emitiu ordem para que aguarde o julgamento dos recursos em liberdade.

Iniciativas para diminuir a impunidade

Para Dunham, os resultados do Ć­ndice 2022 demonstram que o desafio da impunidade dos crimes contra jornalistas na Ćŗltima dĆ©cada continua avassalador, apesar de no mesmo perĆ­odo ter vigorado o Plano de AĆ§Ć£o das NaƧƵes Unidas sobre a SeguranƧa de Jornalistas e a QuestĆ£o da Impunidade, lanƧado em 2012 justamente combater a impunidade em casos de violĆŖncia contra a imprensa.

Como iniciativa mais recente, ela ressalta o projeto ā€œA Safer World For The Truthā€ [ā€œUm mundo mais seguro para a verdadeā€], executado pelo CPJ e organizaƧƵes parceiras para combater a impunidade contra jornalistas em todo o mundo.

O objetivo Ć© unir forƧas para investigar casos antigos de jornalistas assassinados que nĆ£o tenham sido solucionados, descobrindo novas informaƧƵes para areabertura dos processos criminais para punir os culpados.

Como exemplo de resultado, ela cita os depoimentos de testemunhas no inĆ­cio deste ano no no Tribunal Popular do projeto em Haia, a respeito do assassinato do jornalista do Sri Lanka Lasantha Wickrematunge, impune desde 2009.

Com a iniciativa, foi apresentada uma abundĆ¢ncia de provas que apontam para a culpabilidade do homicĆ­dio pelo MinistĆ©rio da Defesa ā€“ liderado na Ć©poca por Gotabaya Rajapaksa, que renunciou ao cargo de presidente do paĆ­s em julho.