Londres – A cassação da licença de impressão do Novaya Gazeta e da revista fundada pela equipe do jornal é mais um capítulo em uma história de censura ao jornalismo independente pelo regime de Vladimir Putin, tendo como protagonistas dois detentores do Prêmio Nobel da Paz, Mikhail Gorbachev e Dmitry Muratov.

Nesta segunda-feira (5), o jornal mais perseguido na Rússia, que Gorbachev ajudou a criar utilizando o dinheiro recebido da fundação Nobel em 1990, teve sua autorização revogada por um tribunal em Moscou a pedido do órgão regulador de mídia do país, o Rozkomnadzor, sob acusação de infringir uma norma burocrática em 2006.

No dia seguinte (6), o Tribunal Basmanny de Moscou invalidou o registro de uma revista lançada pelo Novaya Gazeta em julho passado, também sob alegações burocráticas. 

Dmitry Muratov, alvo da censura de Putin

Na prática, ambos já estavam com as publicações suspensas e site inacessíveis no território, mas as decisões têm significado político e confirmam a repressão sem precedentes à liberdade de imprensa e de expressão em curso na Rússia depois da invasão da Ucrânia. 

Dmitry Muratov recebeu o Nobel de 2021 junto com a jornalista filipina Maria Ressa, cujo site de notícias, o Rappler, também briga na justiça contra assédio judicial tentando impedir seu funcionamento. 

Criado há 30 anos, o jornal sempre desafiou a censura e as perseguições do governo de Vladimir Putin. Uma de suas jornalistas, Anna Politkovskaya, foi assassinada em 2006 em circunstâncias até hoje não esclarecidas.

Ela havia denunciado o regime Putin por corrupção, violações de direitos humanos e abusos cometidos por autoridades russas durante a guerra na Chechênia. 

Quando a guerra com a Ucrânia começou, o Novaya Gazeta tinha edições impressas e online. O jornal suspendeu a impressão e parou de atualizar o site no dia 28 de março, por ter recebido uma segunda advertência do órgão regulador, que poderia custar a licença. 

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Mesmo assim, o regime de Putin achou uma forma de extinguir o veículo – cujo site também já tinha sido bloqueado na Rússia – utilizando como justificativa uma questão administrativa ocorrida em 2006 – e dessa forma não podendo ser diretamente acusado de censura. 

“O Roskomnadzor entrou com uma ação exigindo a invalidação do registro da versão impressa do Novaya Gazeta sobre o não fornecimento da carta do conselho editorial dentro do período de tempo estabelecido pela legislação de mídia”, disse o órgão à agência de notícias russa Interfax em julho. 

No entanto, segundo a defesa, a exigência da carta só entrou em vigor em 2018. Diante do tribunal nesta segunda-feira, o editor-chefe da Novaya Gazeta, Dmitry Muratov, disse que vai apelar: 

“Esta é uma decisão insignificante, uma decisão política feita sob medida. sem a menor base legal”. 

Em um comunicado publicado na versão europeia do jornal, Muratov disse que o jornal estava sendo cassado por “uma falha em fornecer ao Roskomnadzor um pedaço de papel em um momento em que o órgão ainda não existia na natureza”, e acrescentou que os “escriturários possuem todos os documentos”. 

Ele lamentou a decisão. 

O jornal se foi. Roubaram 30 anos de vida de seus funcionários. Leitores foram privados do direito de receber informações.

O jornalista lembrou os profissionais que morreram “no cumprimento do dever profissional”, salientando que estavam “morrendo de novo”. Mas disse que o Novaya Gazeta não precisa do papel, pois o jornal “foi, é e será”. 

Governo Putin também cancelou revista de Muratov 

Muitos jornalistas deixaram a Rússia depois da invasão, incluindo parte da equipe do Novaya Gazeta, alvo de censura e de intimidações por parte do governo Putin não apenas sobre Muratov, mas também sobre os integrantes de seu jornal. 

Em abril, eles fundaram o site Novaya Gazeta Europa com ajuda de um fundo da organização Repórteres Sem Fronteiras para apoiar jornalismo no exílio.

O site logo foi bloqueado na Rússia a pedido da Procuradoria Geral, mas segue funcionando para quem utiliza VPN para navegar na internet ou acessa de fora do país. 

Alguns profissionais do Novaya Gazeta que ficaram no país desafiaram a censura criando a revista New Story Gazeta (conhecida como NO), em versões impressa e digital. O lançamento foi no dia 15 de julho.

Para os russos, a novidade durou pouco. Menos de 10 dias depois o site foi bloqueado e a distribuição proibida. 

Agora, a revista também perdeu a licença para funcionar- Na decisão anunciada na terça-feira (6), o Tribunal Basmanny de Moscou disse que o registro da publicação datava de 2009, mas ela não era publicada “há muito tempo”. 

A defesa do Novaya Gazeta destacou que o processo deu entrada no tribunal em 22 de julho, depois que a edição inaugural havia sido publicada e amplamente divulgada. Além disso, a editora afirma que notificou o órgão regulador sobre o lançamento no dia 1º de junho.

Exemplares foram apresentados na audiência. No entanto, o representante do Roskomnadzor disse “acreditar que a revista não foi publicada, pois não há exemplares de agosto”. 

Muratov perseguido pelo governo russo 

O prêmio Nobel da Paz concedido em 2021 a Dmitry Muratov chamou a atenção para a censura e violações à liberdade de imprensa na Rússia de Putin, mas pode ter ajudado a tornar a situação ainda pior para o jornalista, que ao se tornar celebridade global atraiu ainda mais a ira do governo. 

Dias depois de o jornal ser fechado, Muratov – que não se exilou – foi atacado com tinta vermelha quando viajava em um trem. O jornal acusa funcionários da inteligência do governo de serem os autores do ano, mas nenhuma investigação foi concluída ou divulgada. 

Em agosto, o jornal foi multado em 350 mil rublos (R$ 28,5 mil) sob o dispositivo de ‘disseminação de informações deliberadamente falsas’ do Código de Ofensas Administrativas, segundo a organização de defesa dos direitos humanos OVD-Info, por um vídeo publicado antes do início da guerra. 

Na semana passada, Dmitry Muratov voltou a enfrentar a censura publicando no site do Novaya Gazeta russo reportagens e análises sobre a morte de Mikhail Gorbachev, que implantou a glasnost (abertura) na então União Soviética. 

O jornalista participou do cortejo fúnebre do líder que ajudou a fundar o Novaya Gazeta. Em 1993, o último presidente soviético utilizou parte do dinheiro recebido do Nobel para comprar os computadores da redação, um deles exposto no local até hoje.