Londres – A família real britânica já viveu muitas crises provocadas por entrevistas explosivas para a imprensa, como a da princesa Diana em 1995, mas a julgar pelo segundo trailer divulgado nesta segunda-feira (5), nada se compara ao que está por vir com o documentário Harry & Meghan da Netflix. 

Mais do que fofocas de celebridades ou briga entre irmãos, o que está em jogo é o status quo britânico, pois o abalo na imagem da monarquia é visto como um risco à sua continuidade quando ela perdeu seu principal esteio, a rainha Elizabeth, e os movimentos republicanos ganharam força. 

No segundo trailer do documentário da Netflix, Harry não mediu palavras sobre as acusações de maus tratos à Meghan, com a frase “ninguém sabe a verdade, nós sabemos”. 

Documentário da Netflix sobre Harry e Meghan terá seis capítulos 

O programa começa a ser exibido em 8 de dezembro, e terá seis capítulos. Mas nem todos irão ao ar ao mesmo tempo, como tem ocorrido em outras séries recentes, incluindo The Crown.

Primeiro serão exibidos três blocos, e no dia 15 de dezembro os demais. 

O motivo pode ser uma estratégia para manter as atenções sobre novas revelações por mais tempo, aumentando o estrago na imagem da realeza e de seus principais membros – o irmão de Harry, primeiro na linha de sucessão, e o pai do duque de Sussex, o rei Charles III.

Os rumores são de que Kate Middleton, atual princesa de Gales, também será um dos alvos.

Coincidência ou não, o dia escolhido para o lançamento do segundo set de capítulos é o mesmo em que ela será anfitriã de um evento de canções de natal na abadia de Westminster, que terá a presença do rei Charles e da rainha consorte. 

Em pouco mais de 20 horas, o trailer desta segunda-feira já tinha mais de 1,3 milhões de visualizações no YouTube, além de ter sido extensivamente reproduzido por emissoras de TV. No Reino Unido, os principais jornais dedicaram espaço em suas capas ao programa. 

Mas houve também críticas. O uso de quatro imagens para ilustrar o assédio da mídia ao casal virou motivo de controvérsia, pois elas não eram relacionadas a eles ou não foram fruto do trabalho de fotógrafos paparazzi. 

Algumas mostram fotógrafos cobrindo o lançamento de um filme da série Harry Potter, ocorrido anos antes de o casal se unir e que nem contava com a presença de membros da família real.

Em outra, Harry e Meghan aparecem andando de costas com o filho e no primeiro plano há a lente de uma câmera. Mas a imagem foi capturada em uma sessão de fotos oficial do casal, quando eles deixavam o local, não tendo sido fruto de indiscrição.

No entanto, esses detalhes podem não ser suficientes para amenizar o peso dos ataques, que incluem o assédio da mídia. Harry refere-se à sua mãe, a princesa Diana, para falar do sofrimento inflingido às mulheres que se tornam parte da família.

E faz comentários sobre a prática de a família real vazar ou “plantar” notícias na imprensa sobre seus desafetos, tratada por ele como “jogo sujo”. 

Nos funerais da rainha Elizabeth, Harry, Meghan, William e Kate apareceram juntos para visitar tributos deixados pela população em homenagem à avó. 

Desde que eles romperam com a família real, mudaram-se para os EUA e deram uma explosiva entrevista à apresentadora americana Oprah Winfrey, em que falaram abertamente de racismo supostamente sofrido por Meghan por um membro da realeza jamais identificado, tinha sido um dos poucos sinais de aproximação entre os dois irmãos.

O futuro rei da Inglaterra e Harry haviam estado juntos no funeral do avô, o príncipe Philip, 2021. Mas foi um encontro rápido, e naquele momento as feridas ainda não estavam tão abertas.

Desde então foram várias manifestações pouco lisonjeiras de Harry e Meghan a respeito da realeza. 

Ainda assim, em meio à comoção pela morte da rainha, houve especulações sobre uma possível reaproximação, e sugestões de que o conteúdo da biografia de Harry (prevista para sair em janeiro) e do documentário da Netflix pudesse ser revisto. O trailer mostrou que não. 

Duque e duquesa de Sussex alijados 

No entanto, quem se surpreende com o teor agressivo do documentário que vai ao ar a partir de quinta-feira pode não ter acompanhado todos os sinais. 

Quando anunciaram a decisão de se mudar para os EUA, Harry e Meghan queriam continuar com parte de suas atividades oficiais na realeza, como parte do seleto grupo de “working members”.

São os que trabalham participando de eventos oficiais, viagens, recepções a chefes de estado e visitas representando não apenas a monarquia mas o próprio país, já que o monarca é o chefe de estado. 

Na carta em que anunciaram a decisão de se afastar do país, eles escreveram: 

“Depois de muitos meses de reflexão e discussões internas, optamos por fazer uma transição este ano para começar a desenhar um novo papel progressivo dentro desta instituição.

Pretendemos deixar de ser membros ‘sênior’ da Família Real e trabalhar para nos tornarmos financeiramente independentes, continuando a apoiar totalmente Sua Majestade, a Rainha.

Parecia perfeito, só que não colou. Fofocas sinalizam que a rainha seria simpática à ideia (ela tinha um carinho especial pelo neto Harry).

Mas o veto teria vindo de Charles e William e de outros conselheiros, que não achavam apropriado os dois seguirem com suas funções e ao mesmo tempo terem uma vida paralela ganhando dinheiro com eventos, livros, documentários e ainda estando livres para falar o que quisessem, sem estarem submetidos às regras da família real. 

A partir daí, Harry perdeu também vários títulos e cargos de patrono de instituições, incluindo militares, o que para ele foi um golpe duro.

Ele serviu 10 anos nas forças armadas, foi à guerra do Afeganistão e tem como um de seus principais projetos sociais a competição Invictus Games, de esportes para pessoas feridas em conflitos. 

Porém, havia uma vaga esperança de que com a morte da rainha e a ascensão de Charles ao trono, alguma flexibilidade para criar paz na família e evitar mais petardos na guerra de relações públicas pudesse ser adotada. 

Não foi o que aconteceu.  Após assumir o trono, Charles III pediu ao Parlamento uma mudança na Lei de Regência para permitir que os irmãos Anne e Edward, possam substituí-lo em compromissos oficiais, somando-se ao príncipe William e sua mulher, Kate.

Isso significa que o segundo filho, Harry, sai definitivamente da lista de possíveis substitutos, e de working members, quando a lei for sancionada. 

A medida também resolve outro problema, o do príncipe Andrew, que caiu em desgraça depois da amizade com o pedófilo Jeffrey Epstein e o processo movido por uma jovem que o acusou de abuso sexual.

Documentário da Netflix é parte da guerra de RP entre Harry e Meghan e a realeza

Depois que as cartas foram colocadas na mesa por Charles III, a guerra de relações públicas entre Harry e Meghan e o restante da família se tornou mais agressiva, e o documentário da Netflix é somente uma parte dela. 

Na semana passada, o príncipe William e Kate fizeram uma visita oficial de três dias aos EUA, com direito a encontro com Joe Biden e uma cerimônia cheia de estrelas do show business para anunciar os vencedores da iniciativa ambiental Earthshot Prize. 

Harry e Meghan ficaram fora da festa, com notícias divulgadas pela família real de que um encontro entre eles “não estava nos planos”. 

No primeiro dia do casal real nos EUA, a Netflix divulgou o primeiro trailer do documentário Harry & Meghan.

Com mais de 7 milhões de visualizações, o clip ofuscou  ainda mais uma visita que já tinha começado assombrada pelo fantasma do racismo, depois que uma graduada assistente da rainha Elizabeth e agora da rainha consorte Camilla fez um estrago na imagem da realeza com um diálogo com uma ativista negra durante uma cerimônia em Buckingham. 

E ainda vem mais. A biografia de Harry teve o lançamento adiado após a morte da rainha Elizabeth, e ventilou-se a hipótese de que ele poderia suavizar algumas passagens. 

Pode até ser que ele o faça em trechos que se refiram à avó. Mas as chances de amenizar os ataques ao restante da família, sobretudo ao pai e ao irmão, são cada vez menores. 

Por outro lado, a família real supostamente vai reagir. Embora não tenha havido manifestações oficiais sobre o documentário da Netflix ou sobre as acusações de Harry e Meghan, “fontes” do Palácio de Buckingham disseram à mídia britânica que haverá resposta ao que considerarem impreciso ou injusto. 

Como vai ser o documentário da Netflix 

Ganhar seu próprio dinheiro, sem depender da realeza para viver, foi um dos motivos alegados para a mudança para os EUA. Meghan Markle era atriz antes de se casar com o príncipe Harry. Ela trabalhou no seriado Suits, entre outros papéis. 

Eles criaram a empresa Archewell Productions em 2020, quando se radicaram fora do Reino Unido. Um dos contratos foi com a Netflix, com valor estimado em US$ 100 milhões. 

A série reúne depoimentos e também cenas gravadas em viagens e eventos oficiais, como a participação de Harry e Meghan no prêmio Earthshot este ano. 

Na apresentação do programa, a Netflix diz:

“A série explora os dias em que o namoro ainda era clandestino e os desafios que os levaram a se sentirem forçados a se afastar de seus papéis em tempo integral na instituição.

Com comentários de amigos e familiares, muitos dos quais nunca falaram publicamente antes sobre o que testemunharam, e historiadores que discutem o estado da Comunidade Britânica hoje e o relacionamento da família real com a imprensa, a série faz mais do que iluminar a história de amor de um casal. , pinta uma imagem do nosso mundo e como tratamos uns aos outros.”

A direção está a cargo da  diretora de documentários Liz Garbus, que também dirigiu Ghosts of Abu Ghraib, Bobby Fischer Against the World, Love, Marilyn e What Happened, Miss Simone?. 

Em uma entrevista recente à revista Variety, Meghan sugeriu que não teria controle total sobre o produto final.

“É bom poder confiar nossa história a alguém – um diretor experiente cujo trabalho admiro há muito tempo – mesmo que isso signifique que pode não ser da maneira que teríamos contado”.

Conhecendo o casal e a habilidade de Meghan com a mídia, é difícil crer que exista algo que eles não teriam contado, ou que teriam contado de uma outra forma. Os trechos dos trailers são uma evidência.

O casal fala abertamente  sobre a hierarquia da família real, a relação com a imprensa de tabloides e com os próprios parentes.

 “Que diabos aconteceu?”, disse Harry em um trecho. “Existe uma hierarquia da família. Você sabe, há vazamento, mas também há o plantio de histórias.” “É um jogo sujo”.

Em outro, ele fala da “dor e o sofrimento das mulheres que se casam nesta instituição – esse frenesi de alimentar [a mídia] ”, tendo ao fundo imagens de sua mãe, a princesa Diana e Kate Middleton sendo seguidas por paparazzi. 

Meghan então diz: “Eu percebi, eles nunca vão te proteger”. 

Na imprensa britânica, jornais favoráveis à monarquia e ligados ao lado conservador do país estão furiosos. Desde a semana passada atacam Harry e Meghan pelo documentário.

Alguns se utilizaram da história das imagens de paparazzi para questionar o realismo da série, como fizeram os tabloides Daily Mail e o The Sun, que chegou a usar a palavra “lies” (mentiras) em sua manchete. 

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Mas as notícias em torno do programa também ocupam espaço nos jornais menos inclinados a uma defesa apaixonada da família real. O prestígio da monarquia vale muito para o país, inclusive na arena internacional. 

O chamado soft power britânico (a capacidade de influenciar outras nações sem uso de armas ou de recursos financeiros) é fortemente apoiado na mística da realeza, que encanta dignatários em seus palácios e é recebida com pompa em visitas a outros países. 

Um exemplo foi o dos EUA na semana passada. Joe Biden deixou Washington para ir se encontrar com o príncipe William em Boston, sinal do interesse no chamado “relacionamento especial” entre os Estados Unidos e o Reino Unido. 

O impressionante é como uma briga familiar, que pode ter começado com implicâncias que acontecem em qualquer família entre noras, sogras e genros, tomou a proporção épica que agora se vê.

Embora não seja o primeiro programa de TV ou livro a abordar as rusgas familiares e as sérias acusações de racismo, o documentário Harry & Meghan da Netflix promete ser a bomba atômica desta guerra. 

Os dois ainda amargam baixa popularidade no Reino Unido. Segundo o Instituto de pesquisas YouGov, Harry está em 9º entre os membros da realeza em admiração, enquanto Meghan ocupa o 13º lugar, perdendo apenas para o príncipe Andrew.

O documentário e outras manifestações de apoio podem ajudar a virar este jogo. Nesta terça-feira (6), o casal recebe em Nova York um prestigiado prêmio de direitos humanos concedido pela fundação Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, em reconhecimento à sua posição “heróica” contra o racismo dentro da família real.