Londres – O terremoto causado pelo livro de memórias do príncipe Harry não está abalando apenas a monarquia, mas também a reputação da imprensa, principalmente a britânica.
Culpar a mídia por notícias desfavoráveis não é novidade. No entanto, a dimensão da batalha que uma das maiores celebridades do mundo contemporâneo resolveu travar é impressionante.
No domingo (8), Harry declarou em entrevista ao apresentador Tom Bradbey, da ITV, que reformar a imprensa britânica virou “o trabalho de sua vida”.
Harry e a mágoa com a imprensa
No livro Spare e em entrevistas prévias, Harry desfia um rosário de reclamações que jornalistas especializados em acompanhar a família real chamam de “obsessão”.
Ele próprio dá elementos para essa percepção em suas memórias, quando relata que sua terapeuta apontou ‘vício em notícias’ como um problema a ser trabalhado.
Compreensivelmente, a morte da mãe, a princesa Diana em um automóvel perseguido por paparazzi é um trauma para ele e para o irmão, William.
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Mas nos anos que se seguiram, a mágoa parecia sob controle. Os tabloides noticiavam as estripulias de Harry, como o uso de uniforme nazista, assim como outras situações constrangedoras para a família real.
Ainda assim, jornalistas desses veículos continuaram a participar de eventos e viagens da realeza, em uma relação de interesse mútuo. O príncipe Harry não se demonstrava desconfortável ou pouco colaborativo com a imprensa, incluindo os tabloides.
Até que veio o casamento com Meghan. Na visão do casal, os tabloides encarnam o mal do mundo e causaram o sofrimento que os fez deixar o país.
Os jornais sensacionalistas britânicos pegam pesado, sim. Mas nem todos os jornalistas do que o príncipe Harry generaliza como “imprensa britânica” são racistas ou discriminam estrangeiros − embora alguns certamente o façam.
Nem todas as notícias negativas são perseguições ou invenções. E várias que incomodaram Harry, Meghan e a família real não tiveram origem em tabloides.
O hipermonarquista Daily Telegraph sempre foi um dos mais críticos na época da briga de Meghan com o pai, vista como uma baixaria que destoava da discrição da família real. E não perdoou a ida do casal para os EUA, tratada como traição à rainha Elizabeth, que sempre se demonstrou carinhosa com o neto.
Em 2021, o conservador The Times publicou reportagens devastadoras sobre doações à fundação do então príncipe Charles. Algumas em dinheiro vivo, outras supostamente em troca de comendas reais concedidas em segredo.
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Outro exemplo é o apresentador de TV Piers Morgan, da rede ITV, que em 2021 perdeu o emprego na emissora por duvidar dos pensamentos suicidas de Meghan revelados à apresentadora Oprah Winfrey.
Depois de confrontado por um colega, Morgan levantou-se da bancada e deixou o estúdio. Em seguida, foi demitido. E abriu um debate sobre racismo na imprensa.
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Tabloides, exemplo do bem contra o mal na imprensa
Os tabloides não são os únicos responsáveis pela cobertura negativa de Harry e Meghan, mas são o inimigo perfeito em uma narrativa maniqueísta de bem contra o mal, inclusive judicialmente.
Em 2022, Meghan ganhou uma ação contra o Daily Mail por causa da publicação de trechos da carta enviada por ela ao pai após o casamento, primeiro grande escândalo a atingir o casal.
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Harry move atualmente três processos contra empresas que editam tabloides.
No documentário da Netflix, a imprensa foi tratada como inimiga pública número 1 do casal, responsável por uma ação orquestrada contra Meghan.
O curioso na narrativa do Príncipe Harry em Spare e nas entrevistas para divulgar o livro é que, ao mesmo tempo em que demoniza a imprensa, o príncipe acusa assessores do Palácio e membros da família de terem vazado informações para jornais com o objetivo de destruir a imagem de Meghan e supostamente forçar o “Megxit”.
No melhor estilo “mate o mensageiro”, ele culpa a imprensa por aceitar o jogo, que estaria sendo feito por sua própria família − a mesma a quem ele parece agora querer perdoar.
Em uma surpreendente volta atrás do que havia dito antes, ele chegou a dizer nas entrevistas recentes que não acha a monarquia racista.
De novo, teria sido a imprensa britânica a inventar essa tese, embora a primeira jornalista a verbalizar isso tenha sido a americana Oprah ao comentar a revelação do casal de que alguém tinha perguntado sobre a cor da pele do filho que esperavam.
Isso aconteceu em 2021, e a imprensa do mundo inteiro destacou a acusação velada de racismo. No entanto, apenas agora Harry diz que não foi bem isso que disse.
Não há santos nessa história. A estabilidade da monarquia é assunto de Estado em um país que tem imagem e negócios associados a ela.
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Com exceção do jornal The Guardian, a grande mídia britânica é controlada por aristocratas ou grupos conservadores. A família real usa os instrumentos de que dispõe para se promover e se proteger, como empresas e instituições fazem.
Até onde esse uso foi ético durante todo o tempo será difícil descobrir. Assim como também é difícil descobrir se os assessores e amigos de Harry e Meghan também plantaram ou vazaram informações incômodas para a realeza.
Mais difícil ainda é Harry colocar em prática o seu projeto de vida: transformar um ecossistema de mídia em que notícias sobre celebridades são elemento vital, porque o público as consome. Uma regra válida em todo o mundo, não apenas no Reino Unido.
Os principais programas de entrevista dos EUA abriram espaço para entrevistas com Harry por ocasião do lançamento do livro, e o motivo disso chama-se audiência.
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Entretanto, mesmo que ele não atinja seu objetivo, o estrago para a confiança no bom jornalismo – inclusive aquele que denuncia práticas questionáveis da família real britânica ou de outros poderosos – foi feito.
A guerra santa do príncipe magoado defendendo sua família indefesa de uma imprensa malvada pode contribuir para deteriorar ainda mais a confiança do público na instituição imprensa, o que não é bom para a sociedade.
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