Londres – O terremoto que atingiu a Turquia e a Sรญria no dia 6 de fevereiro jรก deixou mais de 40 mil mortos e abalou tambรฉm as jรก frรกgeis estruturas da democracia turca, com um cerco crescente de censura e intimidaรงรฃo a jornalistas que tentam cobrir o desastre humanitรกrio e a cidadรฃos que se expressam nas mรญdias sociais.
Desde o tremor as autoridades turcas jรก detiveram pelo menos quatro jornalistas, abriram investigaรงรตes criminais contra dois repรณrteres e um comentarista, e perseguiram ou dificultaram o trabalho de pelo menos outros seis profissionais da imprensa, de acordo com reportagens e jornalistas ouvidos pelo Comitรช de Proteรงรฃo a Jornalistas (CPJ).
As denรบncias de violaรงรฃo se somam ao bloqueio do Twitter, que deixou de funcionar por algumas horas logo apรณs o terremoto, provocando protestos de organizaรงรตes internacionais como a AccessNow devido ao efeito sobre aรงรตes humanitรกrias e resgate de feridos.
E segundo reportagem da agรชncia Reuters, a polรญcia jรก teria prendido pelo menos 78 pessoas acusadas de criar medo e pรขnico ao “compartilhar mensagens provocativas” sobre o terremoto da semana passada nas redes sociais.
O governo criou um aplicativo para smartphone que permite aos usuรกrios denunciar pessoas que supostamente produziram ou disseminaram notรญcias falsas ou desinformaรงรฃo online.
''Dezenformasyon Bildirim Servisi'' halkฤฑmฤฑzฤฑn kullanฤฑmฤฑna aรงฤฑlmฤฑลtฤฑr.
Deprem felaketine iliลkin รผretilen ve yayฤฑlan ลรผpheli/yalan olduฤunu dรผลรผndรผฤรผnรผz haberleri uygulamamฤฑzฤฑ telefonunuza indirip bildirebilirsiniz.
Android:https://t.co/JgoKE3Xyot pic.twitter.com/6VQfXyDnQ9
— Fahrettin Altun (@fahrettinaltun) February 7, 2023
Terremoto complica imagem do governo
No poder desde 2003, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoฤan, รฉ um notรณrio inimigo da liberdade de expressรฃo e imprensa. O paรญs ocupa o 149ยบ lugar no ranking de liberdade de imprensa da organizaรงรฃo Repรณrteres Sem Fronteiras.
O terremoto aconteceu em um momento ruim para seu governo, que enfrenta eleiรงรตes gerais em maio.
O desastre natural pode acabar sendo a cartada final em um paรญs que enfrenta uma forte inflaรงรฃo e questionamentos crescentes ร autoridade de Erdoฤan e de seu Partido da Justiรงa e Desenvolvimento (AKP).
Por conta do terremoto, comeรงaram a emergir notรญcias sobre a relaรงรฃo do atual governo turco com empreiteiras responsรกveis pela construรงรฃo de novos prรฉdios no paรญs – muitos dos quais desabaram agora.
Quando Erdoฤan cegou ao poder, em 2003, fazia pouco tempo que a Turquia havia passado por outro grande terremoto, em 1999. ร รฉpoca, foram aprovadas novas regras para a construรงรฃo de edifรญcios, que deveriam ter estruturas mais protegidas para o caso de novos tremores.
Ainda assim, segundo fontes internacionais, o governo de Erdoฤan fez acordo com empreiteiras e perdou falhas em novas construรงรตes, alegando urgรชncia para a criaรงรฃo de novas moradias.
O representante de um comitรช de engenheiros, arquitetos e urbanistas disse, em entrevistas ร BBC, que atรฉ 75 mil edifรญcios na รกrea afetada pelo terremoto no sul da Turquia tiveram anistias de construรงรฃo concedidas pelo governo.
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Censura a jornalistas na Turquia
Com tantas crises para gerenciar apรณs o terremoto, o governo da Turquia parece ter optado, mais uma vez, pela opรงรฃo mais fรกcil: a censura a jornalistas e cidadรฃos. O clima no paรญs estรก cada vez mais tenso para quem noticia assuntos desfavorรกveis ao atual governo e para os usuรกrios de redes sociais.
Desde o terremoto, vรกrios profissionais de imprensa relatam terem sofrido perseguiรงรฃo de autoridades ou dificuldades para realizar seu trabalho de cobertura em campo, a maioria deles trabalhando em veรญculos de oposiรงรฃo ao governo de Erdogan.
O jornalista Merdan Yanardaฤ e o comentarista Enver Aysever enfrentam investigaรงรตes criminais desde o dia 7 de fevereiro, quando foram acusados pelo gabinete do procurador-chefe de Istambul de โprovocar o povo ร animosidade e รณdioโ, segundo o Comitรช de Proteรงรฃo a Jornalistas, citando reportagem da agรชncia de notรญcias estatal Anatolia Agency.
O relatรณrio diz ainda que as investigaรงรตes foram motivadas por comentรกrios feitos ao vivo por Yanardaฤ durante o jornal da TELE1, canal prรณ-oposiรงรฃo do qual o jornalista รฉ editor-chefe e รขncora.
Jรก a investigaรงรฃo contra Aysever estaria relacionada a postagens que ele fez nas redes sociais – o comentarista tem 1,7 milhรฃo de seguidores em sua conta no Twitter e cerca de 56 mil inscritos em seu canal de YouTube, onde costuma postar comentรกrios polรญticos.
Confira uma das entrevistas recentes do jornalista (รฉ possรญvel ativar legendas automรกticas em portuguรชs ou inglรชs):
Se condenados, os profissionais podem pegar entre um e trรชs anos de prisรฃo.
Em outro caso, as autoridades estรฃo investigando Mehmet Gรผleล, um repรณrter da agรชncia de notรญcias prรณ-curda-curda Mezopotamya, por supostamente โespalhar desinformaรงรฃoโ, de acordo com reportagens da mรญdia local.
A polรญcia deteve Gรผleล na cidade sudeste de Diyarbakฤฑr em 8 de fevereiro enquanto ele entrevistava um trabalhador de resgate, e perguntou se o voluntรกrio havia criticado a reaรงรฃo do estado ao desastre. A investigaรงรฃo decorre daquela entrevista, que nรฃo foi publicada.
Ele tambรฉm enfrenta de um a trรชs anos de prisรฃo se for acusado e condenado, segundo o CPJ. O Comitรช listou outros casos de repรณrteres que foram detidos, interrogados, agredidos ou impedidos de acessar รกreas afetadas pelo desastre natural.
Censura a cidadรฃos depois do terremoto
As tentativas de censura praticadas pelo governo da Turquia para conter crรญticas depois do terremoto chegaram tambรฉm ร s redes sociais, com as quais Erdogan tem uma briga histรณrica.
Em 2021, quando o paรญs foi devastado por incรชndios florestais, o Ministรฉrio Pรบblico da Turquia abriu uma investigaรงรฃo sobre o conteรบdo compartilhado com a hashtag โ#HelpTurkeyโ nas redes sociais. E ameaรงou multar canais de TV que exibam imagens ao vivo dos incรชndios ou matรฉrias โque provocassem medo e preocupaรงรฃoโ.
Embora as TVs tenham em sua maioria obedecido, nas redes sociais a intimidaรงรฃo nรฃo teve efeito, e a tentativa ganhou visibilidade internacional.
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Desta vez Erdogan foi mais longe: em vez de apenas intimidar, suspendeu o Twitter no dia 8 de fevereiro e restaurou o acesso supostamente depois de uma conversa com os dirigentes da rede social. Segundo a ONG de direitos digitais Access Now, apenas usuรกrios com Redes Privadas Virtuais (VPNs) conseguiram acessar a plataforma.
โAs vidas das pessoas estรฃo em jogo apรณs o terremoto mortal e a crise humanitรกria em curso na Turquia. Este รฉ um momento desastroso para o governo desconectar as pessoas das plataformas de comunicaรงรฃoโ, disse Felicia Anthonio, gerente de campanha #KeepItOn da Access Now.
โO que milhรตes de pessoas em toda a Turquia precisam รฉ de uma internet aberta, segura, confiรกvel e acessรญvel para se manter conectado, acessar informaรงรตes, solicitar doaรงรตes e apoio humanitรกrio e apoiar coletivamente uns aos outros.โ
Nรฃo รฉ a visรฃo do governo, que prefere bloquear contas para nรฃo ser criticado e usa as redes sociais para intimidar.
No dia 10 de fevereiro, a polรญcia tuitou informando que jรก tinham sido identificados 302 donos de contas “que fizeram postagens provocativas sobre o terremoto em plataformas de mรญdia social, dos quais 37 pessoas foram detidos, 10 presos”.
A nota acrescenta que “sites que querem abusar de nossos cidadรฃos benevolentes foram fechados”.
Sosyal medya platformlarฤฑnda depreme iliลkin provokatif paylaลฤฑmlarda bulunan 302 hesap yรถneticisi tespit edildi. 37 ลahฤฑs gรถzaltฤฑna alฤฑndฤฑ, 10'u tutuklandฤฑ.
Yardฤฑmsever vatandaลlarฤฑmฤฑzฤฑ suistimal etmek isteyen internet sitelerinin kapatฤฑlmasฤฑ saฤlandฤฑ. pic.twitter.com/ghvrH3Trun— Tรผrk Polis Teลkilatฤฑ (@EmniyetGM) February 10, 2023
O Parlamento da Turquia aprovou em outubro de 2022 um projeto de lei apresentada pelo partido do governo que prevรช condenaรงรฃo a jornalistas e cidadรฃos a atรฉ trรชs anos de prisรฃo por conteรบdo classificado como desinformaรงรฃo e fake news.
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