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Dia da Mulher: Jornalistas que cobrem conflitos falam de ameaças, medos e emoções

Mulher jornalista cobrindo guerra

Foto: Engin Akyurt /Pixabay

Londres – Dez mulheres jornalistas foram mortas em crimes relacionados ao trabalho em 2022, a maioria delas trabalhando em zonas de conflito, em um ano marcado pelo aumento da violência contra a imprensa

Aproveitando o Dia Internacional da Mulher, a Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) está colocando as mulheres que relatam conflitos no centro das atenções para destacar os desafios diários que enfrentam, suas necessidades de segurança e a importância da adoção de instrumentos internacionais que proíbam a violência e os ataques contra jornalistas.

“Mulheres jornalistas enfrentam desafios extremos ao fazer reportagens em zonas de guerra, desde ataques e ameaças militares até intimidação policial, vigilância e violência de gênero. Mas registrar o que acontece em dzonas de conflito e áreas de agitação civil também é uma oportunidade para as mulheres ajudarem a mudar a narrativa”, diz a organização. 

Violência contra mulheres jornalistas maior em zonas de guerra 

Da cobertura de guerras a movimentos de protesto, mulheres jornalistas que trabalham em áreas violentas assumem riscos imensos em nome da liberdade de informação, salienta a organização.

“Lutar contra a censura do governo, a retaliação e desconstruir a desinformação é um desafio diário para muitas”

“Podemos cobrir e veicular reportagens sobre pobreza, inflação e até mesmo críticas do público a questões políticas e políticos, mas falar sobre os responsáveis ​​por essas guerras – cujas políticas foram a razão pela qual elas estouraram – é extremamente difícil, “, disse Farzana Ali , chefe do departamento de TV da Aaj News em Peshawar, que enfatizou quantas histórias humanas não são contadas por medo da repressão.

Foto: Kamran Ali / divulgação IFJ)

“Temos que trabalhar com muito cuidado ao fazer essas reportagens. Por exemplo, logo após o 11 de setembro, acompanhamos as operações (militares) realizadas contra terroristas e muitas reportagens foram ao ar. 

Mas na segunda fase das operações, como a Operação Zarb-e-Azb (2014), a mídia não foi capaz de cobrir a situação com a mesma liberdade. Tivemos que cortar muitas coisas.”

Jornalista da Ucrânia: violência x emoções 

Há um ano, a jornalista ucraniana Hanna Chernenko, natural da região de Donbass. cobre a guerra em seu país para as empresas de mídia locais Visti Television News Service e Hromadske Radio. Ela também regularmente auxilia equipes de mídia internacional que viajam para a Ucrânia, atuando como “fixer”. 

Diferentemente de outras colegas, ela conta que não se sentiu ameaçada particularmente por ser mulher, e que sempre recebeu apoio de outros jornalistas e das forças oficiais e militares. Mas o maior desafio é emocional.

 Hanna Chernenko / Foto: NUJU/divulgação IFJ

Fiz reportagens nos meses em que Kharkiv era um front de batalha. Aldeias nos subúrbios estavam ocupadas, e os russos estavam a algumas centenas de metros dos locais onde trabalhávamos. […]  

Os problemas que enfrentei estavam principalmente relacionados a medos e emoções pessoais. Uma cidade, um vilarejo que ontem era seguro, […] onde sonhava construir uma casa à beira do lago, de repente se torna um local de batalha. Para poder realizar seu trabalho nessas condições, é preciso superar medos e apreensões.”

A realidade vivida pela ucraniana é uma exceção à regra. A segurança é uma das principais preocupações das mulheres repórteres, expostas a riscos de serem sequestradas, abusadas fisicamente ou presas. 

Em muitas zonas de conflito, ser jornalista não garante pr0teção, apesar das convenções internacionais. E a falta de equipamentos de segurança adaptados ao corpo da mulher e a ausência de protocolos de segurança da mídia colocam as mulheres jornalistas em risco ainda maior, diz a IFJ. 

“O assassinato de Shireen Abu Akleh [jornalista palestina] dobrou o medo de ir a campo entre os jornalistas. Matar um jornalista tão proeminente tornou o trabalho do resto de nós ainda mais difícil e assustador, pois percebemos que ninguém estava seguro ”, diz a jornalista e instrutora de segurança da IFJ Areen Amleh, da emissora de TV pública palestina. 

“Geralmente, os desafios na Palestina decorrem da ocupação israelense, o que significa que somos forçados a desempenhar nossas funções em condições extremamente perigosas, muitas vezes colocando nossas vidas em risco”, diz a jornalista.

Areen Al-Amleh (divulgação IFJ)

O ataque direto a jornalistas durante a cobertura tornou o desempenho de nossa atividade profissional ainda mais perigoso. 

O simples fato de sermos jornalistas não garante mais que não seremos alvos diretos. Como jornalista mulher em uma sociedade não completamente liberta de suas restrições tradicionais, isso torna minha situação e a de minhas colegas ainda mais árdua.”

Ter uma visão clara da situação no terreno, evitar divulgar locais onde estará, encontrar amigas próximas que possam ajudar em caso de problemas, adotar códigos de emergência com a redação e traçar um plano B antes da reportagem são algumas das dicas compartilhadas pelas mulheres repórteres. 

“Minha prisão deu um bom exemplo para o veículo onde trabalho e meus colegas jornalistas serem extremamente cuidadosos com a segurança ao fazer reportagens ”, disse a jornalista de Mianmar Naw Betty Han.

Ela trabalhava para o independente Frontier Mianmar antes do golpe militar em 2021, que tornou o país um lugar ainda mais perigoso para  jornalistas. Mas a situação já era crítica antes. 

Foto: Naw Betty Han/ divulgação IFJ

Em 2020, enquanto investigava um investimento chinês de bilhões de dólares na fronteira entre Tailândia e Birmânia, ela e um fotógrafo foram detidos por uma milícia patrocinada pelo exército birmanês.

Os dois foram vendados, algemados, conduzidos a um seringal e espancados. Ela vive hoje na Tailândia, de onde continua trabalhando. 

“Após o golpe de estado, a situação piorou. No passado, era perigoso cobrir notícias, mas depois do golpe militar, ser jornalista tornou-se muito perigoso, com risco de prisão a qualquer momento.

Mesmo antes de deixar Mianmar, tive que manter minha profissão de jornalista em segredo. Quando meus pais eram questionados sobre mim, diziam que eu havia parado de trabalhar como jornalista há muito tempo.”

Riscos para mulheres no Afeganistão 

O Afeganistão é o exemplo mais contundente de país palco de conflito que reprimiu as mulheres jornalistas em uma escala que obrigou a maioria a deixar a profissão ou mesmo a se exilar. 

Desde que o Talibã tomou o poder, em 2021, o cerco se fechou para as mulheres no país, e particularmente para as mulheres jornalistas. Algumas tentaram resistir, mas acabaram desistindo mesmo diante do apoio corajoso de colegas. 

A paquistanesa Farzana Ali relatou sua experiência fazendo reportagens no país, há dois anos. 

“Foi uma experiência extremamente difícil, e enfrentamos muitos problemas. O Talibã capturou minha equipe e me senti culpada por isso ter acontecido porque eu era mulher e poderia ser a razão.

Em uma ocasião, disseram-nos para não seguir em frente e ir para Jalalabad – era difícil tomar uma decisão que poderia nos colocar em perigo ainda mais. Havia uma pressão psicológica sobre mim por ser a “chefe”.

O líder do Talibã questionou minha equipe sobre por que eles estavam viajando com uma mulher quando isso era contra a [lei islâmica] sharia, acrescentando que as mulheres não podem ser chefes de acordo com a religião. Foi bastante alarmante.”

A precariedade na profissão é outro problema crescente, segundo a IFJ. Em muitas partes do mundo, a ausência de contratos de trabalho ou seguro, brechas de segurança digital e salários em atraso obrigam muitos jornalistas a assumirem riscos adicionais para sobreviver.

Mas reportar de zonas de conflito e zonas de tensão também é uma oportunidade para as mulheres jornalistas fazerem uma mudança na narrativa do conflito, desafiarem os estereótipos de gênero e reportarem de forma diferente.

Um olhar diferente sobre a guerra 

“Às vezes, ser mulher até se torna um trunfo para acessar determinados locais e conversar com fontes”, diz a IFJ. 

“As mulheres podem ser mais capazes de realizar tarefas jornalísticas, seja na cobertura da guerra ou não, devido ao duplo impacto da natureza, cultura e tradições da sociedade iemenita ”, diz Thuraya Dammaj, editora da mídia online Yemen Future .

O país, que vive desde 2014 um conflito sangrento, teve dois episódios recentes de violência contra profissionais de imprensa, um deles vitimando uma mulher jornalista grávida que ia para a maternidade. 

Dammaj é testemunha da instabilidade política do país e da crescente hostilidade à imprensa.

Thuraya Dammaj (foto: divulgação IFJ)

“O Iêmen é classificado como um dos piores lugares para jornalistas do mundo. O país está em guerra há quase nove anos e testemunha terríveis incidentes de violações contra jornalistas que impedem as formas mais simples de liberdade e independência de imprensa.

Ccerca de 50 jornalistas iemenitas foram mortos pelos grupos em guerra desde 2014.

Todos os meios de comunicação da oposição em áreas densamente povoadas de Houthi foram fechados, enquanto aqueles localizados em áreas do governo iemenita internacionalmente reconhecido sucumbiram à polarização e retórica de contra-incitação.”

Nas comemorações pelo dia 8 de março, a IFJ voltou a cobrar de governos de todo o mundo o combate à impunidade e violência perpetrada contra mulheres jornalistas.

A entidade pressiona os Estados a ratificarem a Convenção nº 190 da OIT contra a violência e o assédio no mundo do trabalho e a apoiarem a Convenção liderada pela IFJ sobre a segurança e a independência dos jornalistas e profissionais que trabalham em meios de comunicação.

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