A saída do apresentador da Fox News Tucker Carlson, nesta segunda-feira (24), menos de uma semana depois de a rede ter aceitado pagar uma indenização de R$ 3,9 bilhões em um processo de difamação movido pela fabricante de urnas eletrônicas Dominion, pegou o mercado de surpresa por envolver uma das figuras mais importantes do elenco da casa.
No mesmo dia veio a notícia de outra demissão, desta vez na CNN.
A vítima foi o âncora Don Lemon, que há dois meses teve que se desculpar por comentários sexistas sobre a candidata à presidência Nikki Haley, tendo afirmado que aos 51 anos ela “já tinha passado da idade”.
Saída de Tucker Carlson e de Lemon foi ‘separação’
Além de sua identificação com as narrativas que levaram ao processo de difamação, Carlson também é alvo de um processo movido pela ex-produtora Abby Grossberg, o que pode ter contribuído.
Ela acusa o apresentador de antissemitismo e de ter sido coagida por advogados da empresa a dar respostas falsas no caso da Dominion.
Nem a CNN nem a Fox atribuíram os desligamentos às controvérsias causadas pelos dois âncoras.
Mas ambas usaram uma palavra semelhante nos comunicados: “separação”.
Isso demonstra que eles não eram funcionários comuns, e sim “parceiros” fortemente identificados com a imagem das respectivas empresa de mídia, razão pela qual as demissões repercutiram imediatamente no mundo.
“A CNN e Don se separaram”, disse o presidente da CNN, Chris Licht, em um memorando para a equipe.
O texto também foi publicado na conta da rede no Twitter, no tom protocolar adotado nesse tipo de comunicado.
“Don sempre fará parte da família CNN e agradecemos a ele por suas contribuições nos últimos 17 anos.
Desejamos-lhe felicidades e estaremos torcendo por ele em seus projetos futuros.”
Mas pelo Twitter, onde tem 1,4 milhões de seguidores, Lemon se disse surpreso e se considerou demitido sem que ninguém tivesse “a decência de conversar diretamente”.
A CNN negou que não tivesse havido conversa, publicando outra nota em que diz que declaração era “imprecisa”.
Saída de Carlson também foi abruta
O discurso da Fox, de propriedade do magnata da mídia Rupert Murdoch, foi parecido com o da CNN:
“Fox News Media e Tucker Carlson concordaram em se separar.
Agradecemos por seus serviços à rede como apresentador e antes disso, como colaborador.”
A exemplo da demissão de Don Lemon, a de Carlson parece ter sido abrupta. E segundo rumores não confirmados pela Fox, teria sido uma decisão do próprio Murdoch.
Não haverá despedida do programa diário que ele apresentava no horário nobre desde 2016.
O último foi ao ar na sexta-feira (21). A Fox anunciou que a partir da demissão, o programa passaria a ser exibido com outros apresentadores em sistema de rodízio, sem uma estrela.
Os advogados da produtora Abby Grossberg distribuíram um comunicado sugerindo que o processo foi decisivo para a saída do âncora.
Tucker Carlson e a audiência da Fox
Tucker Carlson entrou para a história do jornalismo como uma figura controvertida, que não hesitou em tomar partido do ex-presidente Donald Trump, defender a tese das eleições roubadas e se colocar contra o isolamento e as vacinas da covid-19.
Outros na Fox também fizeram isso, mas ele se tornou o mais notório, fazendo o discurso que o púbico de direita e extrema-direita da Fox queria ouvir – e fazendo disparar a audiência aproveitando a polarização dos EUA.
Tanto que lá ficou tantos anos, sem ser incomodado pela direção a cada vez que uma nova polêmica surgia.
Ele chegou a admitir em uma entrevista que embora tentasse, nem sempre conseguia evitar mentir na TV.
No entanto, a maré virou quando a Fox teve que pagar uma indenização de mais de R$ 3 bilhões à Dominion, que a processou por difamação pedindo US$ 1,6 bilhão.
Há outro processo em curso, aberto por outra empresa de urnas, a Starmatic, que busca US$ 2,7 bilhões em danos.
Out
Pouco antes de o julgamento da causa da Dominion começar, no dia 18 de abril, o juiz anunciou que as partes haviam feito um acordo.
O desfecho foi interpretado como uma condenação à Fox pela desinformação transmitida por seus apresentadores a respeito da lisura das eleições que tiraram Donald Trump do cargo.
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Tucker Carlson era figura central na acusação, e teria que depor no julgamento.
No curso do processo, mensagens trocadas por ele com outros integrantes da Fox criaram constrangimentos, revelando que ele odiava Donald Trump e não via a hora de poder deixar de falar do ex-presidente.
Carlson chamou Trump de “força demoníaca” e disse que odiava o ex-presidente “apaixonadamente” em mensagens de texto para um funcionário desconhecido da Fox dois dias antes dos distúrbios de 6 de janeiro, mostraram documentos judiciais.
Outras mensagens demonstraram que o próprio Rupert Murdoch e apresentadores da rede tinham conhecimento de que a tese de fraude eleitoral defendida por convidados aliados de Trump não era verdadeira.
Em uma delas, o dono da Fox chamou as alegações de “coisas realmente malucas”.
Fox, ‘mídia estatal’ de Trump
Mas isso não transparecia para o público, que continuou a assistir estrelas da Fox e entrevistados sustentando a ideia da fraude.
Em um livro lançado em 2021, uma ex-secretária de imprensa da Casa Branca na era Trump, Stephanie Grashham, disse que o horário nobre da Fox funcionava como uma mídia estatal para o ex-presidente.
Um dos efeitos do processo movido pela Dominion pode ser a Fox ter que adotar mais cautela no que transmite, para evitar novos prejuízos.
E a demissão de Tucker Carlson faria sentido. Seja porque a direção não quis arriscar, ou porque ele se recusou a moderar o tom, o fato é que a Fox perde uma de suas grandes estrelas.
Seu brilho vai fazer falta, pelo menos aos olhos dos investidores. As ações da Fox caíram quase 4% após o anúncio da saída
Carlson era o apresentador do horário nobre da rede, com uma média de mais de três milhões de telespectadores sintonizando seu programa todas as noites.
E tem uma poderosa rede de influência, com 6 milhões de seguidores no Twitter, onde ele não se manifestou sobre a saída.
Sua última postagem é um trecho de seu programa de sexta-feira sobre investigações a respeito de Hunter Biden, filho do presidente do país.
Em uma pesquisa feita pelo Instituto Reuters, ficou em primeiro lugar entre os jornalistas mais populares do país.
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As polêmicas de Tucker Carlson e da Fox
Uma das declarações mais polêmicas de Tucker Carlson, mas que não custou sua saída da Fox News na época como poderia ter acontecido em outras empresas jornalísticas, foi dada em setembro de 2021.
Ele criticava profissionais da CNN por tentarem ‘defender o sistema’ a qualquer custo.
E para dizer que não mentia sistematicamente como supostamente faziam os colegas, admitiu que nem sempre conseguia falar a verdade quando se sentia encurralado “ou algo assim”.
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Na guerra da Ucrânia, uma equipe da Fox foi atacada por forças russas, deixado um cinegrafista e uma produtora morta, e um repórter seriamente ferido, sem uma perna e a visão de um olho.
No entanto, Carlson disse achar “exagero” a condenação da mídia à Rússia, e questionou por que os americanos tinham que odiar Vladimir Putin.
Seus comentários foram reproduzidos na imprensa estatal do país, referendando as práticas adotadas pelo exército russo, entre elas a de atacar jornalistas deliberadamente.
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Em 2018, Carlson disse que a imigrantes tornaram os Estados Unidos “mais pobres, mais sujos e mais divididos”.
Ele também atraiu a ira dos democratas e das autoridades por alegar repetidamente que a insurreição de 6 de janeiro foi um protesto amplamente pacífico.
Carlson está de saída da Fox, mas ficam lá outros expoentes do extremismo, da polarização e do apoio incondicional a Donald Trump – pelo menos por enquanto.
Um exemplo foi o programa The Five, uma mesa-redonda com cinco apresentadores que encarnam o discurso conservador extremo da Fox.
No dia 31 de março, ao ouvirem a notícia de que o ex-presidente tinha sido indiciado, suspiraram e o som vazou no ar.
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