Londres – Um homem de 41 anos foi detido na última quinta-feira (25) nos arredores de Sydney, na Austrália, acusado de ter sido um dos autores das ataques racistas que levaram uma das principais celebridades da mídia, o jornalista indígena Stan Grant, a se demitir da rede de TV pública disparando contra imprensa e redes sociais.
Grant, profissional premiado que já foi correspondente internacional da CNN, entrevistou líderes globais e cobriu conflitos, comanda um programa de debates na ABC e foi convidado para comentar a coroação do rei Charles, no dia 6 de maio.
Ele falou sobre sobre o impacto do colonialismo nos indígenas australianos, um tema sensível no país que vive tensões entre colonizadores e povos originários e que discute abertamente a possibilidade de adotar o regime republicano.
Embora tenha dito que sempre foi alvo de racismo, Grant recebeu uma onda inédita de insultos, nas redes sociais e também de outros órgãos de imprensa conservadores que apoiam a monarquia.
Os críticos reclamaram que a ABC “havia azedado o clima de comemoração” da coroação.
Embora haja um movimento pela independência na Austrália com o objetivo de deixar de ter o monarca inglês como chefe de Estado, nem todos concordam com a ideia.
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No dia 19 de maio, Grant jogou a toalha. Ele publicou um artigo no site da ABC anunciando a decisão de deixar o posto que ocupava, sem prazo para retornar às atividades, devido aos abusos em redes sociais e ao comportamento da própria imprensa e da empresa jornalística onde trabalha.
“A mídia transformou a discussão pública em um parque de diversões. A mídia social, na pior das hipóteses, é um espetáculo sórdido. […].Vidas são reduzidas à zombaria e ao ridículo.”
No texto corajoso, ele diz ser regularmente ridicularizado ou abusado racialmente, assim como membros de sua família (a filha também é jornalista). E afirma que a esposa é alvo por ser casada com um homem Wiradjuri.
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Ataques racistas na mídia não foram rebatidos, acusa o jornalista
A onda de ataques racistas na mídia subsequente à coroação fez o copo transbordar e respingar no conglomerado News Corp, de propriedade do magnata da mídia Rupert Murdoch, cujos títulos são acusados pela ABC de colocar lenha na fogueira para desacreditar a emissora pública.
Em um trecho da coluna, Grant diz que ninguém na ABC- cujos produtores o convidaram para participar da cobertura da coroação – “pronunciou uma palavra de apoio público,”nem refutou as mentiras escritas ou faladas sobre ele após a transmissão”.
Ele disse não responsabilizar nenhum indivíduo, e livra a pele do diretor de jornalismo, Justin Stevens, que estaria “tentando mudar uma organização que tem seu legado de racismo”.
Mas demonstrou indignação ao salientar que todas as reportagens criticando a ABC por parcialidade na transmissão foram ilustradas com a sua foto.
E afirmou querer encontrar um lugar ‘longe do fedor da imprensa’ e onde não se lembre ‘do esgoto da mídia social’.
O nome do homem detido pelos ataques racistas não foi revelado pelas autoridades à imprensa.
A polícia apenas confirmou que investigou a denúncia feita por um homem de 59 anos (Stan Grant), e que o acusado foi liberado ao pagar uma fiança, mas terá que comparecer ao tribunal no dia 31 de maio.
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Racismo na mídia australiana
O caso dos ataques racistas ao jornalista Stan Grant e das críticas ao papel da imprensa em uma sociedade dividida como a Austrália sobre a questão do colonialismo não é isolado.
Em um relatório especial sobre diversidade na mídia, publicado em 2022, a correspondente brasileira Liz Lacerda descreveu o ambiente hostil para estrangeiros e povos originários, em seu artigo “A Mídia dos Brancos e a Mídia dos Outros”.
Ela relatou a predominância de jornalistas brancos na ABC, falando inglês australiano sem sotaque, apesar de quase metade da população do país ter nascido fora do país ou ter pelo menos um dos pais estrangeiros.
Há um canal digital na rede pública dedicado aos aborígenes, o que longe ser uma vantagem, é uma sinalização da segregação existente no jornalismo, refletindo o que acontece na sociedade, na opinião de Liz.
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O terremoto provocado por Stan Grant continua gerando ondas de choque. O diretor geral da ABC, David Anderson, pediu desculpas em um e-mail para a equipe, dizendo que as experiências dele foram “angustiantes e conflituosas” para a corporação.
Anderson se defendeu da acusação de inércia lembrando que no início do ano a empresa denunciou assédio a Grant no Twitter. Mas isso parece estar longe do que o jornalista esperava.
No dia seguinte ao email, o diretor de jornalismo deu uma entrevista lamentando não ter se posicionado publicamente antes. E criticou abertamente a organização de Murdoch, afirmando que a ABC vive um nível de ataques sem precedentes.
No mesmo dia, funcionários e jornalistas da ABC protestaram diante de várias redações da empresa, em solidariedade a Stan Grant e rejeitando o racismo. Parlamentares se uniram ao protesto. Colegas foram às redes defender o jornalista.
Racism is abhorrent. I stand with my friend and colleague Stan Grant. pic.twitter.com/KAcRbyBBHK
— David Speers (@David_Speers) May 22, 2023
Após a detenção do suspeito de ter sido um dos autores das ameaças racistas, Justin Stevens voltou a declarar apoio a Stan Grant e sua família, e a criticar as mídias sociais, embora as queixas do jornalista tenham sido direcionadas também à imprensa de forma geral e à ABC em particular.
“O discurso público tóxico tem consequências na vida real para as pessoas e nós, na mídia, assim como as pessoas que usam plataformas de mídia social, precisamos fazer todo o possível para promover uma conversa pública mais gentil e construtiva”, disse.
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