Londres – Contrariando a tese de que jornalistas não devem ser notícia, a mídia britânica manteve em evidência nos últimos dias dois casos que expõem práticas da imprensa nem sempre elogiáveis, como o uso de meios ilegais para obter informações sobre famosos, motivo da ação judicial movida pelo príncipe Harry contra o Daily Mirror. 

A prática é conhecida como “blagging”, referindo-se principalmente a escutas telefônicas e contratação de detetives particulares para espionar os alvos que podem acelerar venda de exemplares e cliques nas versões digitais.

Harry ignorou a decisão da família real de não processar jornais e se tornou na terça-feira (6) o primeiro membro da realeza a testemunhar em um tribunal em 132 anos, em uma ação movida em 2019 contra o poderoso grupo MGM.

Ele ataca não apenas a empresa jornalística, mas profissionais como Piers Morgan, um dos mais conhecidos jornalistas do país e editor do jornal na época em que o “blagging” era relativamente comuns – a ponto de ter colocado fim a um tabloide do magnata da mídia Rupert Murdoch, o News of the World. 

Enquanto isso, a maior emissora privada britânica, a ITV, viveu nesta semana um drama que parece enredo de novela, envolvendo sexo, mentiras e intrigas corporativas. 

Phil Schofield,  popular apresentador do programa This Morning que se assumiu como gay em 2020, caiu em desgraça por um caso com um jovem aspirante a emprego na rede de TV, ocorrido enquanto ele ainda era casado com uma mulher. A crise chegou ao Parlamento.  

Embora bem diferentes, as duas histórias têm pontos em comum. Ambas viraram circos midiáticos, com cobertura ao vivo dos lances mais importantes, especialistas convidados para analisar e debater os acontecimentos e uma euforia sem fim nas redes sociais. 

O frenesi motivou situações patéticas. A pior delas coube à excelente Sky News, que escorregou na busca por audiência e elencou um sósia do príncipe Harry para simular o depoimento no tribunal, que não pode ser filmado nem fotografado. 

Outra semelhança é que os casos tornam visíveis ao público situações que em nada ajudam a imprensa a reconquistar a credibilidade perdida nos últimos anos.

Harry x mídia: quem tem razão? 

Ovelha negra da família real depois de anos retratado pela mídia ávida por vender jornais como encrenqueiro que se vestia de nazista e fumava maconha, o príncipe Harry não é uma unanimidade no país. 

Ele está entre os menos admirados da família real, perdendo apenas para a mulher, Meghan, e para o tio, Andrew, protagonista de um escândalo sexual que lhe custou perda de condecorações e banimento da vida pública. 

Sua guerra com a imprensa, iniciada depois do casamento com Meghan e de uma lua-de-mel inicial com a mídia meio deslumbrada com a  diversidade na realeza, é tachada por muita gente, inclusive por jornalistas, de hipocrisia ou oportunismo.

Ou é vista como resultado da manipulação da suposta megera americana com quem se casou – opinião comum entre os mais conservadores e monarquistas, incluindo setores da imprensa. 

O processo movido por Harry, junto com outros famosos incluindo o espólio do cantor George Michael, mira em práticas que, até onde se sabe, ficaram no passado. 

No entanto, a lavagem de roupa suja no tribunal e na mídia trazem as práticas antigas à tona, e têm o poder de colocar em questão o jornalismo como instituição. 

Isso não significa que o movimento de Harry e dos demais que decidiram encarar a briga com a mídia, como o ator Hugh Grant (que está junto com Harry em outro processo, contra o The Sun), seja condenável.

Na sexta-feira (9), a atriz de novelas Nikki Sanderson depôs no processo contra o Mirror e contou que teve o cabelo incendiado por ‘haters’ depois que o jornal a retratou como promíscua.

O tabloide admitiu que pelo menos uma das reportagens usou meios ilícitos. 

Talvez o príncipe não consiga reparação devido ao tempo decorrido entre os fatos e a abertura do processo, em 2019. Essa é a principal linha de argumentação da defesa.

Ele também foi criticado por uma aparente inconsistência nas respostas ao advogado da outra parte que o inquiriu, tentando comprovar que as informações contidas nas reportagens listadas como produzidas com base em meios ilícitos eram públicas. 

Mas Harry não parece ser alguém em busca de dinheiro, e sim um guerreiro decidido a expor um sistema que julga injusto e que causou males a ele, à mulher e à mãe, a princesa Diana.

O advogado “águia” do Mirror, Andrew Green, famoso por espremer testemunhas, pode bem conseguir um veredito favorável ao jornal.  

Mas para uma parte do público, o príncipe Harry sai como vítima e a mídia como vilã, respingando no jornalismo.

Phil x Holly: quem tem razão?

O caso da ITV é mais complicado para a reputação da mídia, porque não ocorreu em um passado tão distante.

A dupla de apresentadoresn- Phil com 61 anos e Holly Willoughby com 42 – tinha uma química perfeita no This Morning, show matinal que mistura notícias e entretenimento. 

Phillip e Holly, apresentadores do programa This Morning da ITV, Reino Unido
reprodução Twitter @Schofe

Casado há 27 anos e com duas filhas jovens, Philip Schofield era tão querido que ao se assumir gay, em 2020, foi acolhido com carinho e compreensão. 

O castelo começou a cair em maio. Seu irmão, Tim, um ex-policial, foi condenado por molestar sexualmente meninos.

O âncora se posicionou indignado e garantiu que nunca soube de nada. Mas mas a imprensa – inclusive os grandes jornais, não apenas os tabloides – acompanhou o caso qualificando o criminoso como ‘irmão de Philip Schofield” – e assim aproximando-o do escândalo. 

Semanas depois veio a bomba: Phil teve um caso com um rapaz mais jovem, que trabalhava na produção, enquanto ainda era casado.

As informações sobre com que idade eles se conheceram e tiveram o relacionamento são desencontradas. Ele garante que tudo foi consentido e “legal” embora “não sábio”. 

Aí vem a hipótese da intriga. A doce e meiga Holly teria pedido a cabeça do colega, por se sentir “enganada”. E conseguiu.

Nos bastidores da imprensa circulam boatos de que os dois já não se entendiam bem, e que ela pode ter aproveitado a oportunidade para se livrar do colega – típica fogueira de vaidades no mundo da televisão. 

A ITV ainda tentou amenizar, mantendo-o como apresentador de outros programas. Mas depois que veio a público a informação de que mentiu para a emissora ao negar o caso, Phil caiu de vez. 

Histórias envolvendo poderosos, como artistas e executivos, que se prevalecem da posição para privilegiar pessoas que cedem aos seus encantos não são novas – e o #MeToo começou com uma delas.

Mas continuam a assombrar a indústria de mídia, onde vaidades e o sonho do estrelato podem levar a situações extremas. 

Aparentemente não foi o que aconteceu com Philip Schofield, que em questão de dias se transformou de personagem simpático que apareceu na série Ted Lasso (ao lado de Holly) a um monstro que perdeu o emprego, cargos de conselheiro em ONGs e até uma marca de vinhos com seu nome. 

A história chamou atenção também para a crueldade com que pessoas públicas que caem em desgraça são tratadas nas redes sociais. O apresentador deu uma entrevista à BBC admitindo que pensou seriamente em suicídio.

E comparou seu caso ao da apresentadora Caroline Flack, que tirou a própria vida em 2020 após um escândalo envolvendo uma briga com o namorado que acabou em processo judicial e no fim de sua carreira, levando-a ao ato extremo.

Por triste coincidência, Flack é uma das ex-namoradas do príncipe Harry que teria sido alvo de escutas telefônicas da mídia quando estavam juntos. 

Ainda que Philip Schofield tenha cometido erros, os chefes da ITV estão sendo questionados, inclusive no Parlamento, por não terem percebido ou terem feito vista grossa ao que se passava nos bastidores do This Morning.

Respostas irônicas do chefe do programa parecendo minimizar o caso foram tomadas como afronta. 

A exemplo do caso judicial de Harry e de sua obsessão contra a mídia sensacionalista, a confusão na ITV pode não dar em nada, fora o fim da carreira e da vida pública de Philip Schofield.

Mas a mídia sai chamuscada porque os casos mostram que nem sempre o que se cobra de empresas, organizações e pessoas públicas é praticado nas redações.