Londres – Um integrante da Câmara dos Lordes britânica, Lord Rami Ranger, está sendo obrigado a pedir desculpas à jornalista Poonan Joshi e a frequentar um curso de bom comportamento em redes sociais depois que uma comissão da casa legislativa considerou-o culpado de reclamações de intimidação, humilhação e assédio online.
Joshi é correspondente da rede indiana ABP TV em Londres. Ranger não gostou de questionamentos sobre como o Fórum Hindu da Grã-Bretanha (co-fundado por ele) estava sendo conduzido, e da revelação de que doou ao Partido Conservador 1,5 milhão de libras (R$ 9 milhões) por meio de sua empresa de bens de consumo.
Rami Ranger passou a insultar a jornalista nas redes sociais e até pessoalmente. Em novembro de 2022, ela formalizou uma reclamação da Câmara dos Lordes, que abriu então uma investigação que confirmou nesta terça-feira (13) a quebra do Código de Conduta da casa.
Assédio online a jornalistas mulheres
O assédio online e offline a mulheres jornalistas é comum em vários países, incluindo no Brasil, que durante o governo de Jair Bolsonaro experimentou uma onda de ataques a profissionais de imprensa.
Embora a punição aplicada a Rami Ranger não tenha grandes consequências práticas, como uma multa pesada, suspensão ou perda do cargo, ela tem um significado importante.
Os membros da Câmara dos Lordes fazem parte de uma elite política e econômica do país, pouco acostumada a ter suas ordens ou opiniões desafiadas.
Eles não são eleitos. Ganham o lugar por sua condição religiosa, aristocrática ou por indicação de um primeiro-ministro. Entram para o círculo de pessoas mais influentes na política e economia, embora as votações de projetos de lei aconteçam na Câmara dos Comuns e raramente sejam alteradas pelos chamados ‘peers’.
Do alto desse pedestal, ter o nome estampado nos principais jornais, ser obrigado a pedir desculpas em público e se submeter a um curso de bom comportamento nas redes é para muitos poderosos uma punição maior do que uma multa.
O assunto foi notícia nos principais jornais britânicos. Uma postagem da j0rnalista sobre o desfecho do caso de assédio online no Twitter teve mais de 25 mil visualizações em poucas horas.
Além de jornalista, Joshi é uma ativista dos direitos femininos. Ela fundou o grupo Indian Ladies in the UK, para apoiar migrantes vítimas de violência doméstica.
Em uma nota, a jornalista comentou a decisão da comissão da Câmara dos Lordes:
“Não fico satisfeita com o que aconteceu nos últimos meses, mas estou feliz porque a Comitê de Ética acatou minha reclamação e entendeu que ele cometeu bullying e assédio. […]
Espero que ele aprenda com o episódio e trate a todos com o respeito e dignidade merecidos.”
Como foi o assédio online à jornalista
Lord Rami Ranger entrou para a Câmara dos Lordes por indicação da ex-primeira-ministra Theresa May, quando ela deixou o cargo, em 2019. Os chefes de governo têm a prerrogativa de indicar nomes de personalidades que tenham contribuído para o bem do país ou para a sua gestão em particular.
Muitas vezes essas indicações beneficiam grandes doadores do Partido do governo (atualmente o Conservador). A jornalista relatou que mantinha contato cordial com o membro da Câmara dos Lordes até outubro de 2022, quando ele foi questionado por ela e passou a praticar o assédio online, insultando-a nas redes sociais.
Na petição ao Comitê de Ética da Câmara dos Lordes, ela contou ter indagado Ranger sobre o espaço dado no Fórum Hindu a um homem fugitivo da polícia indiana procurado pela Interpol por acusações de estupro de crianças.
Um dos insultos foi chamá-la de “presstitute”, palavra usada na Índia para atacar jornalistas que criticam o partido BJP, do presidente Narendra Modi, em cujo governo a liberdade de imprensa se deteriorou.
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Ranger chegou a escrever no Twitter que ninguém a conhecia e indagou ‘se ela tinha algum dinheiro’, em uma clara demonstração de desprezo por uma pessoa sem recursos financeiros para encarar uma briga jurídica.
Em uma das postagens, criticou sua educação familiar como motivo para a discussão que tiveram durante uma cerimônia religiosa. Depois que ela o bloqueou, Rami Ranger passou a assediar o marido e o filho de 14 anos da jornalista.
Poonam Joshi afirma que foram criadas contas falsas no Twitter para disseminar inverdades e insultos, como a de que ela teria sido expulsa do Alto Comissariado Indiano em Londres.
O assédio saiu do ambiente online para o mundo real. Vingativo, Lord Ranger tentou convencer a Associação Indiana de Jornalistas a expulsar Poonam Joshi.
Todos os tweets foram anexados ao processo, funcionando como evidência do assédio online. A comissão pediu explicações ao membro da casa, que respondeu com um contra-ataque.
Ele sustentou que a jornalista tinha uma postura hostil ao Fórum Hindu, chamou-a de manipuladora e justificou o uso da palavra “presstistute” como uma referência a ‘jornalistas sem escrúpulos’.
Argumentou também que a exposição dada pela jornalista ao caso criou ansiedade e constrangimentos para a sua família. Mas não convenceu.
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O resultado
O Comitê determinou que ele pedisse desculpas públicas por escrito pelo assédio online e participasse do curso de boas maneiras online. Talvez como forma de amenizar a punição, a jornalista também foi solicitada a pedir desculpas pelas respostas e reações.
Mas a história pode não ter terminado ainda. O caso acontece em meio a uma crise do Partido Conservador, que se agravou justamente pela lista de indicados à Câmara dos Lordes pelo ex-primeiro-ministro Boris Johnson.
Alguns indicados não foram aprovados pelo atual primeiro-ministro, Rishi Sunak, incluindo o pai de Johnson e alguns de seus principais aliados.
Ao mesmo tempo, a investigação sobre o Partygate entendeu que Johnson mentiu ao Parlamento ao afirma que não havia quebrados as regras de isolamento da Covid.
Antes de ser suspenso, o ex-primeiro-ministro renunciou ao mandato na última quinta-feira (7). E a controvérsia em torno das indicações para a Câmara dos Lordes segue na pauta da mídia, o que torna possível alguma sanção para dar uma resposta à opinião pública.
Em entrevista ao MediaTalks, Poonam Joshi encorajou outras mulheres a lutarem contra ataques e injustiças, como assédio online:
“Venho de uma cultura e de um país onde o patriarcado está arraigado, onde as mulheres têm que trabalhar duplamente para serem ouvidas e progredirem na sociedade.
Não importa o status e a posição que alcancemos, ainda somos frequentemente vistas como “irrelevantes”, cujas opiniões e pontos de vista não importam e somos constantemente silenciadas.
É especialmente difícil para uma jornalista porque muitas vezes é nosso trabalho responsabilizar homens poderosos. Precisamos perceber e entender nossa força interior e ter fé de que, enquanto estivermos defendendo o que é certo e o que é justo, não há nada a temer.”
A íntegra do relatório da Câmara dos Lordes pode ser vista aqui.
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