A sub-representação de mulheres em videogames e o domínio de personagens excessivamente sexualizadas ou com padrões de beleza irreais motivou a criação de uma iniciativa unindo a marca de produtos de beleza Dove, a ONG Women in Games e a empresa Epic Games.
A iniciativa, denominada Real Virtual Beauty, envolve ações como vídeos publicados nas redes sociais, aulas para desenvolvedores de games evitarem estereótipos, prêmios para incentivar boas práticas e um game educativo gratuito na plataforma Roblox, desenvolvido por um estúdio formado por mulheres.
Mas as reações não foram unânimes. Jogadores homens (em maioria) e também mulheres se manifestaram nas redes sociais questionando a ideia de representação realista no universo dos games e o suposto incentivo à obesidade.
Mulheres querem mais representação nos games
O projeto é apoiado em uma pesquisa feita pela Dove, que há muitos anos adotou como causa o incentivo à beleza real, utilizando em suas campanhas personagens que não seguem os padrões idealizados de beleza da propaganda.
Segundo a organização Women In Games, cerca de 1,3 bilhão de mulheres e meninas são jogadoras, representando metade da comunidade global de jogos. E 60% jogam antes dos 13 anos de idade.
Mas elas não estão satisfeitas, de acordo com a pesquisa da Dove. Querem mais protagonismo, e 75% acham que as personagens femininas devem se parecer com mulheres na vida real. Entre as jogadoras adultas, 62% disseram achar que a imagem feminina é distorcida nos jogos.
Um terço de todas as jogadoras revelou que não se identifica com as opções de avatares e heroínas. A imagem da campanha mostra como mulheres que não estão no padrão idealizado de beleza da mídia poderiam ser representadas nos games.
No novo vídeo da campanha, produzido pela agência de publicidade Lola MullenLowe, Cinthia, uma heroína se livra de trajes e adereços hiperssexualizados depois de um “mais um dia” de trabalho em um jogo.
Ela se vê no espelho, reflete sobre sua imagem e volta à ação sem os itens de vestuário que a faziam parecer sensual e magra de forma artificial e desconfortável.
O vídeo despertou críticas de gamers, com posts nas redes sociais defendendo as personagens com aparência sexy.
Alguns games homens ponderam que também não se identificam visualmente com a aparência dos heróis masculinos, mas não veem nisso um problema.
Houve também manifestações de mulheres dizendo que não jogam para se sentirem representadas, mas sim por escapismo, não se importando com a aparência dos personagens.
A maioria dos comentários é de homens. E muitos se referem à noção de normalizar a obesidade como argumento para discordar do projeto
Uma das que se posicionou contra a iniciativa Real Virtual Beauty foi a gamer Melonie Mac Boom, que tem um canal com 143 mil inscritos.
Em um vídeo com quase 60 mil visualizações, ela analisa o filme da campanha e critica o movimento que julga incentivar a obesidade, que a seu ver não é uma questão apenas de beleza, mas de saúde.
Este debate não é novo, e já causou constrangimentos a marcas ou até governos, como o da Espanha, que se posicionaram a favor da imagem corporal livre dos padrões da mídia.
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Game feito por e para mulheres
No entanto, a iniciativa Real Virtual Beauty não é voltada para os gamers adultos, e sim para os futuros jogadores e desenvolvedores.
O game “Super U Story”, que faz parte da Real Virtual Beauty, é gratuito e está disponível na plataforma Roblox, com indicação para ser utilizado por meninas entre 9 e 16 anos. O projeto foi desenvolvido pelo estúdio de jogos Toya, fundado por mulheres.
A ação se passa na ‘The Academy’, uma escola para crianças com superpoderes que está sob cerco de um grupo de estudantes desonestos espalhando negatividade.
Os jogadores devem ajudar os personagens a encontrarem seu superpoder único de voo, fogo, água ou velocidade, para se esquivar e destruir a negatividade venenosa e ajudar a salvar a Academia.
Os jogadores podem personalizar seus avatares para experimentar uma versão mais realista da beleza, se juntar a amigos para explorar a Academia, ganhar power-ups e completar missões.
Treinamento e prêmios para desenvolvedores de games
Outra ação da iniciativa liderada pela Dove, em conjunto com a Unreal Engine (ferramenta de desenvolvimento de games em 3D da Epic Games) e Women in Games é um programa de treinamento para criadores de jogos, desenvolvedores e artistas incentivando-os a criar uma representação mais ampla das mulheres nos jogos capaz de refletir diversidade na vida cotidiana.
Os participantes terão a oportunidade de mostrar seu trabalho através da coleção de arte de personagens Real Virtual Beauty hospedada na Art Station (plataforma para exibição de trabalhos de artistas de games e da indústria de filmes), com curadoria da Dove.
Há ainda prêmios e subsídios para os melhores criadores de coleções Real Virtual Beauty, a fim de incentivar a expansão do trabalho – que a julgar pelas reações, não deve agradar a todos os gamers.
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“A representação das mulheres em plataformas, produtos e serviços de jogos tem sido um problema há muito tempo”, disse Marie-Claire Isaaman, CEO da Women in Games.
Leandro Barreto, brasileiro que é vice-presidente global de marketing da Dove, declarou que o cenário atual da indústria de games reforça a noção de beleza como “fonte de ansiedade” e não de confiança:
“Embora a indústria de jogos tenha feito progressos significativos para se tornar mais inclusiva, ele precisa ser acelerado para desafiar noções limitadas de beleza ainda vistas no setor.”
Não é apenas na aparência que mulheres relatam problemas na representação: um estudo publicado no periódico acadêmico Royal Society Open Science aponta que personagens homens possuem duas vezes mais tempo de fala e linhas de diálogo nos jogos.
No Brasil, uma pesquisa qualitativa do Lab Impacto Gamer aponta que 51,5% do público consumidor é feminino — em contrapartida, quase 80% dos desenvolvedores de jogos são homens.
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