Como aconteceu antes com o surgimento de outros avanços tecnolĂłgicos, o advento de ferramentas de inteligĂȘncia artificial (IA) generativas, como o ChatGPT, gerou grande expectativa e uma sĂ©rie de informaçÔes falsas ou exageradas.

Para os jornalistas, este Ă© o momento de experimentar esses modelos, de conhecĂȘ-los e aprender a aproveitĂĄ-los ao mĂĄximo, em vez de bani-los ou temĂȘ-los, disseram os palestrantes do webinar  â€œIA Generativa: O que os jornalistas precisam saber sobre ChatGPT e outras ferramentas”.

Realizado virtualmente no dia 17 de agosto, o encontro foi organizado pelo Centro Knight para o Jornalismo nas AmĂ©ricas e pode ser visto novamente no canal do Centro Knight no YouTube no original em inglĂȘs ou na tradução simultĂąnea em portuguĂȘs.

Participaram da conversa  Aimee Rinehart, gerente de produto de estratĂ©gia de IA para da iniciativa Local News AI de Associated Press, e Sil Hamilton, engenheiro de aprendizado de mĂĄquina e pesquisador de IA residente na organização de notĂ­cias Hacks/Hackers, com moderação de Marc Lavallee, diretor de produtos de tecnologia e estratĂ©gia para jornalismo da Fundação Knight.

As ferramentas da inteligĂȘncia artificial

Levando em consideração a confusĂŁo e a incerteza que o ChatGPT causou na indĂșstria do jornalismo, Ă© importante aprender a diferenciar entre aquilo que as empresas de tecnologia dizem que a IA generativa Ă© capaz de fazer e aquilo que ela realmente Ă© capaz de realizar.

E a melhor maneira de os jornalistas entenderem as capacidades e limitaçÔes dessa tecnologia Ă© experimentando-a em eles mesmos e familiarizando-se com seus conceitos, tĂ©cnicas e processos. Ou seja, iniciarem um processo de alfabetização em inteligĂȘncia artificial em primeira mĂŁo.

“As grandes empresas de tecnologia vieram e nos contaram como a internet iria funcionar. E nós acatamos todas as regras que eles estabeleceram. É a mesma coisa agora: se não nos envolvermos nisso, se não experimentarmos, eles vão escrever as regras”.

“Acho que este Ă© o momento para os jornalistas se envolverem, experimentarem, descobrirem onde estĂŁo suas fraquezas e pontos fortes, e entĂŁo aprenderem com isso e criarem padrĂ”es em torno disso, porque agora estamos apenas dizendo ‘simplesmente nĂŁo use isso ‘, e essa nĂŁo Ă© uma boa postura a se tomar”, disse Rinehart.

Lavallee indicou uma pesquisa divulgada em maio deste ano pela Associação Mundial de Jornais e Editores de NotĂ­cias (WAN-IFRA, na sigla em inglĂȘs), que descobriu que quase metade das redaçÔes pesquisadas disseram que estavam usando ferramentas de IA generativas e a maioria tinha perspectivas positivas sobre elas.

No entanto, apenas 20% dessas redaçÔes jå haviam elaborado diretrizes e políticas de boas pråticas em torno de seu uso. Hamilton explicou que:

“Estamos apenas começando a entender como elas funcionam. E grande parte desse processo consiste em experimentação, fazer perguntas básicas e definitivamente lembrar que não sabemos realmente como elas funcionam.

Mas sabemos para o que elas foram treinadas e, especialmente no que se refere a jornalistas e organizaçÔes de notĂ­cias, Ă© realmente importante que nĂŁo apenas desenvolvam polĂ­ticas para trabalhar com IA, mas tambĂ©m para controlar seus prĂłprios dados”.

Rinehart enfatizou que as melhores oportunidades com ferramentas de IA generativa sĂŁo para as mĂ­dias locais, jĂĄ que, por um lado, sĂŁo as que tĂȘm maiores carĂȘncias e lacunas em suas capacidades tĂ©cnicas e humanas, e, por outro, por serem organizaçÔes pequenas, tĂȘm maior margem de erro e espaço para corrigirem falhas rapidamente, em comparação com as grandes mĂ­dias.

“Acho que esse Ă© o momento desses veĂ­culos. […] Eles simplesmente precisam de mais ajuda com sua cobertura. Eles costumam ter uma ĂĄrea geogrĂĄfica maior, porque muitos outros veĂ­culos fecharam e muitas vezes nĂŁo tĂȘm tantas pessoas na redação.

Portanto, precisam fazer mais com menos recursos. E, para mim, Ă© aĂ­ que a IA pode realmente entrar e ocupar essa lacuna”.

A jornalista disse que a AP começou a mexer com inteligĂȘncia artificial em 2014, ao automatizar reportagens com base em relatĂłrios financeiros da empresa.

A agĂȘncia antes analisava 300 relatĂłrios manualmente, e graças Ă  IA aumentou para 3 mil, o que permitiu que concentrasse recursos e esforços em projetos jornalĂ­sticos de maior impacto.

Rinehart disse que, assim como a AP fez com a anĂĄlise de relatĂłrios financeiros, os meios de comunicação que desejam se envolver com inteligĂȘncia artificial devem começar identificando tarefas repetitivas em seus processos editoriais e de negĂłcios.

Eles também devem ouvir os membros da equipe e identificar as tarefas em que se sentem mais pressionados ou sem capacidade de dar vazão. A partir daí, eles podem analisar se precisam de uma ferramenta automatizada.

Estas recomendaçÔes vieram de um marco para a integração da inteligĂȘncia artificial em redaçÔes derivado de uma pesquisa da AP de 2021 com mais de 200 veĂ­culos de notĂ­cias nos Estados Unidos, que, disse Rinehart, logo estarĂĄ disponĂ­vel para consulta.

“Acho que [o marco de integração] Ă© realmente Ăștil e pode reduzir um pouco da pressĂŁo de ‘Ah, nĂŁo, precisamos de IA agora!’, porque talvez vocĂȘ sĂł precise de um fluxo de trabalho diferente. Ou talvez vocĂȘ sĂł precise de automação de processos simples para melhorar as coisas”.

Em termos de ferramentas de IA geradoras de texto, a jornalista também sugeriu não se limitar ao ChatGPT, mas tentar outras plataformas disponíveis, como o Claude, desenvolvido pela Anthropic, startup de tecnologia fundada por ex-funcionårios da OpenAI; assim como o Bard, desenvolvido pelo Google.

O ideal, disse Rinehart, é testar as diferentes plataformas e determinar qual delas funciona melhor para cada tarefa e meio de comunicação.

Como funciona o ChatGPT?

O ChatGPT Ă© um modelo de inteligĂȘncia artificial baseado na tecnologia chamada Generative Pre-trained Transformer (Transformador PrĂ©-Treinado Generativo), projetado para gerar respostas de texto consistentes e humanas de maneira conversacional. Foi desenvolvido pelo laboratĂłrio americano de pesquisa em inteligĂȘncia artificial OpenAI.

O primeiro modelo de linguagem pré-treinado da OpenAI, chamado só GPT, foi lançado em 2018. O ChatGPT atualmente funciona com o GPT-4 (o sistema mais avançado até agora) em sua versão paga, e com o GPT-3.5 em sua versão gratuita.

Sistemas como o ChatGPT foram treinados com grandes quantidades de dados da internet. No entanto, uma das principais críticas a esses sistemas é a precisão e a credibilidade de suas fontes, jå que suas respostas são baseadas em padrÔes, não em fatos, explicou Hamilton.

É por isso que nĂŁo Ă© recomendado que os jornalistas usem essas ferramentas para gerar conteĂșdo.

“A boa regra Ă© que esses modelos sĂŁo muito bons em forma, nĂŁo em conteĂșdo. Ele Ă© excelente na forma, mas quando vocĂȘ pede para ele escrever do zero, ele falha em quase tudo, e isso em uma ampla gama de ĂĄreas. […].

Ele nĂŁo Ă© bom em escrever do zero. Portanto, se vocĂȘ quiser trabalhar com o modelo, certifique-se sempre de dar a ele algo para trabalhar”.

É aĂ­ que o jornalismo tem uma grande oportunidade, segundo o pesquisador, jĂĄ que os meios de comunicação geram conteĂșdo de alta qualidade, e essa pode ser a matĂ©ria-prima a partir a qual a IA generativa pode ser aproveitada.

O Claude e o Bard podem ler arquivos de diferentes tipos, como PDFs, imagens e vĂ­deos. A partir deles, os repĂłrteres podem solicitar açÔes especĂ­ficas, como resumir, reescrever, traduzir ou fazer perguntas especĂ­ficas sobre o conteĂșdo.

“Sabemos que a inteligĂȘncia artificial funciona melhor quando fornecemos informaçÔes de alta qualidade. E na internet, os meios de comunicação geralmente produzem informaçÔes da mais alta qualidade que podem ser obtidas”, disse Hamilton.

“Assim, o modelo, em vez de confiar em sua prĂłpria base de conhecimento, analisarĂĄ o conteĂșdo que fornecemos na pergunta. E isso se chama ‘aprendizagem contextual’”.

Rinehart explicou que sistemas como o ChatGPT funcionam a partir de duas bases: a base de linguagem e a base de conhecimento. Para os jornalistas, ele recomendou partir do idioma base, jĂĄ que o nĂ­vel de conhecimento utilizado por esses modelos ainda Ă© incerto na maioria dos casos.

O jornalista tambĂ©m enfatizou que, ao contrĂĄrio de outros desenvolvimentos tecnolĂłgicos criados em inglĂȘs, os modelos generativos de IA tĂȘm um bom desempenho em outros idiomas.

“Uma maneira mais segura de uma pequena redação experimentar isso Ă© pegar uma matĂ©ria que escreveu e pedir [Ă  IA] para escrever trĂȘs manchetes.

Peça a ela para fazer um tĂłpico no Twitter, ou uma postagem no Facebook, ou um resumo, dependendo de onde e como vocĂȘ precise usar. Eu acho que Ă© uma maneira muito boa de experimentar”.

Devido Ă  incerteza da base de conhecimento a partir da qual trabalha, o ChatGPT e seus similares sĂŁo propensos a “alucinaçÔes”. Ou seja, respostas que parecem lĂłgicas, mas podem ser imprecisas ou incorretas.

Isso ocorre porque, explicou Hamilton, os modelos GPT entendem o significado das palavras e como elas se relacionam entre si. No entanto, eles desenvolvem essa compreensĂŁo das palavras sem nunca terem “visto” o que as palavras representam.

Daí a importùncia de fornecer modelos com informaçÔes de qualidade sobre as quais trabalhar.

“As alucinaçÔes ocorrem quando o modelo estende esse conhecimento um pouco alĂ©m do que realmente sabe fundamentalmente, quando tenta conspirar.

HĂĄ uma tendĂȘncia crescente de chamar as alucinaçÔes de fabulaçÔes, porque Ă© quando o GPT tenta preencher as lacunas em seu conhecimento, e nĂŁo entende bem que algo estĂĄ relacionado de uma maneira a outra coisa, e tenta inventar uma maneira pela qual ambas as coisas podem estar relacionadas”.

As alucinaçÔes sĂŁo uma consequĂȘncia natural da arquitetura dos modelos GPT, explicou Hamilton, e Ă© por isso que os jornalistas devem sempre pegar as informaçÔes dos programas como pegariam informaçÔes de qualquer outra fonte e verificĂĄ-las, mesmo quando essas informaçÔes pareçam fazer sentido.

Tecnologia revoluciona o formato

Entre as perguntas mais recorrentes feitas pelo pĂșblico durante o evento estavam aquelas relacionadas ao risco de jornalistas perderem seus empregos devido ao crescimento de tecnologias generativas de IA.

Os palestrantes concordaram que, em vez de ter medo, os profissionais da informação devem realmente entender como essa tecnologia funciona e se adaptar à nova realidade que ela traz.

“A maneira como consegui permanecer neste setor por tanto tempo Ă© porque consegui me adaptar rapidamente ou, pelo menos, me interessar pelo que estĂĄ por vir”, disse Rinehart.

“Acho que se vocĂȘ trabalha em redaçÔes e quer continuar trabalhando lĂĄ daqui a cinco anos, deveria considerar seriamente essa questĂŁo.

NĂŁo Ă© uma moda passageira, nĂŁo vai desaparecer, e quanto mais familiarizados estivermos com esse assunto, melhor serĂĄ nossa capacidade de reportagem e melhor entenderemos para onde as notĂ­cias estĂŁo indo”.

Essa tecnologia emergente traz consigo a oportunidade de revolucionar o formato em que as notĂ­cias sĂŁo entregues ao pĂșblico, assim como outros avanços tecnolĂłgicos, como o telĂ©grafo fizeram em seu tempo, disse Rinehart.

No século 19, o telégrafo impulsionou o surgimento do formato de pirùmide invertida na redação de notícias, que a AP padronizou em seu manual de estilo em 1953.

Da mesma forma, o ChatGPT estĂĄ criando uma nova maneira para o pĂșblico obter respostas para suas perguntas online, disse Rinehart. NĂŁo mais com links que levam a outros sites, mas com textos que respondem diretamente ao que o usuĂĄrio precisa.

Esta Ă© uma oportunidade para as redaçÔes encontrarem maneiras de satisfazer essa nova preferĂȘncia do pĂșblico, integrando modelos generativos de IA em seus processos de engajamento do leitor.

“Aprendemos muito com esse modelo de perguntas e respostas que o ChatGPT apresentou ao pĂșblico. E Ă© assim que as pessoas gostam de informaçÔes entregues a elas, nĂŁo querem links.

É claro que eles querem um parĂĄgrafo que explique tudo. As redaçÔes podem aprender com isso e integrar isso em suas ofertas?”.

O jornalista disse que as tendĂȘncias de emprego na indĂșstria do jornalismo serĂŁo direcionadas principalmente para uma maior demanda por cargos relacionados a SEO (posicionamento em mecanismos de busca) e trabalhos de edição e revisĂŁo.

De sua parte, Hamilton acrescentou que a capacidade até então limitada de gerar texto a partir do zero de modelos generativos de IA economiza o trabalho de repórteres e escritores. Mas esses modelos acabarão sendo integrados em uma dinùmica de cooperação com jornalistas.

“O desenvolvimento desses modelos, conforme a trajetória atual, visa simplesmente colaborar conosco, não automatizar totalmente os trabalhos.

“É muito importante estar ciente do problema, como diz Aimee, […] realmente usar essas ferramentas no dia a dia e descobrir onde elas se encaixam em nosso prĂłprio fluxo de trabalho, porque vai ser diferente para todos.”

A importĂąncia dos comandos (prompts)

Na IA generativa, o comando, chamado de prompt em inglĂȘs, Ă© a indicação dada aos modelos para gerar o conteĂșdo ou a resposta desejada. Quanto mais clara e estruturada for o comando, mais precisa serĂĄ a resposta da plataforma.

De acordo com os palestrantes, os comandos sĂŁo uma maneira que os usuĂĄrios podem orientar modelos como ChatGPT para obter material Ăștil.

O processo de concepção de comandos eficazes para obter respostas relevantes é conhecido como engenharia de prompts ou engenharia de comandos.

Os jornalistas que desejam tirar o mĂĄximo proveito da IA ​​generativa devem se tornar bons engenheiros de comandos, de acordo com os palestrantes. Quanto mais contexto e indicaçÔes incluir o comando ou prompt, melhor o resultado.

“Todos nós podemos nos tornar melhores engenheiros de prompts, no sentido de fazer perguntas mais detalhadas”.

“Eu estava conversando com alguĂ©m que entrevistou muitos profissionais de marketing e ele disse que eles sĂŁo melhores em projetar comandos do que jornalistas”, disse Reinhart.

“Um comando de trĂȘs palavras nĂŁo vai te levar muito longe; comece [contando ao modelo] algo como ‘imagine que vocĂȘ Ă© um professor universitĂĄrio dando esse dever de casa para um aluno do segundo ano’, algo assim. Esses detalhes podem aproximĂĄ-lo dos resultados desejados”, explica.

Desenvolver comandos eficazes para fins individuais de redação pode levar muito tempo, porque é um exercício de tentativa e erro e requer uma certa dose de intuição e conhecer melhor o modelo, disse Hamilton.

Os usuårios devem estar cientes de que os modelos GPT não são capazes de entender completamente o que estå sendo indicado a eles. Daí a importùncia de criar comandos com informaçÔes e contexto suficientes.

“Às vezes vocĂȘ tem que ser como um ‘encantador de IA’, e isso Ă© bom e ruim ao mesmo tempo. Pelo lado positivo, ele mantĂ©m a promessa da engenharia, de que pode ser determinĂ­stico, seguro e confiĂĄvel.

Mas esses tambĂ©m sĂŁo modelos que nĂŁo entendemos completamente. A engenharia de comandos Ă© um pouco de tentativa e erro, no sentido de que vocĂȘ nĂŁo pode criar um resultado perfeito todas as vezes.

Depende muito da intuição. VocĂȘ tem que trabalhar muito com o modelo para começar a ter uma ideia de como ele pensa”.

Hamilton e Reinhart concordaram com a necessidade de ter cuidado para não compartilhar informaçÔes sensíveis ou confidenciais em seus comandos.

Apesar de a OpenAI ter implementado neste ano a política de não utilização de informação que os utilizadores fornecem para treinar o modelo ChatGPT, ainda é incerto quantos dados permanecem nas nuvens dessas plataformas.

“Muitas dessas ferramentas pegam, coletam e usam tudo o que vocĂȘ coloca nelas. EntĂŁo, se vocĂȘ estĂĄ trabalhando em uma histĂłria grande e suculenta, eu evitaria fornecer qualquer informação para essas nuvens”, disse Rinehart.

Para os jornalistas que desejam se aprofundar no uso dessa nova tecnologia, o Centro Knight oferecerá o curso online gratuito “Como usar o ChatGPT e outras ferramentas generativas de IA em sua redação”, de 25 de setembro a 22 de outubro de 2023, anunciou Rosental Alves, diretor do Centro Knight, ao final do webinário.


Sobre o autor

César López Linares começou sua carreira no jornal mexicano Reforma como coeditor de entretenimento e mídia. César tem mestrado em jornalismo pela University of Texas em Austin e é bacharel em comunicação pela Universidad Nacional Autónoma de México.

Atualmente, ele escreve sobre inovação em jornalismo para a Fundação Gabo na ColÎmbia e para o blog LatAm Journalism Review do Centro Knight.


Este artigo foi originalmente publicado na LatAm Journalism Review, um projeto do Knight Center for Journalism in the Americas (Universidade do Texas em Austin). Todos os direitos reservados ao autor.