Buenos Aires – A crise do clima foi ignorada por grande parte dos eleitores da Argentina na eleição presidencial de novembro, que teve Javier Milei como vencedor.
Na campanha, o libertário expressou negacionismo em relação à influência do homem nas mudanças climáticas, que chamou de “falsa” em um debate eleitoral assistido por milhões de eleitores.
“Só querem arrecadar dinheiro para vagabundos socialistas que escrevem relatórios de quarta categoria”.
Crise do clima não teve influência na eleição de Javier Milei
A ONG de checagem de fatos Chequeado contestou o político e economista que ocupará a Casa Rosada nos próximos quatro anos:
“Muitos dos efeitos da mudança do clima que os cientistas previam já estão ocorrendo, como as ondas de calor”.
Milei foi eleito com quase 56% dos votos, maior votação em um presidente desde o retorno da democracia argentina.
A crise econômica foi decisiva, em meio a uma inflação de 142% em 12 meses, fazendo com que o aquecimento global e a preservação do meio ambiente ficassem de lado.
A situação lembra uma das tiras do personagem Mafalda, do argentino Quino (1932-2020): “Como sempre, o urgente não deixa tempo para o importante”.
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Cúpula do clima na transição do governo
A COP28 ocorreu na transição entre os governos do peronista Alberto Fernández e de seu opositor de ultradireita, Javier Milei. Fernández e o ministro do Meio Ambiente, Juan Cabandié, não viajaram para Dubai, assim como não tinham ido ao Egito.
A Argentina enviou uma comitiva tímida liderada pela secretária da Mudança Climática, Cecilia Nicolini, que só ficaria no cargo até a posse do novo governo. Quase no fim da cúpula, Milei enviou uma diplomata.
O desinteresse (rejeição?) de Milei pela pauta crucial foi refletido ainda na decisão de eliminar o Ministério do Meio Ambiente. Cinco dias antes da posse, não se sabia onde a pasta seria encaixada.
Depois de eleito, Milei arquivou, pelo menos por enquanto, algumas bandeiras de campanha. E em mais uma contradição entre o candidato e o presidente, escolheu o professor Fernando Villela, da Universidade de Buenos Aires (UBA), para a Secretaria de Agricultura, ligada ao Ministério da Economia.
Villela é respeitado por defender a produção agrícola com sustentabilidade e mudará o nome da pasta para “Secretaria de Bioeconomia”.
Seu discurso é diferente das declarações negacionistas de Milei: “Somos parte do meio ambiente e devemos produzir mais, porém cuidando dele”.
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Mudanças no clima afetam a economia no país governado por Milei
Nos últimos três anos, a Argentina registrou a pior seca “dos últimos cem anos”, de acordo com organismos como o Instituto do Clima e Água do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (INTA).
Ao MediaTalks, o especialista Fernando Confessore, do Serviço de Meteorologia Nacional (SMN), disse ter sido a estiagem mais intensa desde a criação do órgão.
Para Confessore, “certamente uma parte do longo período da La Niña (na Argentina), está ligado à mudança climática”.
A imprensa local tem mostrado como lagos no interior do país desapareceram, provocando mudança de hábitos. Numa viagem à província de Santa Fé, cortada pelo rio Paraná, testemunhei os olhos marejados dos habitantes, incluindo guias turísticos.
Para muitos deles, pela primeira vez foi possível atravessar o rio a pé, como se o caudal tivesse virado uma rua, uma avenida de terra seca.
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O drama do clima contribuiu para reduzir as exportações, drenou as reservas do Banco Central e afetou fortemente o desempenho da economia do país agora governado por Javier Milei.
Mas apesar dos efeitos do clima (excluído da cartilha de Milei na campanha), ele saiu vitorioso das urnas em 21 das 24 províncias, incluindo também a de Santa Fé.
A preocupação imediata com o bolso, que inclui as incessantes remarcações de preços na gestão de Fernández e do ex-candidato presidencial derrotado Sergio Massa, teve maior influência no voto do que a necessidade de se discutir e implementar políticas climáticas para o bem da humanidade
‘Divórcio’ da sociedade e das autoridades com o clima
O diretor geral da Fundação Vida Silvestre, Manuel Jaramillo, que participou da COP28, vê um ‘divórcio’ da sociedade e das autoridades argentinas com o clima.
Engenheiro florestal e porta-voz da entidade, que é associada à WWF e tem como missão a educação ambiental e a preservação do meio ambiente, Jaramillo afirma que a Argentina tem um enorme caminho pela frente para conciliar o que se fala com o que se faz.
Descaso do governo
“O antigo governo enviou 140 pessoas na COP passada e só 14 pessoas nesta. Já o novo governo não deu nenhuma importância ao encontro, o que demonstra sua visão sobre o meio ambiente”.
Fim do Ministério do Meio Ambiente
“O fim do Ministério responsável pelas poíticas de clima mostra que a questão não é prioritária para Milei. Entendo a pressão do desenvolvimento econômico num país com 40% das pessoas na pobreza.
Mas é enganoso pensar na saída econômica dissociada da agenda ambiental, pois o descaso com o meio ambiente afeta o desenvolvimento econômico e social.
Cometeremos um grave erro tentando promover o desenvolvimento econômico, o maior uso de combustíveis fósseis ou ampliando a fronteira agrícola em detrimento da natureza.”
Enorme caminho pela frente
“Nos últimos vinte anos aumentou a conscientização dos argentinos com relação ao impacto da questão ambiental na vida cotidiana, na economia, na estabilidade emocional.
Isso levou a mudanças positivas. Mas as atitudes de indivíduos, das empresas e do Estado estão muito longe de transformar a realidade.
E isso ocorre em todos os níveis. Ainda não realizamos, por exemplo, um consumo responsável de energia. Entre o que se fala e o que se faz, ainda temos um enorme caminho pela frente”.
Tema esquecido nas eleições
“Com a ampla vitória de Milei, ficou claro que o meio ambiente não é prioridade para a sociedade argentina. Isto é uma crítica para nós, das fundações ambientais, que não conseguimos tornar o assunto decisivo, porque grande parte dos eleitores acha que os assuntos ambientais são distantes de suas outras preocupações.
Assim, venceu quem disse que o aquecimento global não existe, que é uma invenção do socialismo, e que nem incluiu o meio ambiente em sua agenda de campanha”.
Falta de consciência
“Nos lugares onde foi implantada a separação dos resíduos, tem gente que não os separa por acreditar que tudo vai parar no mesmo lugar. Os mais jovens até separam, e usam os adubos em seus próprios jardins.
Porém, ainda são muitos os desafios. É o caso dos plásticos. Por comodismo, muita gente não usa as bolsas reutilizáveis”.
Seca histórica
“Tenho 50 anos, e nunca tinha visto um período de seca tão longo e intenso na Argentina. O impacto na economia do país mostra como o ambiental confronta com o político e o social.
Mas a sociedade não vê isso. E para os políticos, não vale a pena falar sobre isso porque eles têm muito pouco para mostrar sobre o seu compromisso com a causa”.
Este artigo faz parte de um relatório especial analisando as repercussões da COP28, jornalismo ambiental, ativismo e percepções da sociedade sobre as mudanças climáticas.
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