Londres – A invasão do estúdio da emissora estatal TC por criminosos armados no Equador nesta terça-feira, ato de violência registrado ao vivo, é mais um episódio da crise de liberdade de imprensa vivida por um país que já foi um dos mais seguros da região para jornalistas. 

Em apenas um ano, o Equador despencou 12 posições no índice de liberdade de imprensa global da organização Repórteres Sem Fronteiras, resultado de uma combinação da violência das gangues, crise econômica e polarização política. 

O país registrou três jornalistas mortos em 2022, e em 2023 o jornalista candidato à presidência Fernando Villavicencio foi assassinado pouco antes das eleições. Diante dos riscos, o  Equador  tem perdido profissionais que optam pelo exílio para fugir de ameaças do crime organizado – em um dos casos, era um plano com participação da máfia albanesa que atua no tráfico de drogas no país. 

Equador e a crise de liberdade de imprensa na América Latina 

No índice de 2023, o Equador, que agora está sob estado de emergência, aparece como 80º do mundo no ranking, posição melhor do que a do Brasil, que ficou em 92º.  E amargou um queda acentuada, mais dentre os 180 países que compõem o índice, assim como outros países da região. 

Na América Latina, dez países estão em situação melhor no Global Press Freedom Index (o México não faz parte da lista): Costa Rica, Trinidad e Tobago, Jamaica, Argentina, República Dominicana, Suriname, Belize, Uruguai, Guiana e Panamá.

Os problemas que afetam a liberdade de imprensa no Equador são regionais e comprometem a situação mesmo em nações mais bem colocadas. A Costa Rica caiu 15 posições em um ano; a Jamaica 20; a Argentina 11; a República Dominicana 13 e a Guiana 26. 

A invasão do estúdio de TV em Guayaquil foi uma violência extrema, mas não a primeira contra uma redação equatoriana, embora nesse caso os autores do ataque tenham sido presos.

Em março de 2023, pelo menos cinco jornalistas de rádio e TV receberam pendrives explosivos dentro de envelopes, alguns com ameaças.

Um chegou a detonar após inserido no computador, mas ninguém ficou ferido. No entanto, o medo aumentou. 

Riscos e medo no jornalismo equatoriano

Segundo a RSF, os jornalistas no Equador trabalham num clima de crescente hostilidade, perigo físico e autocensura, marcado por um aumento do poder de gangues criminosas e cartéis de drogas, bem como por um aumento de ameaças, ataques físicos e  assassinatos: 

“Os assassinatos, em 2023, dos jornalistas Mike Cabrera, Gerardo Delgado e César Vivanco (por razões ​​que podem estar ligadas ao seu trabalho jornalístico ou à sua condição de pré-candidatos às eleições regionais), as frequentes ameaças de morte contra jornalistas e os ataques aos meios de comunicação apontam para uma situação estrutural de violência e impunidade que afetam a profissão e, mais amplamente, a sociedade equatoriana como um todo.

Nas zonas fronteiriças, como as províncias de Esmeraldas e El Oro, e nos portos onde operam os cartéis, os jornalistas locais autocensuram-se cada vez mais, criando “buracos negros” de notícias e informações em várias regiões do país.”

Os três que morreram em 2022 eram proprietários de veículos locais. Em 2023 não houve mortes além da do candidato à presidência, mas isso pode se dever ao fato de que alguns ameaçados optaram pelo exílio. 

Fuga do Equador para escapar de ameaças 

O caso de maior repercussão foi o de um casal de jornalistas que deixou o país em julho de 2023 após alerta de uma agência de inteligência europeia sobre um plano de assassinato que seria executado por integrantes da máfia albanesa que atua no tráfico de drogas local. 

Andersson Boscán, casado com Mónica Velásquez, é um dos fundadores do veículo independente La Posta, que publicou uma reportagem com denúncias de corrupção e narcotráfico envolvendo o cunhado do presidente Guillermo Lasso e membros da máfia da Albânia. 

Um mês antes, a repórter Lissette Omarza desligou-se do trabalho na emissora de TV Majestade Television depois de ameaças por uma reportagem sobre falha de freios que teria causado um acidente de ômibus. 

Ela recebeu mensagens no Facebook e sofreu um acidente supostamente provocado por um veículo sem placas que empurrou o carro que dirigia para fora da estrada, causando uma capotagem. 

Em março, a jornalista especializada em cobertura do crime organizado Karol Noroña também deixou o Equador depois de ameaças de morte. 

Jornalista Karol Noroña foi para o exílio depois de ameaças no Equador
Karon Noroña é uma das jornalistas do Equador que optou pelo exílio

Um mês depois da saída de Noroña, a organização Periodistas Sin Cadenas, dedicada à defesa do jornalismo investigativo e da liberdade de expressão, anunciou que outro jornalista equatoriano havia deixado o país por ter recebido ameaças de morte e pela falta de proteção estatal.

Segundo o relato da organização, esse jornalista, cuja identidade não foi divulgada, “recebeu reiteradas ameaças que foram passadas ao conhecimento do Ministério Público do Estado, do Conselho de Comunicação, do Ministério do Interior e da Secretaria-Geral de Comunicação da Presidência nos últimos oito meses”.

“No entanto, nenhuma dessas instituições nem suas autoridades atenderam seu caso em todo esse tempo com a relevância que merece. Como consequência, devemos lamentar sua saída permanente do país”, afirmou a Periodistas Sin Cadenas.

Tempestade perfeita sobre a liberdade de imprensa no Equador 

A análise da RSF sobre a situação do Equador revela uma tempestade perfeita, formada pela combinação de crise econômica afetando a sobrevivência dos veículos, ameaças por parte do crime organizado e a tensão pré-eleitoral antes do pleito de agosto que elegeu Daniel Noboa. 

O período em que o Equador foi governado por Rafael Correa, entre 2027 e 2017, é considerado pela organização como ‘terrível para a liberdade de imprensa”, apesar de ter sido ele a dar abrigo ao fundador do Wikileaks, Julian Assange, na embaixada de Londres, para evitar sua extradição. 

No entanto, a situação doméstica era diferente. Segundo a análise da RSF, Correa “tentou constantemente controlar a agenda da mídia e transformar a mídia pública em mídia estatal, nunca hesitando em atacar pública e pessoalmente seus críticos na imprensa, e iniciando inúmeros conflitos entre o governo e a imprensa independente”.

Correa vive em Bruxelas, e a candidata (derrotada) de seu partido, Luisa Gonzáles, adotou a mesma narrativa, atacando jornalistas em entrevistas. 

Na avaliação da Repórteres Sem Fronteiras, a presidência de Lenín Moreno, de 2017 a 2021, e de Guillermo Lasso, eleito presidente em maio de 2021, aliviaram as tensões entre o governo e muitos veículos privados. 

No entanto, lembra a entidade, Lasso atacou o site de notícias La Posta  por causa de sua cobertura de “El Gran Padrino”, um caso envolvendo um membro de sua família, que levou à saída de seu dono do país. 

Imprensa afetada pela crise 

A liberdade de imprensa no Equador também foi afetada pela crise econômica, agravada pela pandemia da covid-19, destacou a RSF. 

Muitos jornais, como o La Hora ou o jornal estatal El Telégrafo , agora só existem online. Muitas estações de rádio cancelaram seus boletins notícias e até mesmo o principal diário, El Comercio, demitiu muitos de seus funcionários.

A mídia online está tentando dominar o jornalismo investigativo, seu modelo de negócios não é sólido o suficiente, como evidenciado pelo recente fechamento do site Los 4 Pelagatos .

A Lei Orgânica da Comunicação (LOC), promulgada em 2013, foi desviada de seu propósito original e muitas vezes saiu pela culatra contra os jornalistas, na avaliação da organização, e tem sido usada para justificar demissões, processos por difamação e multas impostas a repórteres.

Mas os aspectos mais críticos da antiga regulamentação foram reformados no governo Lasso, o que foi elogiado pela Repórteres Sem Fronteiras e por outras organizações. 

Ainda assim, o cenário é um dos piores na América Latina no que diz respeito a ameaças, levando vários jornalistas a se exilarem para se proteger. 

[jms-related-posts ids=”63984″