Um mês depois de a BBC ter se recusado a indenizar Donald Trump pela edição de seu discurso no dia da invasão do Capitólio em um documentário, o presidente dos EUA confirmou a ameaça e abriu um processo por difamação em um tribunal federal em Miami, exigindo da rede US$ 10 bilhões (R$ 54 bilhões).
Diferentemente de outras batalhas judiciais com empresas jornalísticas que resultaram em acordos milionários recentemente, a ação aberta contra a BBC nesta segunda-feira (15) envolve uma emissora financiada com recursos do governo e dos contribuintes por meio de uma taxa anual para para assistir aos seus canais, o que eleva o caso para uma crise política e diplomática.
O premiê britânico, Keir Starmer, vem tentando manter um relacionamento cordial com Trump, que foi recebido em uma visita de Estado há dois meses.
Os dois países dizem ter um “relacionamento especial”, que para o premiê pode se traduzir em investimentos e tarifas favoráveis, em um momento de economia em dificuldades e desgaste político do governo Trabalhista.
Mas para Trump, esse relacionamento não foi suficiente para poupar a BBC do processo justificado sob a alegação de que a rede “colocou palavras em sua boca”. Ele sugeriu o uso de inteligência artificial para adulterar suas falas.
Na verdade, o que houve foi uma edição das falas reais, o que havia sido admitido pelo próprio Trump, mas as declarações dele a jornais americanos nesta segunda-feira foram em outra direção.
O caso é político porque a BBC não teria autorização do Parlamento para fazer um acordo como as redes americanas e a até o YouTube fizeram para evitar desgastes políticos.
E se perder o processo, terá que usar recursos públicos para indenizar o presidente americano, motivando cobrança de uma posição firme de líderes políticos.
Ed Davey, líder do partido Liberal Democrata, instou o primeiro-ministro a defender a BBC “contra a ultrajante ameaça legal de Trump“.
Briga entre Trump e BBC tem fundamento jurídico?
No discurso de 6 de janeiro de 2021, Trump disse a apoiadores em Washington: “Vamos caminhar até o Capitólio e vamos aplaudir nossos bravos senadores e congressistas.”
E 50 minutos depois, no mesmo discurso, ele disse: “E lutaremos. Lutaremos com todas as nossas forças.”
O caso do Capitólio foi relembrado em um episódio do programa Panorama sobre a possibilidade de Trump voltar à Casa Branca, exibido antes das eleições de 2024. Um trecho o mostrou dizendo:
“Vamos caminhar até o Capitólio… e eu estarei lá com vocês. E lutaremos. Lutaremos com todas as nossas forças.”
A edição foi considerada errada em um relatório interno vazado ao jornal Daily Telegraph , dando início a uma crise que custou os cargos das mais altas lideranças executivas da rede (Tim Davie, Diretor-Geral, e Deborah Turness, diretora de jornalismo).
A BBC reconheceu que a edição deu “a impressão equivocada” de que ele havia “feito um apelo direto à violência” antes da invasão ao Capitólio dos EUA.
No entanto, o episódio do programa não foi exibido nos EUA, apenas no Reino Unido. E o serviço de streaming da BBC tem bloqueio de geolocalização, impedindo os usuários americanos de assistirem a não ser que tenham recursos para burlar a barreira, como VPN.
Na avaliação de especialistas, isso poderia desconstruir aos olhos da Corte a tese de Trump de que o programa teria causado prejuízos, até porque ele venceu o pleito.
Quando houve a primeira ameaça de processo, que seria de US$ 5 bilhões, o presidente da BBC, Samir Shah, escreveu em uma mensagem para a equipe que “não há base para um processo de difamação”, e que e a corporação de mídia pública “está determinada a lutar contra ele”.
Por que Trump seguiu adiante com processo contra a BBC?
O posicionamento firme da BBC sobre não fazer acordos poderia ter desestimulado o presidente americano a entrar com o processo apostando em uma capitulação da rede para não pagar indenização ainda maior se perdesse a causa, além de uma crise política com o Reino Unido.
Mas não foi isso que aconteceu. E o padrão de comportamento de Trump com a mídia explica o motivo.
Mesmo com fundamento jurídico duvidoso para uma vitória, a ação de Trump contra a BBC pode render dividendos políticos em um momento em que ele vem sendo questionado até pela sua base MAGA, alimentando a narrativa de luta contra a grande imprensa.
Um porta-voz da equipe jurídica de Trump, em comunicado após a abertura do processo, disse:
“A anteriormente respeitada e agora desonrada BBC difamou o presidente Trump intencionalmente, maliciosamente, e editando enganosamente o seu discurso numa tentativa descarada de interferir nas eleições presidenciais de 2024.”
E completou dizendo que “a BBC tem um longo padrão de enganar o seu público na cobertura do presidente Trump, tudo ao serviço da sua própria agenda política de esquerda”.
O governo britânico não se manifestou oficialmente imediatamente após a notícia do processo. Em entrevista sobre outro assunto nesta terça-feira, Stephen Kinnock, ministro da saúde, disse “achar certo que a BBC se mantivesse firme” contra as alegações de difamação de Trump e que esperava que “eles continuassem a fazê-lo”, assegurando que o Partido Trabalhista apoia a rede.
Mas para a BBC, o processo vem em má hora. A rede vive uma longa crise, com suas práticas de imparcialidade questionadas, estrelas afastadas ou condenadas por crimes sexuais e queda de audiência, sobretudo entre jovens.
Em 2027, o contrato que rege o financiamento do jornalismo da rede por meio da taxa paga pelas residências para assistir aos canais será renovado no Parlamento. A ação judicial movida por Trump, sobretudo se ele obtiver alguma vitória parcial, deixará as negociações mais complicadas.
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