Londres – Os Jogos de Inverno de Pequim estão sendo abertos no dia 4 de fevereiro em uma clima de contestação pelas violações da liberdade de imprensa na China, como a que acaba de ser feita pelo Clube de Correspondentes Estrangeiros no país.
O FFFC (Foreign Correspondents Club of China) publicou nesta segunda-feira (1/2), um relatório criticando duramente as condições de trabalho para os profissionais de veículos globais, consideradas fora dos padrões internacionais por 99% dos entrevistados.
Entre as denúncias feitas no documento intitulado “Confinado ou Expulso: cobrindo a China”, está a de que vários jornalistas estrangeiros são vigiados de forma permanente, online e offline, e que pelo menos seis já tiveram que sair do país.
Liberdade de imprensa em xeque
O relatório foi baseado em entrevistas com mais de 100 correspondentes internacionais que atuam na China.
Segundo o Clube de Correspondentes, o Estado chinês tem assediado severamente jornalistas estrangeiros e suas famílias. Eles chegam a ser seguidos e abordados mesmo em viagens pessoais.
“O FCCC está preocupado com a velocidade vertiginosa com que a liberdade de mídia está diminuindo na China”, disse o relatório, que afirma que os obstáculos são “sem precedentes”.
Cobertura dos Jogos de Inverno dificultada pela China
Embora competições internacionais sejam objeto de atenção da mídia internacional baseada no país e de enviados especiais para a cobertura, a falta de transparência por parte das autoridades chinesas a respeito dos jogos também foi criticada.
O FCCC disse em seu relatório que “a liberdade de mídia se deteriora nos períodos em torno dos principais eventos da China – um momento em que as autoridades querem garantir a estabilidade política”.
Segundo o grupo, 60% dos correspondentes estrangeiros disseram não ter recebido informações adequadas antes dos eventos relacionados aos Jogos de Inverno em Beijing.
E 23% relataram sequer ter conseguido entrar em contato com os representantes do Comitê Olímpico.
Somente 10% dos correspondentes declararam ter participado de forma confiável em eventos pré-olímpicos e conferências de imprensa.
O relatório afirma que esses eventos têm tido a presença massiva da mídia estatal chinesa e muitas vezes só são divulgados posteriormente.
Em novembro, o FCCC havia acusado formalmente as autoridades chinesas de obstrução ao trabalho da mídia estrangeira na cobertura dos jogos, negando pedidos de acesso e assediando jornalistas.
Em resposta, o comitê organizador dos Jogos de Inverno (Bocog), afirmou em comunicado que nunca reconheceu a organização (embora ela reúna os correspondentes das maiores organizações de mídia do mundo) e que ela não representava a verdadeira voz dos jornalistas estrangeiros na China.
A nota afirmou que o comitê garantia a liberdade de cobertura da mídia internacional sobre jogos “de acordo com políticas chinesas relevantes”, e sob a condição de que regulamentos de controle de epidemia fossem obedecidos”.
Jornalistas são obrigados a deixar o país
O problema não se resume aos Jogos de Inverno e vem sendo amplamente documentado pela imprensa internacional e por grupos de defesa de direitos humanos e da liberdade de imprensa, como a Repórteres Sem Fronteiras.
Em dezembro passado, a organização publicou um relatório sobre a situação da mídia no país, cobrindo os problemas que afetam os profissionais chineses e estrangeiros.
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O manifesto do Clube de Correspondentes divulgado esta semana detalha como as violações e ameaças a jornalistas locais estão afetando profissionais da imprensa internacional.
O assédio é tamanho que pelo menos seis profissionais já deixaram o país.
Um dos casos mais notórios foi o do John Sudworth, premiado correspondente da BBC, que deixou seu posto em Pequim em março 2021 sob ameaça.
“Sair às pressas com nossos filhos, tendo policiais à paisana nos seguindo até o aeroporto, foi a prova final dos perigos que enfrentamos e da profunda intolerância da China ao jornalismo independente”, disse o jornalista.
1/Statement on Journalist Departures:
The FCCC is concerned and saddened to learn that John Sudworth, the BBC’s award-winning China correspondent for the last nine years, left mainland China at short notice on March 23rd amid concerns for his safety and that of his family.
— Foreign Correspondents' Club of China (@fccchina) March 31, 2021
A expulsão de jornalistas estrangeiros pelo governo chinês em 2020 continua sendo o “maior golpe para reportagens internacionais na China”, disse o jornalista Steven Lee Myers no relatório do FCCC.
O chefe da sucursal de Pequim do New York Times também foi expulso da China e agora vive em Seul, na Coreia do Sul.
Pandemia usada para afastar correspondentes
Segundo o Clube de Correspondentes, a pandemia tem sido utilizada como desculpa para negar vistos, impedir o acesso de jornalistas a determinados locais, proibir viagens de reportagens e cancelar entrevistas.
O relatório informa que 52% dos entrevistados relataram terem sido orientados a deixar um local ou tiveram o acesso negado por motivos de saúde e segurança, mesmo quando não havia risco.
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Jonathan Cheng, do Wall Street Journal, declarou que a a forma como o Estado utiliza a Covid-19 tem feito o jornal mudar seus planos de reportagem:
“Cancelamos várias viagens planejadas porque tínhamos certeza de que as restrições atribuídas à Covid iriam nos impedir acesso.”
Entrevistas monitoradas e dados apagados
O relatório do FCCC revelou que a Região Autônoma de Xinjiang Uyghur é uma das mais difíceis de se trabalhar.
Várias partes da região foram fechadas para jornalistas estrangeiros em 2021, sob alegação de necessidade de controlar a disseminação do coronavírus. Uma quarentena de sete dias também foi imposta a repórteres que quisessem ir ao local.
Apesar disso, mais correspondentes conseguiram viajar para Xinjiang em 2021 do que em 2020: 32 entrevistados visitaram a região pelo menos uma vez em 2021, o que representa um aumento de 78% em relação ao ano anterior.
Mas a vigilância foi severa: 88% dos que conseguiram viajar para a região disseram ter sido ostensivamente seguidos por policiais à paisana.
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Quase a metade deles tiveram suas entrevistas monitoradas ou mesmo interrompidas. Outros 34% foram solicitados ou forçados a excluir dados, como fotos ou vídeos, que haviam feito em Xinjiang.
Sophia Yan, correspondente do Daily Telegraph, contou que chegou a ser agredida fisicamente em Xinjiang.
“Eles nos acusaram de invasão e de tirar fotos em área militar, mesmo quando estávamos claramente no meio do deserto com nada a milhas de distância.
O operador de câmera e eu fomos atingidos no rosto, meu lábio sangrou, e eles confiscaram parte de nosso equipamento.”
Jornalistas sofrem ameaças de processos
Nove correspondentes estrangeiros disseram que foram processados ou ameaçados com ações legais tanto por fontes quanto por entidades governamentais.
Para David Rennie, chefe da sucursal da revista The Economist em Pequim, o uso da lei é algo “novo e preocupante”.
“O cenário de risco está mudando e seguindo rumo obscuro.
As organizações jornalísticas recebem alertas de que suas reportagens podem expô-las a sanções legais ou ações civis, ou – mais ameaçadoramente – a investigações de segurança nacional”.
O FCCC manifestou preocupação, pois estrangeiros envolvidos em ações civis ou criminais e em processos judiciais na China podem ser proibidos de deixar o país.
Já existem precedentes para isso. A jornalista australiana Cheng Lei (da emissora estatal chineda CGTN) e o chinês Haze Fan (da Bloomberg News) estão detidos há mais de um ano.
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Segundo o FCCC, as autoridades chinesas não divulgaram publicamente detalhes sobre Cheng ou Fan. Apenas deram vagas alegações de envolvimento em casos de segurança do Estado.
Alice Su, do Los Angeles Times, também falou sobre ter sido ameaçada:
“Uma fonte em Sichuan que havia sido muito colaborativa durante a entrevista mais tarde me ligou freneticamente pelo WeChat e ordenou que eu removesse tudo o que eu apurei sobre sua aldeia, sob pena de mover uma ação criminal contra mim.”
As ameaças à liberdade de imprensa na China estendem-se às fontes.
Segundo o relatório do FCCC, mais de um quarto dos entrevistados disseram que suas fontes foram assediadas, detidas ou chamadas para interrogatório pela polícia mais de uma vez.
Trollagem online
A pesquisa do Clube de Correspondentes constatou que quase 25% dos entrevistados foram alvo de campanhas de difamação online como resultado de suas reportagens na China.
Esses ataques transformaram o ambiente de trabalho no país em um cenário ainda mais hostil para os correspondentes estrangeiros.
Veículos globais como BBC, NPR (National Public Radio, emissora pública dos EUA) e The Economist foram atacados online por suas matérias.
Os ataques vieram principalmente de entidades ligadas ao Estado e pela mídia estatal, mas também de contas anônimas de mídia social, afirma o FCCC.
Muitos correspondentes tiveram dados como nome completo, telefone pessoal e dados de identidade divulgados online.
Na publicação do FCCC, há o relato de uma empresa de mídia europeia que não quis se identificar:
“Alguns dos nossos correspondentes que cobram a China de fora do país têm enfrentado ondas de abuso e assédio por parte dos usuários de internet chineses, incluindo tentativas de invasão de suas contas privadas em redes sociais.
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Ameças a jornalistas mulheres
A perseguição e limitação da liberdade de imprensa na China tem avançado com mais força para profissionais do sexo feminino.
Os ataques são direcionados principalmente àquelas oriundas do leste asiático.
Além de terem suas reportagens depreciadas em comentários online, os agressores ainda fazem insinuações sexuais grosseiras, “incluindo ameaças alarmantes de violência física”, afirma o FCCC.
A correspondente da NPR Emily Feng descreveu no relatório a ameaça que sofreu:
“Depois que um blog vinculado ao Estado publicou várias denúncias criticando minha reportagem de seis meses atrás como ‘ilegal’, centenas de contas de mídia social chinesas começaram a postar minha foto junto com comentários como ‘espanque-a até a morte’ e descrevendo atos sexuais ”
Cobertura sobre a China a partir do exterior
Fazer jornalismo na China tem se tornado uma tarefa remota devido a obstruções do governo chinês, com 62% dos entrevistados pela FCCC dizendo que tiveram a presença física em algum local obstruída pelo menos uma vez.
O ambiente de perseguições levou vários veículos a alocarem seus correspondentes fora do país, prática contrária ao princípio da boa reportagem internacional, que pressupõe a presença local para compreender melhor a realidade.
Jonathan Cheng, chefe da sucursal de Pequim do Wall Street Journal, disse que esse é o segundo ano consecutivo em que quase toda a cobertura sobre o país tem sido feita de fora dele.
“Isso testou nossa desenvoltura, mas há algumas coisas que simplesmente não podemos fazer de longe, como mostrar aos nossos leitores situações que ocorrem fora das maiores cidades da China.”
Vários correspondentes estrangeiros acabaram migrando para Taipei, Cingapura, Sydney e Londres.
Já Hong Kong deixou de ser uma opção após a China endurecer as regras da fronteira e publicar uma nova lei de segurança nacional que afetou diretamente os jornalistas estrangeiros.
A imprensa do país foi inteiramente sufocada, com o fechamento dos principais jornais independentes em 2021.
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Redações esvaziadas por problemas com vistos
Em 2021 os presidentes Joe Biden e Xi Jinping anunciaram um acordo entre China e EUA no sentido de aliviar os vistos para jornalistas de ambos os países, mas poucos foram processados.
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Segundo o relatório do FCCC, 46% dos entrevistados disseram que seus escritórios estavam com falta de pessoal justamente porque não conseguiram trazer o número necessário de jornalistas, enquanto apenas 4% declararam ter recebido um novo visto de trabalho em 2021.
Na avaliação do Clube de Correspondentes, o motivo é o favorecimento a jornalistas que cobrem o país de forma positiva aos olhos do governo. Um total de 36% dos escritórios continuam aguardando liberação de vistos para seus profissionais.
A situação é pior para profissionais de organizações de mídia dos EUA, em retaliação a sanções impostas pelo governo chinês.
Segundo o FCCC, em setembro de 2020 a China parou de emitir credenciais de imprensa para jornalistas que trabalhem para veículos americanos. Eles receberam apenas cartas com direitos provisórios de trabalho.
Essa tática de assédio impactou pelo menos 22 jornalistas com nacionalidade dos EUA, Reino Unido, Canadá, Itália, Japão e Nova Zelândia. Uma repórter da mídia britânica, que também não quis se identificar, falou sobre o assunto.
“Nós tínhamos quatro pessoas esperando por novos vistos, uma delas desde dezembro de 2020.
A última explicação que nos foi dada era que nós éramos da mídia britânica e o MOFA não poderia conceder vistos para a mídia britânica enquanto as políticas de combate à Covid-19 do Reino Unido fossem tão ruins.
Mas nenhuma das pessoas que esperavam o visto estava no Reino Unido.”
Devido ao que o grupo classificou como “limbo de vistos”, jornalistas com cidadania americana trabalhando para organizações de mídia do país ficaram impedidos de sair da China e retornar para trabalhar.
O relatório completo pode ser lido aqui.
Crise com organizações internacionais
A intolerância da China atingiu também organizações internacionais que defendem a liberdade de imprensa. A Repórteres Sem Fronteiras tem sido o principal alvo.
Em 2021, o país ficou em 177º lugar entre 180 nações que fazem parte do ranking de liberdade de imprensa compilado pela RSF.
Violações como expulsões, perseguições, prisões e condenações são denunciadas regularmente pela entidade sediada na França, expondo os problemas em escala global.
A paciência do governo chinês esgotou-se em outubro. Em um artigo de opinião assinado por Hu Xijin, editor do jornal estatal The Global Times, o governo atacou direta e nominalmente a organização.
Em tom violento, o editor afirmou que o remédio para lidar com o que julga interferência em assuntos internos seria carregar um porrete na bagagem para combater “o cão selvagem que assombrará a estrada da China de tempos em tempos”.
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