Londres – A notícia do fim da batalha jurídica de Julian Assange, que nesta segunda-feira (24) deixou o Reino Unido em liberdade condicional rumo às ilha Saipan para se declarar culpado em uma das acusações movidas pelo governo dos EUA devido ao vazamento de documentos de guerra do país, foi recebida com alívio e também com alguma preocupação, pelo risco de impacto sobre casos semelhantes.
A defesa fez um acordo com o Departamento de Justiça dos EUA mediado pelo Supremo Tribunal Federal britânico, pelo qual o fundador do Wikileaks vai se declarar culpado de conspiração e divulgação de documentos de segurança nacional, com base na lei de Espionagem que data de 1917, e sentenciado a 62 meses de prisão.
Como este é o tempo em que ele ficou preso na penitenciária de Balmarsh, em Londres, aguardando a tramitação do processo de extradição, Assange deixou a cadeia e após a audiência, marcada para quarta-feira (26), seguirá para a Austrália, seu país natal, onde já estão sua mulher, Stella, e os dois filhos.
O Wikileaks deu a notícia da liberdade de Assange na noite de terça-feira e publicou suas primeiras fotos fora da cadeia, embarcando no avião, com cabelos mais curtos e aparência saudável.
Stella Assange divulgou uma imagem da tela do celular recebendo uma ligação do marido em Sydney, onde o aguarda.
O acordo da liberdade de Assange
Saipan, que faz parte das Ilhas Marianas do Norte, é um território americano, mas não um dos 50 estados, condição semelhante à de Porto Rico, por exemplo, que tem leis próprias.
O local foi escolhido para evitar que o fundador do Wikileaks entrasse oficialmente nos EUA, e por ser mais perto da Austrália.
Apesar do alívio de seus apoiadores diante do risco de ele passar o resto da vida em uma cadeia dos EUA se fosse condenado nos 18 processos e até de cometer suicídio, os EUA não retiraram todas as acusações contra ele, o que tem sido lembrado em meio às mensagens sobre a vitória judicial, política e diplomática.
O fato de uma declaração de culpa ter sido a única alternativa deixa uma nuvem de preocupação sobre o risco de criminalização de quem vaza ou publica documentos sigilosos, mesmo que sob a perspectiva do interesse da sociedade.
Este foi o tema de uma campanha feita pela Repórteres Sem Fronteiras na defesa de Assange, chamada “Danos Colaterais”.
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“Se o governo dos EUA conseguir extraditar Assange e processá-lo ao abrigo da Lei de Espionagem, qualquer um que publique reportagens baseadas em informações confidenciais vazadas poderá ser o próximo – e o impacto resultante será, em última análise, sobre o nosso direito de saber”, disse na época Rebeca Vincent, diretora global de campanhas da RSF.
Imenso apoio internacional a Assange não foi suficiente para convencer os EUA
Julian Assange nasceu na Austrália, e por isso o governo de seu país teve papel fundamental no acordo que envolveu os EUA e o Reino Unido, com o primeiro-ministro Antonhy Albanese entrando na briga para levá-lo de volta para casa pessoalmente.
O que ele não conseguiu, nem a defesa nem as organizações de direitos humanos e de liberdade de imprensa foi convencer os EUA de que o que o fundador do Wikileaks fez não foi crime, e que jornalismo não é crime.
Esta foi a bandeira nos 12 anos em que Assange ficou enclausurado, primeiro como refugiado na embaixada do Equador em Londres entre 2012 e 2019 e depois na penitenciária de Belmarsh.
Ele nunca foi julgado no Reino Unido. A batalha jurídica foi em torno da extradição pedida pelos EUA, sob alegação de que Assange colocou vidas em risco quando ajudou a ex-analista de inteligência do exército dos EUA, Chelsea Manning, a roubar telegramas diplomáticos e arquivos militares, incluindo vídeos mostrando ataques a civis, que o WikiLeaks colocou online em 2010.
Em uma primeira decisão, em janeiro de 2021, o tribunal entendeu que havia risco de agravamento de sua saúde e suicídio se ele fosse para o país, mas a sentença foi revista em instâncias superiores.
A defesa seguiu argumentando sobre os riscos, diante de garantias oferecidas pelos EUA. O último lance aconteceu em maio, quando um painel de dois juízes considerou as garantias insuficientes, concedeu o direito de nova apelação, e as duas partes tentaram entrar em acordo para uma saída.
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Declarações cuidadosas durante o processo
O que acabou acontecendo – mas não da forma como os defensores da liberdade de imprensa queriam, embora tenha sido o reparo para uma injustiça que poderia ser bem maior.
Após a saída de Assange do Reino Unido, as declarações de sua mulher, do Wikileaks, dos familiares que se empenharam na mobilização internacional e das organizações de liberdade de imprensa têm sido cautelosas, sem confrontar a confissão de culpa, tom diferente do que vinham adotando.
É compreensível que neste momento tudo o que nenhum deles quer é um retrocesso. Mas não é improvável que depois de tudo resolvido, Assange e seus apoiadores se manifestem de forma mais direta.
O tom da cobertura de imprensa também é positivo, concentrando-se no fim do drama, enquanto alguns fazem a observação sobre as condições impostas para esse desfecho.
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O risco do precedente
Em um artigo no portal acadêmico The Conversation, Peter Greste, jornalista que já foi preso no Egito, hoje leciona na Macquarie University e preside o grupo de liberdade de imprensa Alliance for Journalists’ Freedom, escreveu:
“Este caso teve inegavelmente um sério efeito inibidor no jornalismo de interesse público e envia uma mensagem aterrorizante a fontes que tenham provas de abusos por parte de governos e de seus representantes.
Embora seja impossível quantificar o número de histórias não contadas, é difícil imaginar que [o caso Assange] não tenha assustado potenciais denunciantes e repórteres.”
Greste acredita que a liberdade de Assange condicionada a uma confissão de culpa também deixa em aberto a questão do precedente.
“Ainda não está claro se os futuros governos poderão utilizar a confissão como fundamento para utilizar a Lei da Espionagem para perseguir o jornalismo desconfortável.”
O jornalista lembra que “como já foi visto, líderes com uma tendência autoritária tendem a utilizar todas as alavancas disponíveis para controlar o fluxo de informação, e isso deve certamente preocupar quem acredita no poder corretivo de uma imprensa livre”.
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Políticos dos EUA e Reino Unido se livraram de um problema
O desfecho do caso Assange é uma vitória para o primeiro-ministro Anthony Albanese e um alívio para dois outros líderes.
Joe Biden, presidente dos EUA, se livrou das pressões para retirar as acusações e do risco de ter que administrar protestos durante a campanha eleitoral caso ele fosse extrditado.
E Keir Starmer, que se as pesquisas estiverem corretas deverá se eleger primeiro-ministro britânico no dia 4 de julho, não terá mais o problema Assange no quintal de casa.
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