O Washington Post ainda representa, para alguns, o compromisso de jornalismo investigativo ferozmente independente que pode destituir um presidente corrupto.
No que se tornou uma das maiores reportagens do século XX, Richard Nixon (1969-1974) foi forçado a renunciar à presidência em 1974, na metade de seu segundo mandato, após uma investigação dos repórteres do Post Carl Bernstein e Bob Woodward.
Após meses de trabalho, a equipe do jornal associou Nixon e sua equipe de campanha a doações ilegais e à escuta e sabotagem de oponentes políticos.
A descoberta incluía uma invasão nos escritórios do Comitê Nacional Democrata no Edifício Watergate, em Washington. O trabalho deles ganhou um prêmio Pulitzer.
Isso deu início a décadas de jornalismo investigativo e furos de reportagem que consolidaram a reputação internacional do Washington Post.
Jeff Bezos e o Washington Post
Em comunicado recente, o dono bilionário do Post, Jeff Bezos, declarou que a seção de opinião do jornal agora será restrita a matérias apoiando “liberdades pessoais e livres mercados” (e não pontos de vista opostos).
Foi um choque não apenas para leitores liberais leais e alguns jornalistas, mas também para aqueles que consideram o Post como um símbolo da liberdade de imprensa.
Bezos disse no X que opiniões divergentes podem ser “deixadas para serem publicadas por outros”.
A decisão de Bezos levou o editor de opinião David Shipley a se demitir, e Elon Musk a tuitar:
“Bravo, @JeffBezos!”.
O recém-nomeado repórter de economia do jornal, Jeff Stein, também foi ao X para responder ao comunicado tuitado por Bezos, chamando de “invasão massiva” de seu novo chefe.
Ele acrescentou:
“Ainda não senti invasão no meu jornalismo no lado das coberturas de notícias, mas se Bezos tentar interferir no lado das notícias, vou pedir demissão imediatamente e avisar vocês”.
Algumas fontes sugerem que o Post perdeu 75.000 assinantes digitais desde que a decisão foi anunciada.
Eleição de Trump e reputação do Washington Post manchada
Para muitos, a reputação do Post já estava ficando manchada antes.
Bezos abalou seus leitores em outubro de 2024 quando se recusou a apoiar um candidato na eleição presidencial pela primeira vez em 36 anos.
De acordo com o jornal, a decisão levou 250.000 leitores a cancelarem suas assinaturas.
Woodward e Bernstein disseram na época que a decisão “ignorava as próprias evidências jornalísticas esmagadoras do Washington Post sobre a ameaça que Donald Trump representa para a democracia.
E não foi nenhuma surpresa ver na posse de Trump Bezos sentado de forma destacada ao lado de seus colegas bilionários da tecnologia Mark Zuckerberg, da Meta, Elon Musk, do X, e Sundar Pichai, do Google.
Mas está tudo perdido?
O Washington Post sempre teve sua cota de repórteres e comentaristas ousados e sinceros e, na sexta-feira, o colunista do Post, Dana Milbank, escreveu uma matéria de opinião firmemente redigida.
Ele disse que os leitores estavam preocupados que as palavras de Bezos “sejam um disfarce para um plano de transformar o jornal em um canal MAGA-Friendly”. E acrescentou:
“Se nós, como jornal e como país, quisermos defender os dois pilares [estabelecidos por Bezos como foco dos editoriais], então devemos redobrar nossa luta contra a maior ameaça às ‘liberdades pessoais e livres mercados’ de hoje: Donald Trump.”
A última jogada de Bezos simplesmente deixou clara uma posição editorial que é normalmente deduzida, mas não explícita?
Os repórteres serão livres para conduzir investigações sobre as práticas de trabalho da Amazon e, ao mesmo tempo, exaltar os objetivos de livre mercado? Até agora, ninguém sabe ao certo.
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Mudanças na cobertura?
Em janeiro, a cartunista vencedora do prêmio Pulitzer do jornal, Ann Telnaes, se demitiu após o Post se recusar a publicar uma charge satírica.
O desenho era de um grupo de bilionários da tecnologia e da mídia (que incluía Bezos e o chefe da Meta, Mark Zuckerberg) colocando sacos de dinheiro diante de uma estátua de Trump.
Telnaes descreveu a recusa em publicar como “perigosa para uma imprensa livre”. Ironicamente, foi David Shipley quem alegou na época que havia decidido não publicar devido à “repetição”, e não porque a charge zombava de Bezos.
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No entanto, os repórteres do Washington Post continuaram a focar a cobertura nacional nos vastos efeitos das ordens executivas de Trump, na demissão de líderes militares e no corte de recursos e empregos do DOGE [ o departamento de eficiência governamental liderado por Elon Musk] no setor público.
O Washington Post não escapou nem das mudanças do novo governo de Trump no acesso à mídia.
Em 7 de fevereiro, o Departamento de Defesa anunciou que o Post seria removido de seu escritório no “Corredor de Correspondentes” do Pentágono.
Ele foi junto com a CNN, além do New York Times, NPR e NBC, despejados anteriormente para dar lugar a veículos de comunicação pró-Trump.
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The Post hoje
Em 2024, o Post levou para casa três prêmios Pulitzer de jornalismo.
Um deles foi para David E. Hoffman “por uma série convincente e bem pesquisada sobre novas tecnologias e as táticas que regimes autoritários usam para reprimir a dissidência na era digital, e como elas podem ser combatidas”.
Os últimos anos foram financeiramente difíceis para o jornal, e em 2023, anunciou que havia perdido US$77 milhões . Em sua última rodada de cortes em janeiro deste ano, foram demitidos 100 funcionários.
Quando Bezos assumiu o jornal, em agosto de 2013, o New York Times citou um colega empreendedor de tecnologia, o CEO da Redfin, Glenn Kelman, dizendo em uma fala agora profética:
“Costumava ser no Vale do Silício que nós apenas construíamos as plataformas e outra pessoa escrevia o conteúdo. Mas isso está mudando.
Os limites estão misturados há muito tempo, e este é apenas mais um passo nesse processo.”
Doze anos depois, a “broligarquia” pode não estar escrevendo o conteúdo, mas está o restringindo?
Nestes tempos difíceis em Washington, parece haver uma erosão crescente da liberdade de imprensa, à medida que o novo governo se move para limitar o acesso à Casa Branca para a grande imprensa, como a Associated Press, em favor da imprensa pró-Trump.
Não está claro se o Post ficará do lado da liberdade de imprensa ou se está apostando em um eventual crescimento pós-Trump para conter suas vendas em declínio.
Este artigo foi publicado originalmente no portal acadêmico The Conversation e é republicado aqui sob licença Creative Commons.
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