Londres – A gestão da Covid-19 no Reino Unido foi turbulenta desde o início. Porém, nem quando o país de 67 milhões de habitantes registrava o absurdo número de 1,2 mil mortes por dia a crise de imagem do primeiro-ministro foi tão grande como agora, elevando as pressões para que ele renuncie. 

A culpa não é só do coronavírus nem dos recordes diários de novos casos, que nesta sexta-feira bateram 93 mil. Boris Johnson vinha enfrentando denúncias envolvendo doações ao partido Conservador, uso de verbas para reformas na residência oficial e custeio de viagens de férias.

No entanto, tudo piorou depois das notícias sobre confraternizações realizadas em Downing Street 10, onde trabalha a cúpula da administração pública, no longínquo dezembro de 2020, quando o país amargava um lockdown. E de uma série de trapalhadas dos assessores que deveriam proteger a reputação mas que acabaram dificultando ainda mais as coisas.

A crise das festas que não aconteceram mas aconteceram 

O noticiário sobre as festas vai além de rumores. Diariamente aparecem novas evidências de que elas de fato ocorreram, como troca de emails e até uma foto do próprio primeiro-ministro comandando um quiz cercado de auxiliares. 

No domingo (19/12) a imagem de um encontro no jardim da residência oficial em maio de 2020, no auge do lockdown, com queijos e vinhos e a presença de Johnson e de sua mulher agravavam ainda mais o caso. 

Em situações dessa natureza, assessores políticos e de comunicação têm a missão de aconselhar os líderes e atenuar problemas diante da imprensa e do público, adotando princípios consagrados de gestão de crises, sobretudo a transparência. 

Mas o governo de Boris Johnson subverteu essa lógica. 

Os principais protagonistas do enredo inacreditável são justamente dois auxiliares diretos dele.

Um é Simon Case, designado para investigar a existência das tais festas, que teve que deixar a liderança das investigações nesta sexta-feira após notícias de que uma delas aconteceu em seu próprio escritório, no melhor estilo “lobo com a chave do galinheiro”.

Ele ocupa o prestigiado cargo chefe de gabinete de Johnson e responsável pelo comando dos funcionários públicos, cargo que assumiu depois de uma bem-sucedida trajetória profissional, chegando a secretário principal do príncipe William. 

A outra é Allegra Stratton, jornalista com passagens pelo The Guardian, BBC e ITV, onde comandou a editoria nacional. Há duas semanas ela deixou o governo após o vazamento de um vídeo em que ironizava a existência das festas, sepultando de vez o plano de negar que elas aconteceram. 

Uma das mais ácidas críticas à falta de transparência veio do Twitter do programa humorístico Have I Got News for You, uma paródia sobre como o governo tentava explicar o inexplicável:

“As últimas sobre as festas de Natal em Number 10 (Downing Street 10): elas não aconteceram, mas se aconteceram (o que não aconteceu), nenhuma regra foi quebrada, já que todos aderiram às regras enquanto a festa não estava acontecendo”. 

 Crises de reputação não vão embora sozinhas 

O tempo decorrido entre as festas e as notícias sobre elas é um sinal de que desvios não são perdoados pela mídia, por opositores e pela opinião pública só porque  ocorreram no passado.

A dor dos que perderam parentes para a Covid e que amargaram um Natal infeliz em 2020, sem poderem se reunir com familiares enquanto os poderosos brindavam e festejavam fez com que a crise de imagem tomasse uma dimensão nacional, com consequências políticas e sobre a saúde pública.

Na quinta-feira (16/12) o Partido Conservador perdeu de lavada um assento que detinha há mais de 200 anos em uma eleição local. 

Os erros que levaram à crise de imagem 

Há uma lista interminável de mandamentos da administração de crises de imagem que não foram seguidos, como negar peremptoriamente o que já se sabia ser verdade (ou parcialmente verdade), dar respostas evasivas e ignorar a possibilidade de que emails ou vídeos vazassem. 

Depois que os rumores começaram, a posição do governo foi a negação total, afirmando que as confraternizações de fim de ano em Downing Street 10 eram pura invenção, e que a cúpula que lidera o país seguiu rigorosamente as normas de isolamento. 

Até que apareceu o vídeo gravado em dezembro de 2020, estrelado por Allegra Stratton e revelado em um furo de reportagem da emissora ITV. 

Na época ela era a principal assessora de comunicação de Boris Johnson. Tinha sido contratada para inaugurar uma nova forma de comunicação com a imprensa, com briefings diários apresentados por ela própria seguindo o modelo americano, em um auditório que consumiu quase 2 milhões de libras (e mal foi usado, porque a ideia acabou abandonada). 

A filmagem exibida pela ITV era uma simulação preparatória para os briefings que começariam em janeiro, com Stratton no pódio respondendo a perguntas difíceis feitas por assessores.

Algumas eram sobre as festas, uma evidência inquestionável de que não só elas existiram como faziam parte da lista de assuntos sensíveis que mereciam treinamento para achar a melhor resposta. 

Stratton e sua equipe cometam um erro infantil, ignorando um conselho elementar dado a executivos em media trainings: nem de brincadeira deixar-se gravar falando o que não falaria em público.

Ela responde aos questionamentos com ironia. Uma das respostas é de que “foi para casa”, evadindo-se da pergunta. Em outro trecho, diz que não foi festa, foram “queijos e vinhos”, tudo em meio a risadas. 

A falha primária, capaz de comprometer o governo se o vídeo vazasse − como vazou −, é incompatível com uma profissional de seu calibre. E mais: tendo ao lado um time de profissionais de comunicação.

Video ficou esperando a hora certa 

Difícil entender como ninguém apagou o trecho, que ficou esperando para sair das trevas e assombrar o governo no momento certo.

O momento foi justamente após rumores sobre as festas começarem a aparecer. Sem provas, quem poderia confirmar? Mas as provas existiam, verbalizadas pela principal figura da comunicação do governo britânico naquele momento.

Depois do vazamento, um furo da ITV, Stratton pediu demissão aos prantos, desculpando-se por ter dado a impressão de fazer troça. Não era impressão, como se pode atestar no vídeo.

Mas continuou faltando assessoramento. O primeiro-ministro passou a semana esquivando-se de responder sobre as confraternizações, e se teria participado delas. Até que o tabloide Sunday Mirror envolveu-o diretamente na história. 

No domingo (12/12), publicou uma foto de Johnson comandando alegremente um quiz, ao lado de dois auxiliares sem máscara.

Não há provas de que os demais competidores estivessem reunidos em grupos em outras salas da sede do governo, quebrando o isolamento, como as “fontes” informaram à imprensa.

Mas isso abalou a imagem pessoal do primeiro-ministro, desmontando a versão de que desconhecia qualquer confraternização ou agrupamento fora das regras. 

Novamente coube ao Have I Got News for You a ironia fina sobre a notícia.

No Twitter, “revelou” que o quiz liderado por Johnson era na verdade uma reunião do grupo de emergências (Cobra) para saber o autor da canção “Nothing Compares To You”. 

Happy hour em pleno isolamento

A imagem publicada pelo jornal The Guardian (online no domingo e na edição impressa na segunda-feira) afastou de vez qualquer possibilidade de negar com um mínimo de expectativa de credibilidade que as regras de isolamento não foram cumpridas na sede do governo e aumentou a crise de imagem. 

A imagem mostra um encontro relaxado, que porta-vozes justificaram ter sido uma reunião após o trabalho. Aquelas que se costuma chamar de happy hour, com queijos, vinhos e mangas arregaçadas. 

O problema é que no dia em que supostamente ele ocorreu, 20 de maio de 2020, o país estava trancafiado em casa.

O então Secretário Nacional de Saúde, Matt Hancock, havia pedido à população em uma entrevista coletiva que resistisse ao calorzinho previsto para o fim de semana e continuasse encontrando apenas uma pessoa em local aberto, e a 2 metros de distância. 

Um dos pontos questionados é a presença da mulher de Johnson, Carrie, o que não seria previsto em uma reunião de trabalho. Por acaso ela é uma profissional de comunicação, já tendo chefiado a assessoria do Partido Conservador. 

No entanto, parece que também em casa o aconselhamento ao primeiro-ministro não está funcionando tão bem. 

E pode ter faltado uma boa assessoria ao vice-primeiro-ministro, Dominic Raab, que em entrevista à Sky News na manha de segunda-feira tentou justificar a tese de encontro de trabalho pelo fato de todos estarem usando terno – apenas para ser lembrado pela apresentadora Kay Burley que a maioria não estava, como mostra a imagem. 

Excesso de confiança não ajuda em crises de imagem 

Diante de imagens, fica difícil acreditar que as outras festinhas não aconteceram ou que o líder da nação não tinha conhecimento delas. 

Mais difícil ainda é entender como nenhum assessor impediu seu assessorado de comandar o quiz, já que qualquer um poderia capturar a imagem.

Alguns analistas atribuem esse comportamento de Boris Johnson a um excesso de confiança, a uma sensação de que nada vai acontecer com ele.

Pode ser. E quem trabalha ou já trabalhou em assessoria de imprensa sabe que nem sempre os conselhos dados aos assessorados são seguidos.

Mas, nesse caso, justiça seja feita a Boris Johnson, os próprios assessores entraram no jogo do “nada vai acontecer”, falha imperdoável para quem é treinado para antecipar desastres de imagem. 

O abalo na reputação sai do passado e vem para o presente 

Até então a crise de imagem era grave, mas estava restrita a um passado distante, com a imprensa e fontes revolvendo erros cometidos há um ano, o que também virou alvo de piadas do Have I Got News for You. 

Em um tweet, o grupo “informa” que as imagens exibidas pela ITV eram do ano passado e não desta semana, e sugerindo que os que aparecem na imagem estão rindo “há um ano”. 

O discurso de Boris Johnson diante do avanço da variante ômicron tem se concentrado em convocar a população a se vacinar, sem estabelecer medidas mais severas de isolamento social.

Essa conduta pode ser atribuída em parte a uma resistência de setores do Partido Conservador, mas também ao fato de que isso aumentaria as comparações com a quebra das regras no passado.

No entanto, a crise foi trazida para o presente quando surgiram nesta sexta-feira (17/12) provas de que o chefe de gabinete designado para investigar e punir culpados era ele próprio personagem de pelo menos uma das confraternizações. 

As notícias que pipocaram em vários veículos britânicos foram de seis funcionários diretos de Simon Case reuniram-se no dia 17 de dezembro de 2020 para um quiz em seu gabinete, que também envolveu outros seis profissionais participando remotamente.

A celebração foi chamada de Festa de Natal, e o convite assim apareceu no calendário dos convidados. 

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O chefe de gabinete foi afastado das investigações sobre as festas, mas não foi demitido.

E em mais uma demonstração de gestão questionável de crises de imagem, um porta-voz do governo saiu em defesa de Simon Case dizendo que ele “não participou da festa, apenas atravessou a sala onde ela acontecia rumo ao seu escritório”. 

Pode ser verdade. Mas não justifica ele ter sido nomeado para comandar investigações sobre outras festas (a dele não fazia parte da lista de alvos).

Sem examinar a questão moral, foi uma imprudência sem tamanho adotar esse caminho, já que a chance de as notícias de uma festa com convites registrados em calendário se tornarem públicas não deveria ser descartada nem pelo mais inexperiente dos assessores de imprensa ou políticos. 

Mais do que uma crise de imagem ou política 

É verdade que ao fim de 2020 todos estavam extenuados depois de quase um ano de pandemia, ansiosos para confraternizar. Mas não eram apenas os que comandavam o governo.

Era toda a população. Não foi seguro brincar com esse sentimento. E o preço para a nação é alto.

Pode custar o cargo do primeiro-ministro, pressionado a renunciar, lançando o país em um período de instabilidade. 

E tem efeitos sobre a saúde pública. Uma pesquisa feita pelo instituto YouGov na semana passada revelou que 70% dos entrevistados não confiam em Boris Johnson para liderar as medidas de contenção da variante ômicron.

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(Foto: Unsplash)

Pior: entre os que não se mostram inclinados a cumprir regras de isolamento, um em cada cinco atribui a decisão ao mau exemplo dado pelo primeiro-ministro e por seus auxiliares.

Isso é mais do que crise política. É uma severa crise de imagem que mina a confiança, com efeitos sobre a saúde pública, que assessores mais responsáveis e cuidadosos poderiam ter ajudado a evitar − para começar, proibindo festas e não participando delas ou brincando com a câmera ligada. E nem aceitando a missão de investigá-las tendo telhado de vidro. 

Se há uma lição nessa história é a de que contra fatos (e convites por email, e fotos, e gravações…) não há argumentos.

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