Londres – Em meio a especulações de que o acesso antecipado de um repórter do jornal The Guardian ao livro Spare tenha sido parte de um plano diabólico de Harry & Meghan para privilegiar um veículo favorável a eles, livrarias na Espanha quebraram as rígidas medidas de segurança impostas pelas Penguin Books para o lançamento e durante algumas horas desta quinta-feira (5) venderam o volume de 400 páginas, que no Reino Unido e em vários países foi dissecado por toda a mídia. 

Um dos episódios de maior repercussão está sendo a revelação de que ele matou 25 membros do Talibã quando serviu no Afeganistão, que já provocou reação do governo do Afeganistão e de líderes das forças armadas britânicas. 

Diferentemente da série da Netflix, focada mais em queixas sem muitos detalhes, o livro traz revelações que colocam agora a família real britânica contra a parede quanto ao seu método usual de lidar com notícias negativas: não comentar e esperar a onda passar, fazendo aparições públicas em eventos de caridade para amenizar a má impressão. 

Muitas passagens do livro tratam do que Harry e Meghan afirmam ter sido uma prática que os levou a se afastar da monarquia: o vazamento de notícias negativas sobre ela a jornalistas que cobrem a família real e tendem a ser mais simpáticos ao Palácio de Buckingham, aceitando de bom grado informações que atraem atenção do público. 

Segundo os boatos, Harry teria feito o mesmo ao supostamente liberar para o Guardian uma versão do livro. No entanto, essa versão foi esvaziada porque o jornalista que a obteve, Martin Pengelly, baseado nos EUA, é conhecido por sua habilidade em conseguir acesso a livros famosos antes do lançamento. 

Pelo que se sabe agora, depois da venda acidental do livro na Espanha, a questão é se o Palácio de Buckingham vai se manter calada, pois há diálogos e fatos concretos que talvez mereçam correção, se Harry não os contou da forma como o “outro lado” acha que ocorreram.  

Mas não é só um problema com a imprensa. Em Spare, título que remete à palavra usada para o segundo na linha de sucessão, Harry abre o coração e conta como ser o segundo sempre o incomodou, citando até o quarto em que ele e o irmão ficavam no castelo de Balmoral – a melhor parte do cômodo, mais móveis e a melhor vista eram reservadas ao irmão William, primeiro na fila para herdar o trono depois do rei Charles. É outra parte das revelações que o Palácio, ou Charles, podem se sentir obrigados a contestar, se houver elementos para isso. 

Verdades, mentiras, meias-verdades ou interpretações de verdades, o fato é que Spare lança a família real britânica no que muitos estão classificando como a sua maior crise da história, ou pelo menos da história recente. 

Outras já aconteceram, como a morte da princesa Diana, em 1997 e a abdicação do rei para casar com a americana Wallis Simpson, em 1936. 

Mas a amplitude do que Harry conta em seu livro (e nas entrevistas para promovê-lo) é incomparável. E acontece na era de mídias sociais, onde tudo o que se fala é amplificado como nunca antes na história. 

Veja o que já foi revelado pelos que conseguiram acesso ao livro. 

O chá que virou briga com dedo na cara e a agressão física 

Em junho de 2018, semanas depois do casamento de Harry e Meghan, William e Kate convidaram o casal para um chá, que terminou mal. Segundo o livro escrito por Harry, Kate reclamou de um comentário feito por Meghan em uma conversa antes da cerimônia, sobre uma suposta perda de memória devido ao parto recente.

A duquesa de Sussex teria afirmado que a falha de memória seria normal, resultado de desequilíbrio de hormônios. Mas Kate achou inadmissível, porque Meghan “não tinha intimidade com ela para falar de seus hormônios”.

E porque usou a expressão “baby brain” (cérebro de bebê), que descreve o estado de falta de memória temporária que acomete mães recentes. 

A discussão terminou com o príncipe William erguendo o dedo sobre o rosto de Meghan e afirmando que  “comentar sobre os hormônios tinha sido rude, e que aqui não fazemos as coisas assim”.  

Se a frase foi mesmo como Harry recorda, corrobora a versão do casal de que Meghan teria sido discriminada dentro da família por ser diferente, seja pela raça ou por ser americana. 

Por outro lado, se a expressão “baby brain” foi usada de forma pejorativa por Meghan, Kate pode ter uma certa razão. Como disse a rainha Elizabeth em uma nota oficial quando o casal fez acusações de racismo na entrevista para a apresentadora Oprah Winfrey em 2021, “recollections may vary” (memórias podem variar). 

A partir daí o clima só piorou. No primeiro vazado do livro, publicado pelo jornal The Guardian na quarta-feira (4), Harry contou que o irmão o agrediu fisicamente, levantando-o pelo colarinho e jogando-o no chão durante uma discussão enquanto ele ainda morava no Palácio de Kensington. 

Charles brincou sobre boatos de filho ilegítimo 

Há anos circula um boato de que Harry seria fruto de um relacionamento da princesa Diana com o instrutor de equitação James Hewitt – também ruivo como o príncipe – , que durou cinco anos. 

Em Spare, Harry narrou uma piada do pai sobre o rumor, em que Charles teria dito: “Quem sabe se eu sou mesmo seu pai, ou s ele está em Broadmoor, meu querido menino?”. 

 Mas o príncipe não entra em mais detalhes sobre o boato, nem negando-o nem confirmando-o Apenas comenta que vários perfis dele escrevem que teria havido uma conversa direta com o pai sobre isso. O livro diz que “se meu pai pensa alguma coisa sobre o assunto, guardou para si”. 

Por Diana, irmãos pediram ao pai para não casar com Camilla 

Em muitas passagens do livro de Harry o tema é a princesa Diana. Ele revelou que em 2005 os dois irmãos expressaram a Charles o desejo de que ele não se cassasse oficialmente com Camilla, a atual rainha consorte, que tinha sido sua amante durante o casamento com a princesa que morreu em um acidente de automóvel em Paris e com quem ele passou a viver anos depois. 

Ele conta que William, ainda menino, suspeitava do relacionamento e era atormentado com a ideia. O pedido para que a união formal não acontecesse teve como argumento, segundo Harry, o risco de criar controvérsia na mídia e provocar comparações entre Camilla e Diana.

Elas existem, e continuam largamente favoráveis à então princesa de Gales. 

A sombra da mãe: repetição do percurso do carro e conversa com paranormal 

A cena dos dois meninos cabisbaixos andando atrás do caixão da mãe no enterro de Diana em 1997 é inesquecível – uma perda acompanhada por milhões de pessoas no mundo. 

William fala com frequência da mãe e já tomou posição formal contra a BBC por um programa sobre ela.

No livro Spare, Harry conta que os dois chegaram a repetir o trajeto do carro em que ela perdeu a vida dentro de um túnel depois de um acidente a 65 milhas por hora.

Primeiro Harry fez o percurso sozinho. Depois convidou o irmão a repetir, trafegando na mesma velocidade que o carro se acidentou. Ele narra que os dois duvidaram da versão de que o motorista estava bêbado e por isso houve o acidente, porque o túnel era reto e sem obstáculos. 

Na verdade, o carro estava sendo perseguido por fotógrafos, e na versão oficial da polícia francesa, a combinação de um motorista bêbado e uma perseguição levaram ao desastre. 

Dando asas à teoria conspiratória alegando que Diana foi assassinada, Harry diz que ele e William foram dissuadidos de pedir que uma investigação sobre a morte de Diana fosse reaberta. 

Ele conta no livro que depois da mudança com Meghan para a Califórnia, visitou uma mulher que dizia ter poderes sobrenaturais e que transmitiu a ele uma suposta mensagem de Diana, dizendo que “ele estava vivendo a vida que ela não conseguiu viver, e que ela sempre quis para o filho”

Cocaína, virgindade e fantasia nazista

O caçula da família real britânica sempre foi o menino travesso, enquanto William era o mais comportado. No livro Spare, o príncipe Harry fala abertamente de suas estripulias conhecidas, e vai além. 

Ele admitiu ter usado cocaína pela primeira vez aos 17 anos quando estudava na sofisticada e exclusiva escola Eton, dizendo que “queria se sentir diferente”. E revela que o fez novamente outras vezes, além de ter tomado chá de cogumelos para tentar “enxergar a verdade” e ter fumado maconha nos jardins do Palácio de Kensington, onde morava, em 2015. 

Conta que perdeu a virgindade aos 17 anos com uma mulher mais velha perto de um pub, mas não gostou da experiência. E temeu que alguém pudesse ter visto. 

A imprensa britânica especula sobre quem poderia ter sido a mulher mais velha. A atriz Liz Hurley, um dos alvos de boatos, negou que tenha sido ela. Harry fala também de seus relacionamentos anteriores até o encontro com Meghan, em 2016. 

A história da fantasia de nazista, que rendeu a Harry manchetes no mundo inteiro em 2005, também é abordada no livro, só que a culpa teria sido de William e não dele.

O relato do príncipe no livro Spare é de que em uma visita a uma loja de fantasias para uma festa que tinha o nada politicamente correto tema “nativos e colonialistas”, ele estava em dúvida sobre uma roupa de piloto e uma de um general nazista que combateu na África.  

Ele teria então ligado para William e Kate, que o aconselharam a alugar a segunda. E que foram juntos para a festa – sugerindo que William não o condenou pela escolha e ainda apoiou. 

O jornal The Times recordou que no livro Batalha de Irmãos, o historiador Robert Lacey atribui este episódio ao início das discórdias entre Harry e William. 

Morte de 25 Talibãs 

Outro episódio delicado abordado por Harry em seu livro Spare é o serviço militar no Afeganistão. Ele revela ter matado 25 membros do grupo Talibã, dizendo não ter satisfação com isso, mas também não se sentir embaraçado, comentando que “você não pode matar pessoas que não vê como pessoas”.  

Harry conta que o treinamento das Forças Armadas era para não ver os inimigos como pessoas, e comparou-as a peças de xadrez. que deveriam ser eliminadas do tabuleiro. 

A passagem despertou preocupações sobre a segurança do príncipe Harry, que pode agora se tornar alvo de represálias por parte de simpatizantes do Talibã.  Nesta sexta-feira, o jornal The Daily Telegraph publicou uma entrevista com o porta-voz do governo afegão, Khalid Zadran.

Ele disse que Harry deveria ser levado a uma corte de justiça internacional “depois de ter confessado o crime de matar 25 pessoas no país”.

Kadran considerou “cruéis e bárbaras” as afirmações que reduziram pessoas a peças de xadrez, justificando a retomada do poder pelo Talibã no país como uma forma de reação à violência da ocupação ocidental. 

O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, não quis comentar. 

Harry e a morte da rainha 

Pelos trechos publicados pela mídia até agora, não há referências negativas à rainha Elizabeth. O livro era para ter sido lançado antes do Natal, mas foi adiado devido à morte da monarca, em setembro. E houve rumores de que passagens teriam sido alteradas para preservá-la. 

Harry conta em seu livro o que disse à avó em seu leito de morte: esperar que ela ficasse feliz e encontrasse com o príncipe Philip, que havia morrido no ano anterior aos 99 anos. 

Mas as confusões aconteceram, como a imprensa relatou na época. O príncipe disse que soube da morte da avó pela BBC – e que o pai teria proibido Meghan de ir ao castelo de Balmoral, onde a monarca faleceu. 

Ele escreveu: “Quando o avião começou a descer, eu vi meu celular acender. Foi uma mensagem da Meg: ‘me ligue assim que ler isso’.
“Eu verifiquei a página da BBC. Minha avó tinha morrido. Meu pai era o rei. Eu coloquei uma gravata preta, desci do avião sob garoa pesada.”

O príncipe escreveu: “Então meu pai ligou novamente. Ele me disse que eu era bem-vindo em Balmoral, mas… sem ela. Ele começou a explicar suas razões, mas elas não faziam nenhum sentido, e também foi desrespeitoso”. 

No entanto, Harry relata que depois o pai informou que o objetivo era não tornar o lugar cheio de gente, e que nem Kate estaria lá. Os irmãos visitaram juntos tributos à rainha, dando a impressão de que uma reconciliação poderia acontecer, mas os rumos foram bem diferentes. 

Coroação do rei Charles 

O livro Spare chega oficialmente às livrarias no dia 10 de janeiro, e será traduzido para 15 idiomas. Pode também ser comprado online. Livrarias como a Amazon já aceitam pedidos para o ebook. O audiobook é gratuito para quem tem assinatura do serviço de livros em áudio da plataforma. 

As dúvidas agora são sobre a reação da família real ao livro de Harry – se vai responder, se vai manter o padrão de não comentar – e sobre a presença de Harry e Meghan na coroação do rei Charles, em maio. As notícias são de que eles foram (ou serão) convidados, mas isso foi antes do livro. 

Charles não tem popularidade alta, e pode bem tentar passar uma borracha por cima de tudo e conduzir uma reaproximação apesar de todas as mágoas, em nome da união da família e da recuperação da imagem de uma monarquia que perde cada vez mais sua aura de modelo perfeito para o país e para o mundo.