Londres − A decisão de um juiz de uma corte superior de Londres, nessa quinta-feira (10/6), revogando uma sentença de 2019 que mantivera a demissão de funcionária demitida de uma ONG por tweets sobre transgêneros, pode influenciar a conduta de empresas e organizações culturais e esportivas, que nos últimos tempos têm sido desafiadas a agir diante de constrangimentos provocados por postagens de funcionários e membros. E que muitas vezes são recriminadas por quem acha que tais demissões ou punições violam a liberdade de expressão, alimentando a “cultura do cancelamento”. 

Maya Forstater, especialista em tributação de 47 anos, fora dispensada em 2018 do Centro para o Desenvolvimento Global, uma ONG que trabalha contra a pobreza e a desigualdade, ao dizer no Twitter que as pessoas não podem alterar seu sexo biológico. Ela comentava sobre uma proposta do governo britânico que tornaria mais fácil para os trangêneros mudarem de sexo legalmente. Colegas de trabalho ficaram revoltados por considerarem transfobia, levando o empregador a não renovar o contrato dela.  

Ela entrou com um processo judicial para reverter a demissão. Mas em 2019 o juiz trabalhista James Tayler rejeitou o pedido, dizendo que as opiniões eram “absolutistas em sua visão do sexo”. 

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A funcionária apelou ao tribunal superior, e agora ganhou. Na sentença dessa quinta-feira, o juiz Akhlaq Choudhury (o primeiro com origem em Bangladesh e muçulmano a integrar a Suprema Corte britânica) disse que a decisão anterior havia sido errada. E afirmou que as opiniões de funcionários “podem ser profundamente ofensivas e até angustiantes, mas devem ser toleradas em uma sociedade pluralista”

O juiz sustentou que a crença de Forstater − de que o sexo biológico é imutável − é protegida pela Lei de Igualdade de 2010. E que “uma crença só deixará de satisfazer a esse requisito se for semelhante ao nazismo ou ao totalitarismo”. Para ele, “as críticas de gênero da requerente, que eram amplamente compartilhadas e que não buscavam destruir os direitos das pessoas trans, não se enquadravam nessa categoria”. 

Forstater disse que estava “incrivelmente orgulhosa” e acha que a sentença protegerá os direitos das mulheres no local de trabalho. Ela gravou um vídeo para o YouTube explicando sua posição. 

A decisão foi saudada publicamente pela escritora J.K. Rowling, autora de Harry Potter. Em 2020, ela mesma foi alvo de ataques ao se manifestar sobre transgêneros. Em vez de pedir desculpas, como muitos acabam fazendo, enfrentou a polêmica sustentando que tinha direito a expressar sua opinião, disparando uma onda de debates sobre a cultura do cancelamento. 

Quando Forstater perdeu o primeiro processo, bem antes de sua própria controvêrsia, a escritora tinha tornado o caso público ao ir às redes sociais convocar apoio. Ela afirmou à época que “as pessoas podem se vestir como quiserem, chamarem a si próprias como quiserem, dormir com quem quiserem desde que por consenso, viver sua vida em paz e segurança, mas sem forçar uma pessoa a perder o emprego por dizer que ‘sexo existe'”.

Ontem voltou a defender a profissional, retuitando a notícia da vitória na corte.

Quem não gostou foi o empregador. Amanda Glassman, CEO do Centro de Desenvolvimento Global,  disse: “A decisão é decepcionante e surpreendente porque acreditamos que o juiz Tayler acertou quando entendeu que esse tipo de discurso ofensivo causa danos às pessoas trans e, portanto, não poderia ser protegido pela Lei da Igualdade”.

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Outros casos 

A decisão sobre o pedido de Maya Forsterer acontece em uma semana em que dois casos semelhantes vêm ocupando as manchetes e as redes sociais.

O primeiro envolve Joana Toch, advogada sócia de um escritório jurídico, e a jornalista Julie Birchill, colaboradora do jornal Daily Telegraph. Elas debateram no Twitter sobre o nome da filha do duque e da duquesa de Sussex. Mas os comentários foram considerados racistas e ofensivos. Toch foi suspensa e Birchil foi “desligada” do jornal, embora não tivesse vínculo empregatício. 

O outro caso atingiu em cheio estrelas do críquete. Há dez anos o atleta Ollie Robinson tuitou mensagens consideradas preconceituosas (contra muçulmanos e asiáticos) e sexistas, que reapareceram das trevas em seu primeiro dia jogando pela seleção inglesa no mais importante campo de críquete do país, o legendário Lord’s Cricket.

Robinson se desculpou, dizendo lamentar o que fez e ter vergonha dos comentários, que por sua natureza dificilmente seriam classificados como liberdade de expressão como os de Maya Forsterer. Mas acabou suspenso pelo BCE, o Conselho de Críquete da Inglaterra e País de Gales e foi recriminado publicamente por colegas. 

Dias depois, emergiram tweets antigos de outros jogadores. Um deles, Jimmy Anderson, de 38 anos, usou a rede social em 2010 para comparar o novo corte de cabelo de outro atleta ao de “uma lésbica de 15 anos”. Ele até tinha removido a postagem. Mas não adiantou, mostrando que nas redes sociais o passado condena mesmo quando se tenta apagá-lo.

O que entrou em questão no caso dos atletas do críquete foi que os tweets são antigos e não necessariamente refletem opiniões e atitudes atuais. Os de Robinson tinha haviam sido postados há quase dez anos, quando ele tinha 18 ou 19 anos. 

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Por essa razão ele acabou sendo defendido publicamente por ninguém menos do que o secretário nacional de Mídia e Esportes, Oliver Dowden, e pelo primeiro-ministro Boris Johnson. Dowden pediu que o Conselho reavaliasse a punição “além dos limites” porque o caso ocorreu quando Robinson “ainda era um adolescente”. Johnson manifestou apoio ao secretário, mas o BCE até agora ignorou.

A reação do governo no caso dos atletas é coerente com um pensamento comum entre figuras proeminentes do conservadorismo britânico, como o jornalista Piers Morgan: as críticas a “excessos” do politicamente correto e à cultura do cancelamento. Ele é autor é de um livro chamado Wake Up, um trocadilho com a palavra “woke”, que que significa o comportamento politicamente correto.

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A decisão da corte de Londres dessa quinta-feira coloca em questão o direito de dispensa ou punição a quem expressa sua opinião nas redes sociais. Ou se o momento em que elas ocorreram não justificaria reações tão severas.

E vai tornar ainda mais difícil a empresas e entidades tomarem decisões sobre incidentes como esses, imprensadas entre a pressão da sociedade e o risco de perderem processos judiciais movidos sob o argumento da terem violado a liberdade de expressão. 

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