Uma batida policial na casa de jornalistas investigativos do site russo Proekt.Media nesta terça-feira (29/6) foi a resposta da administração Putin ao anúncio de que o veículo publicaria uma reportagem acusando de enriquecimento ilegal o poderoso ministro do Interior, Vladimir Kolokoltsev, e seu filho, Alexander.
Eles são acusados de acumular propriedades no valor de cerca de 1,2 bilhão de rublos (R$ 83 milhões).
O Proekt (Projeto, em português) faz parte de uma nova onda de sites “de guerrilha”, que operam sem redações tradicionais e são financiados por doações públicas de organizações estrangeiras que apoiam o jornalismo investigativo.
Leia também: CEO de agência global de relações públicas renuncia após escândalo de bebida e assédio
Jornalistas do site foram detidos e tiveram casas revistadas
Desde o ano passado, o editor-chefe do site, Roman Badanin, já sabia que estava na mira do governo russo. Ele disse em entrevista ao The Sunday Times:
“Estou ciente de que as autoridades russas estão tentando chegar até nós. Se estou nervoso? Sim, estou!”
Policiais e oficiais do Comitê de Investigação vasculharam a casa de Badanin, a casa dos pais do editor-assistente Mikhail Rubin, e a da repórter Maria Zholobova.
Os computadores, telefones celulares e pen drives dos três jornalistas foram confiscados. Todos foram detidos para interrogatório e depois liberados.
O Proekt informou pelo Telegram que as invasões ocorreram depois que o site prometeu divulgar uma investigação sobre o ministro Kolokoltsev. A matéria foi publicada logo após o início das ações policiais.
A intimidação dos jornalistas do Proekt é só mais um capítulo da política de perseguição que vem sendo conduzida pelo governo russo contra jornalistas investigativos. A pressão vem se intensificando à medida em que se aproximam as eleições parlamentares, marcadas para setembro.
Kremlin nega estar retaliando jornalistas
A polícia confirmou que as batidas estavam relacionadas a denúncias de difamação, mas não deu outros detalhes. “A Rússia será livre!”, gritou Badanin ao ser levado para interrogatório pela polícia.
Seu editor-assistente, Rubin, declarou ao Insider, outro site investigativo independente:
“Ontem, anunciamos que o artigo sobre Kolokoltsev seria publicado. Esta manhã fomos atacados. Eles nem mesmo dissimulam mais os motivos”.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, rejeitou na terça-feira a ideia de que as batidas dirigidas a jornalistas investigativos possam ser vistas como uma retaliação ao seu trabalho, dizendo que “existem bases legais para tais ações”.
Peskov admitiu, no entanto, que não sabia por que a polícia revistara os domicílios dos jornalistas do Proekt.
Leia também: Jill Biden estrela tradicional capa da Vogue americana com primeiras-damas negada a Melania Trump
Anistia Internacional condena “repressão contínua” na Rússia
A Anistia Internacional condenou as batidas contra os jornalistas do Proekt.Media, que classificou como parte da repressão contínua lançada no início deste ano contra a liberdade de expressão e a mídia independente na Rússia.
Natalia Zviagina, diretora do escritório da entidade em Moscou, exigiu o encerramento de todos os procedimentos criminais por difamação contra jornalistas e comentou:
“As autoridades russas respondem a denúncias de corrupção com velocidade impressionante — só que perseguindo aqueles que as denunciam.”
Processo de difamação contra Badanin
O editor Roman Badanin, de 44 anos, foi formalmente arrolado como réu num processo de difamação envolvendo Ilya Traber, empresário de São Petersburgo com supostos vínculos com grupos de crime organizado.
Um documentário apontou a suposta conivência entre altos funcionários do governo e políticos — incluindo o presidente Putin — com esses grupos criminosos organizados.
O material foi ar ar em 2017, transmitido no canal de TV independente Rain, que na época era dirigido por Roman Badanin. O porta-voz do Kremlin, Peskov, insiste que o presidente Putin não tinha negócios ou relações pessoais com Traber.
Proekt é conhecido por reportagens críticas ao governo russo
O Proekt já fez várias reportagens revelando fatos sobre o governo russo, como supostos casos de corrupção envolvendo Ramzan Kadyrov, o líder da Chechênia instalado no Kremlin, e de Yevgeny Prigozhin, um magnata conhecido como “cozinheiro de Putin”.
Em novembro, o site identificou a mãe de uma filha ilegítima de Putin, uma ex-faxineira chamada Svetlana Krivonogikh, que teria dado à luz a Yelizaveta em 2003.
O site denunciou que Svetlana, que morava num dos quartos de um apartamento compartilhado, depois do caso com Putin passou a viver num resort de luxo perto de São Petersburgo.
The Insider apontou suposta amante de Putin recebendo milhões do governo
Outra reportagem, feita pelo site The Insider, relatou que Alina Kabaeva, campeã olímpica de ginástica e supostamente amante de Putin, recebia um salário anual de 785 milhões de rublos (R$ 53 milhões) após ser nomeada para um cargo estatal para o qual não tinha experiência relevante.
Leia também: Usuários de redes “jovens”, como Snapchat e TikTok, preferem se informar com influencers
O site iStories revelou que Kirill Shamalov, ex-genro de Putin, teve permissão para comprar por apenas US$ 100 (R$ 500) uma quantidade de ações da Sibur, a maior empresa petroquímica da Rússia, com valor de mercado de US$ 380 milhões (R$ 1,9 bilhão).
Como funcionam os sites jornalísticos de guerrilha
As reportagens dos sites investigativos quebraram tabus de longa data sobre a vida de Putin, 68, e sua família. Durante anos, o ex-oficial da KGB conseguiu fechar ou neutralizar qualquer meio de comunicação russo que o desagradasse.
Mas, com os sites independentes, os jornalistas investigativos russos estão reagindo. Cerca de meia dúzia de sites estão transformando o cenário da mídia de seu país.
Os sites operam sem grandes redações, ou mesmo escritórios permanentes, e são financiados por doações públicas e concessões de organizações estrangeiras que apoiam o jornalismo investigativo.
O caso do The Insider
“O Insider foi criado para operar em um ambiente russo muito tóxico”, explica Roman Dobrokhotov, editor-chefe do site:
“A equipe se encontra uma vez por semana em um espaço de co-working e depois que partimos, não deixamos rastros. Não temos um escritório onde os agentes secretos da FSB possam confiscar computadores. Para sobreviver na Rússia, os meios de comunicação precisam ser pequenos e muito móveis.”
O site costuma colaborar com o Bellingcat, página de jornalismo investigativo com sede no Reino Unido, que identificou os agentes russos culpados pelos envenenamentos de Salisbury em 2018.
O Insider também ajudou a expor os agentes por trás da tentativa de assassinar em agosto Alexei Navalny, crítico do Kremlin.
Editores de revista estudantil foram presos no início do ano
No início deste ano, as autoridades russas também tinham invadido o apartamento de um importante jornalista investigativo, Roman Anin, e prenderam quatro editores de uma revista estudantil de oposição.
Putin aprovou recentemente uma lei que considera crime, punível com até seis anos de prisão, o trabalho para “organizações indesejáveis” estrangeiras.
Open Russia, um movimento de oposição fundado por Mikhail Khodorkovsky, magnata do petróleo exilado, e o National Endowment for Democracy, que é financiado pelo Congresso dos Estados Unidos, foram listados como organizações “indesejáveis” e russos que trabalhem com elas podem ser acusados de crime.
Dois veículos populares independentes, Meduza e VTimes, foram designados “agentes estrangeiros” — um rótulo aplicado a grupos que recebem financiamento estrangeiro. Depois da inclusão na lista, o VTimes fechou, enquanto o Meduza lançou uma campanha de crowdfunding para tentar sobreviver.
A Rússia também usou a lei para aplicar pesadas multas à Radio Free Europe / Radio Liberty. A emissora pediu ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para interceder.
Durante sua recente coletiva de imprensa anual, Vladimir Putin tentou rir de uma pergunta a respeito da enxurrada de novas matérias investigativas sobre seu governo:
“Eles são impossíveis de ler. Eu tentei, mas não cheguei ao fim.”
Leia também
Brasil está entre os sete países onde o povo mais confia na imprensa