Londres – O indiciamento do magnata dos cassinos Yorgen Fenech, acusado de ser o mandante do assassinato da jornalista investigativa Daphne Garuana Galizia há quatro anos, não encerrou os riscos para profissionais de imprensa em Malta. 

Esta semana, o jornalista e ativista Manuel Delia, que mantém um blog e escreve regularmente sobre o crime, anunciou que deixou o país devido a uma série de ameaças que vem sofrendo, que incluem ações judiciais e uma campanha de fake news e desinformação em redes sociais.

Ele recebeu apoio do Centro Europeu para a Liberdade de Imprensa e Mídia (ECMPF), que financia sua defesa em um processo judicial movido por um banqueiro na Bulgária e o ajuda a passar “algum tempo” fora de Malta em lugar seguro, distante da família que permaneceu no país.

Crime contra Galizia chocou Europa 

Manuel Delia deu uma longa entrevista ao jornal italiano Articolo 21, mas não revelou onde está. Ele disse:

“Sou ameaçado por criminosos dentro e fora da prisão. Mais seriamente, estou ameaçado pela atmosfera de impunidade em que esses criminosos operam”.

O crime contra Daphne Garuana Galizia, que expôs a corrupção na elite política e financeira da ilha mediterrânea, vai completar quatro anos em outubro. Ela foi morta quando uma bomba explodiu em seu carro, aos 53 anos.

Seu trabalho sempre se concentrou em temas como corrupção, nepotismo, clientelismo e lavagem de dinheiro praticados pela elite política do país. Ao longo de sua carreira, já havia sofrido uma série de ameaças e intimidações.

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No momento da sua morte, Galizia respondia a mais de 40 processos judiciais, e investigava negócios de Yorgen Fenech em torno de uma usina de energia. O caso expôs membros do governo e da elite política e provocou protestos internacionais.

Desde então as ameaças ao jornalismo livre na Europa aumentaram, com outros crimes semelhantes na República Checa e até na segura Holanda, onde em julho deste ano o jornalista investigativo Peter De Vries foi morto com cinco tiros no centro de Amsterdam. 

Na semana passada, a Associação de Jornalistas Independentes da Europa publicou um relatório que aponta os países onde as ameaças são maiores, como forma de pressionar a União Europeia a impor punições a estados-membros que não assegurarem a liberdade de imprensa. 

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Blogueiro foi alvo de campanha de desinformação que atingiu políticos e jornais

A história pessoal e profissional de Manuel Delia, cujo blogo é mantido por doações de leitores, foi determinada pelo assassinato da jornalista investigativa.

Na entrevista ao jornal italiano, ele revelou que resolveu se tornar jornalista “poucos minutos depois das 15h do dia 16 de outubro de 2017, quando soube que Daphne Caruana Galizia foi morta.”

“Uma voz importante que tentava preservar nossa democracia foi silenciada. Eu soube então que não poderia recuperar a perda. 

Mesmo depois de quatro anos de trabalho, não estou nem perto de suas incríveis habilidades como jornalista, escritora, crítica e analista. Eu nunca poderia preencher o vazio que ele deixou. O meu melhor é fazer tudo o que posso e continuo a tentar ”.

Agora, ele escolheu deixar o país após ser alvo, junto com políticos e parte da imprensa, de uma extensa campanha de fake news e desinformação que falsificou emails e sites na tentativa de destruir reputações de pessoas ligadas à investigação da morte da jornalista.

Seu blog foi foi falsificado e ele recebeu ligações e mensagens de texto ameaçadoras. Jornalistas malteses também receberam e-mails falsos atribuídos a ele, nos quais o blogueiro confessava ser “doente mental”.

Jason Azzopardi, advogado da família de Galizia e parlamentar do Partido Nacionalista, teve e-mails falsos em seu nome enviados ao diário The Malta Independent, assim como Delia.

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Os ataques aconteceram após Delia publicar acusações contra o magnata dos cassinos Yorgen Fenech, que teria contratado três pistoleiros para assassinar Galizia para impedi-la de expor um suposto negócio corrupto de uma usina de gás.

Yorgen Fenech enfrenta acusações na Justiça que podem lhe render prisão perpétua.

“Os ataques são claramente planejados para desacreditar minhas reportagens sobre Fenech, que me citou na Justiça, pedindo uma investigação policial sobre minhas reportagens”, disse Delia. 

Intimidação a jornalistas 

Na entrevista ao Articolo 21, Manuel Delia disse que o sentimento diante das ameaças vai além do medo:

“Mais do que medo, vou falar da minha decepção. Acho que a intimidação de jornalistas tem como objetivo reduzir a capacidade do público de descobrir tudo o que precisa para tomar decisões democráticas informadas.”

O blogueiro disse ter recebido a solidariedade de colegas, que denunciaram as ameaças e forçaram o governo a tomar posição contra a campanha difamatória. 

Após “muitos dias de silêncio teimoso”, segundo Delia, o primeiro-ministro maltês, Robert Abela, descreveu os ataques cibernéticos como “inaceitáveis ​​em uma democracia”. 

Desta vez, diferentemente do que aconteceu com Daphne Garuana Dalizia, segundo o jornalista, a polícia demonstrou interesse em seu caso, e ele espera “que a investigação chegue a algum lugar”.

“Máfia?”

O jornalista comparou a situação atual com a de quatro anos atrás, quando falar de “máfia” parecia algo distante da realidade: 

“Quando o termo ‘Estado da Máfia’ foi usado pela primeira vez para descrever Malta horas depois da morte de Daphne, quase todos reagiram pensando que era um exagero. 

A máfia era vista como algo que acontece na Sicília ou em Nova York, ou mais provavelmente no cinema.

Aprendemos com a experiência italiana que a melhor forma de fazer prosperar a máfia é convencer a todos de que ela não existe. Em vez da máfia, vemos “investidores”, “empresários”, “filantropos”, “policiais”, “criadores de empregos” e “políticos”.

Isso está mudando lentamente. Pela primeira vez, com o relatório de investigação independente Daphne Caruana Galizia, uma instituição estatal reconheceu que Malta precisa levar a sério o combate à máfia. Agora temos que persuadir o resto da população de que temos que fazer isso. Ainda estamos muito longe ”.

Empresário já havia sido preso tentando deixar Malta a bordo de iate

Yorgen Fenech, que nega envolvimento na campanha de desinformação e de ter sido o mandante da morte da jornalista, é dono de um complexo de cassinos e lojas em Malta e em outros países europeus. Ele tinha sido preso em novembro de 2019 tentando deixar o país em seu iate.

Um homem já foi condenado a 15 anos de prisão depois de se declarar culpado pelo assassinato da jornalista. Dois outros suspeitos foram acusados de plantar a bomba e aguardam julgamento.

Um terceiro suspeito, o suposto “intermediário”, concordou em revelar detalhes da trama para matar a jornalista e obteve perdão.

Cultura de impunidade

Os laços estreitos de Yorgen Fenech com o Partido Trabalhista, que governa Malta, forçaram o primeiro-ministro Joseph Muscat a renunciar após reportagens de Galizia.

Um inquérito independente em julho concluiu que o governo de Malta deve “assumir a responsabilidade” pelo assassinato da jornalista, mesmo que não tenha desempenhado um papel direto.

A investigação acusou as autoridades maltesas de terem criado uma “cultura de impunidade” que levou ao assassinato da repórter. A morte de Galizia, assim como a do repórter investigativo holandês Peter de Vries, motivaram a Comissão Europeia a anunciar que prepara uma lei específica para garantir a segurança de jornalistas e a liberdade de imprensa no continente.

https://mediatalks.uol.com.br/2021/09/16/europa-tera-lei-para-defender-liberdade-de-imprensa-em-reacao-a-ataques-e-mortes-de-jornalistas/

O anúncio foi feito no dia 16 de setembro pela a vice-presidente da Comissão Europeia, Vera Jourová, em um discurso no Parlamento Europeu.

Ela citou o caso do assassinato de Daphne Galizia como exemplo de que mulheres e representantes de minorias ameaçadas devem receber atenção especial contra o assédio e a violência contra a imprensa.

O Media Freedom Act vai ser criado pela Comissão Europeia, braço político do Parlamento Europeu e responsável por definir as prioridades para a União Europeia (UE).

Segundo Jourová, acomissão trabalha em dispositivos que protejam a imprensa dos abusos judiciais, usando processos contra jornalistas e empresas como meio de frear investigações jornalísticas.

“Esperamos que os países-membros investiguem e processem vigorosamente todos os atos criminosos contra jornalistas, fazendo pleno uso da legislação nacional e europeia existente. Os países-membros são incentivados a envolver as autoridades europeias, como a Europol e a Eurojust.”

Efeitos assustadores contra liberdade de imprensa e de expressão

A tática de usar a justiça para intimidar jornalistas e veículos tem sido cada vez mais adotada mesmo em países sem violência física contra a imprensa, e Manuel Delia é uma das vítimas. 

O Centro Europeu para a Liberdade de Imprensa e Mídia (ECPMF) considera “assustadores” os efeitos dessa prática sobre a liberdade de imprensa e de expressão, e empreeende uma campanha contra ela.

A organização está dando apoio jurídico ao blogueiro e também ao jornal Times de Malta desde março passado, em processos de difamação movidos por Christo Georgiev, co-proprietário búlgaro do banco maltês Satabank, na justiça da Bulgária. 

O banqueiro exige que reportagens em 2018 e 2019 informando que ele estava sendo investigado sejam retiradas dos sites, e pede indenização de 10 mil euros pelo Times of Malta e 2,5 mil euros por Delia.

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Ao receber ajuda da organização, Manuel Delia disse: 

“Quando os bancos fecham, clientes inocentes sofrem. […] Alguns deles teriam sofrido menos se o jornalismo independente fosse livre para publicar o que já se sabia sobre os bancos, sem a ameaça de difamação.

Não são os jornalistas os que mais sofrem com a censura efetiva dos processos de difamação transfronteiriços. 

São as pessoas comuns a quem é negado o direito de serem informadas sobre como a sua economia ou seu país é gerido.”

O Times of Malta publicou um artigo sobre o caso em 2019. No mesmo ano, o Satabank foi multado em € 3 milhões pela Autoridade de Serviços Financeiros de Malta por violação de  regulamentos de lavagem de dinheiro. 

Comentando sobre o processo, o editor-chefe do Times of Malta, Herman Grech, disse:

“ É lamentável que, mais uma vez, um banqueiro tenha invocado uma jurisdição estrangeira para agir contra uma agência de notícias maltesa, onde a história foi publicada e onde o seu banco estava sediado.

Isso é intimidação para tentar prejudicar financeiramente uma organização de notícias, cujo trabalho é cobrar responsabilidades de autoridades, líderes e empresas”. 

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