Londres – Depois de se tornar a primeira nação a obrigar as plataformas digitais a pagarem pelo uso de conteúdo jornalístico, a Austrália pode ser também a pioneira em colocar fim ao anonimato nas redes sociais.
Neste domingo (28/11), o governo anunciou um projeto de lei destinado a obrigar as empresas de mídia digital a identificarem trolls anônimos e usuários que fazem alegações difamatórias, incluindo aquelas postadas em seções de comentários de contas de mídia social de veículos de imprensa, empresas e organizações.
A ideia é controvertida, com adversários (incluindo as próprias plataformas digitais) argumentando que o fim do anonimato afeta a liberdade de expressão de pessoas em risco ou perseguidas por crenças políticas, por exemplo.
“Não devemos suportar ataques online”
A regulamentação foi criada em resposta a um caso julgado pela Suprema Corte australiana em setembro, em que um homem processou jornais por comentários negativos sobre ele e ganhou a causa.
Ao apresentar os planos, o primeiro-ministro Scott Morrison foi duro. Em um comunicado, ele afirmou que a nova lei garantirá que as empresas de mídia social sejam consideradas editoras e assumam o ônus de comentários difamatórios postados em suas plataformas.
E que caberá a elas evitar essa responsabilidade se fornecerem informações que garantam que a vítima possa identificar e iniciar um processo de difamação contra o autor do troll.
“A mídia social pode muitas vezes ser um palácio de covardes, onde o anônimo pode intimidar, assediar e arruinar vidas sem consequências”, disse Morrison, acrescentando: “Não aceitaríamos esses ataques sem rosto na escola, em casa, no escritório ou na rua. E não devemos suportá-lo online”.
Usuários de redes sociais terão que fornecer nome e contatos
Detalhes da nova lei de anonimato nas redes sociais não foram ainda apresentados. Mas a exemplo da legislação que passou no Parlamento australiano em fevereiro deste ano a respeito do pagamento a empresas jornalísticas, vai colocar o peso nos ombros das redes sociais.
As empresas de mídia social seriam obrigadas a exigir que os usuários – incluindo os existentes – forneçam nome, endereço de e-mail e número de telefone.
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Muitas pessoas já fazem isso, mas a mudança é que com a nova lei, isso deixará de ser opcional na Austrália.
Isso não significa que os usuários terão que usar seus próprios nomes nas contas. A lei deve permitir contas com pseudônimo.
A diferença é que as plataformas saberão detalhes do dono do perfil, e podem ser obrigadas por autoridades a revelar a identidade do usuário em casos de violação de leis.
Regulamentação facilitará reclamação contra posts difamatórios
A regulamentação contra o anonimato nas redes sociais australiana também deve criar um mecanismo facilitado de reclamação contra postagens consideradas difamatórias pelas vítimas.
Os reclamantes poderiam pedir para remover a postagem ou revelar a identidade e detalhes do autor, caso ele se recuse a remover. E caberá à plataforma acionar quem postou a suposta difamação.
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Se o usuário não quiser retirar a postagem e não quiser que seus dados sejam repassados, a pessoa que faz a reclamação pode obter uma ordem judicial obrigando a empresa de mídia social a ceder seu nome e dados de contato, e iniciar um ação judicial.
Sem este recurso, é praticamente impossível processar alguém que lance boatos sobre uma pessoa ou empresa pelas redes sociais, já que as plataformas normalmente se recusam a fornecer os contatos sob o argumento de que não dispõem dos dados do usuário.
Jornais e organizações deixariam de ser responsáveis por comentários
A lei vai ainda jogar a responsabilidade por postagens em sites de mídia social da pessoa ou grupo que gerencia uma página para a própria empresa de mídia social e para a pessoa que fez o comentário.
Atualmente, contas de mídia social de veículos de imprensa ou de organizações são legalmente responsáveis pelos comentários postados por usuários, e muitos fazem isso de forma anônima, agredindo o autor da reportagem (no caso do jornalismo) ou pessoas nelas mencionadas.
A legislação australiana vai transferir a responsabilidade para as plataformas ou para o real autor, visto que ele será identificável.
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O caso que inspirou a lei do anonimato nas redes sociais
A zona cinzenta da responsabilidade por comentários de terceiros em páginas de pessoas, empresas, organizações e veículos de mídia foi objeto de um processo que chegou até a Suprema Corte australiana.
A procuradora-geral australiana, Michaelia Cash, disse no comunicado que anunciou o projeto que ele foi criado em resposta ao caso Voller, que deixou claro que os australianos que mantêm páginas de mídia social podem ser ‘editores’ de comentários difamatórios feitos por outras pessoas nas redes sociais – mesmo que o proprietário da página não saiba sobre os comentários.
“Desde a decisão da Suprema Corte no caso Voller, está claro que os australianos comuns correm o risco de serem responsabilizados legalmente por material difamatório postado por trolls online anônimos”, disse Cash.
Dylan Voller, um jovem acusado de violência e que passou por centros de detenção australianos várias vezes, abriu processos de difamação por jornais que noticiaram episódios em que esteve envolvido, incluindo o The Sydney Morning Herald e The Australian, do magnata de mídia Rupert Murdoch.
O alvo dos processos não foi o noticiário. Voller reclamou judicialmente dos comentários postados contra ele por leitores nas contas de mídia social dos veículo que compartilharam as reportagens. A defesa dos jornais tentou jogar a responsabilidade nos autores dos posts, mas a justiça australiana não concordou.
Em setembro, a Suprema Corte negou provimento às apelações, e sentenciou que “ao postar conteúdo relacionado a notícias sobre o Sr. Voller, o entrevistado, em suas respectivas páginas do Facebook, os recorrentes foram responsáveis pela publicação de ‘comentários’ supostamente difamatórios que foram postados por terceiros usuários do Facebook em resposta ao conteúdo.”
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Trolls no exterior fora de alcance
Ainda que seja um baque para as redes sociais, o alcance pode ser limitado, pois a tendência é de que a lei de anonimato nas redes sociais da Austrália será aplicada apenas a usuários no país.
Isso deixaria de fora autores de trolls no exterior. E também de usuários australianos que se conectem às redes por meio de VPN.
Mas o efeito pode ser outro: o de inspirar países ou regiões que preparam legislações para as plataformas de mídia digital (Reino Unido, EUA e União Europeia entre eles) a adotar mecanismos semelhantes.
Redes sociais podem sair da Austrália?
Na época da implantação da lei de pagamento por conteúdo jornalístico, Google e Facebook ameaçaram deixar o mercado australiano. O Google retrocedeu antes, mas o Facebook encarou a briga com o governo até o fim, e chegou a suspender a circulação de notícias por alguns dias, causando uma revolta global. A suspensão incluiu links de noticiário de serviço público sobre a Covid-19 por parte de agências oficiais.
O primeiro-ministro Scott Morrison disse que conversou com as empresas sobre o projeto de fim do anonimato nas redes sociais, mas caracterizou as conversas como “dizendo a elas o que estamos fazendo”.
E fez uma provocação com a hipótese de as plataformas saírem do país por causa da regulamentação:
“Se fizessem isso, eu veria como admissão de que elas não têm interesse em tornar o mundo online seguro.
“Elas fizeram este mundo online, e as regras que existem no mundo real deveriam existir no mundo que eles criaram.”
Criptografia de ponta a ponta
O movimento da Austrália é mais radical do que o que vem sendo tentado no Reino Unido: evitar a adoção da criptografia de ponta a ponta no Messenger do Facebook.
Na semana passada, a Meta (holding do Facebook) resolveu adiar para 2023 o lançamento, diante de pressões de ONGs e de autoridades britânicas. O argumento é de que o anonimato proporcionado pelo recurso dificulta a identificação de criminosos e de autores de assédio online a crianças e pessoas vulneráveis.
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