Londres – Um ano antes da Copa do Catar, um caso nebuloso salta das manchetes esportivas para as policiais. O ex-diretor de comunicação do Comitê Organizador, o jordaniano Abdullah Ibhais, que se indispôs com o regime do Catar depois de defender uma greve dos trabalhadores que construíram os estádios, teve sua condenação por corrupção confirmada na quarta-feira (15/12).
Ibhais alega que sua condenação visa a proteger a reputação do regime do Catar, que o estaria perseguindo desde a época da greve, em agosto de 2019. O processo chamou a atenção de entidades como a Human Rights Watch e a FairSquare, cujo diretor, Nicholas McGeehan, acusou a FIFA de se omitir no caso:
“Foram os organizadores da Copa do Catar que instigaram esse processo, mas foi o silêncio da Fifa que possibilitou a sentença de hoje”.
Pena de três anos de prisão
De nada adiantaram as cartas enviadas em outubro e novembro à FIFA pela Human Rights Watch e pela FairSquare pedindo para que a entidade intercedesse junto às autoridades do Catar para garantir um julgamento justo.
A FIFA não se envolveu. A sentença, que se refere a um recurso impetrado por Ibhais, confirmou a condenação inicial de abril, apenas diminuindo a pena de cinco para três anos de prisão.
Ibhais encontra-se detido desde novembro e fez greve de fome enquanto aguardava a reconsideração. Ele não estava no tribunal para a audiência, que um jornalista presente disse à BBC que durou menos de um minuto.
Revista norueguesa publica evidências favoráveis
Ibhais sempre alegou que foram suas críticas internas à forma como o Comitê Organizador da Copa do Catar lidou com uma greve de trabalhadores migrantes por causa dos salários não pagos em agosto de 2019 que o levaram a sofrer essa retaliação do antigo empregador.
Em outubro, a revista esportiva norueguesa Josimar, especializada em futebol, publicou trechos de conversas do WhatsApp e de gravações de correio de voz, com evidências que apoiam a versão de Ibhais.
Nas conversas e gravações, Ibhais aconselha seus colegas e superiores a não encobrir a greve, mas sim aceitar o fato e remediar imediatamente a situação dos trabalhadores. Num dos trechos, ele diz a seu superior imediato:
“Precisamos consertar o problema e depois fazer a parte de relações públicas.”
Depois da publicação das evidências, a revista recebeu uma carta de um escritório de advocacia alegando em nome do Comitê Organizador da Copa do Catar que o artigo era “difamatório e violava várias leis” e exigindo a retirada das mensagens do WhatsApp e as gravações do correio de voz da matéria.
Leia também Vídeo de assédio a repórter na Itália expõe abusos a mulheres no esporte
Acusações do Comitê Organizador da Copa do Catar embasaram denúncia
Nas semanas após a greve, o Comitê Organizador instigou as autoridades do Catar a investigar Ibhais,entregando o relatório de uma investigação interna com acusações capazes de submetê-lo a um processo de ameaça à segurança do Estado.
A FairSquare e a Human Rights Watch não tiveram acesso a esse documento interno, mas analisaram o relatório da Diretoria de Investigações Criminais do Catar, elaborado a partir das acusações contidas nele.
O documento policial analisa a ligação apontada pelo Comitê entre Ibhais e duas pessoas: seu irmão na Turquia, e uma figura proeminente da mídia “que acredita-se ser um cidadão saudita”. Isso poderia significar uma conexão com países embargados, visto que o Catar não mantém relações diplomáticas ou econômicas com a Arábia Saudita desde 2017.
O relatório conclui que essa ligação com o cidadão supostamente saudita – o qual, segundo o Comitê, teria concorrido a um contrato de gestão de suas mídias sociais – “demonstra que alguém quer controlar as redes sociais para preparar uma ação ou algo que prejudique o Estado ou sua segurança”.
Leia também Crises envolvendo assessores de imagem mostra importância da liderança pelo exemplo
Confissão de crime menor
Durante a investigação das autoridades do Catar, Ibhais foi interrogado por promotores públicos e agentes de Segurança do Estado. Segundo ele, os promotores lhe disseram: “Ou você assina uma confissão aqui ou nós te enviamos para a segurança do estado, onde eles sabem como arrancar uma confissão de você”.
Além disso, os agentes lhe disseram que haveria mais acusações contra ele, mas que se confessasse crimes menores como o uso indevido de fundos públicos, poderia não ser enquadrado no âmbito da segurança nacional.
Ibhais disse à Human Rights Watch que assinou a confissão de suborno porque estava “horrorizado com a possibilidade de um processo por ameaça à segurança do estado”.
Tribunal recusou pedido de invalidação da confissão
Esta confissão, que Ibhais pediu que fosse invalidada durante seu primeiro julgamento em abril, continua a ser a única evidência da acusação apresentada contra ele.
O tribunal recusou-se a invalidá-la, apesar dos argumentos de Ibhais de que ela fora extraída sob ameaça e coerção, durante interrogatórios em que lhe negaram a defesa de um advogado.
Ao final do julgamento, Ibhais foi condenado a cinco anos de prisão sob as acusações de suborno, violação da integridade das propostas e dos lucros e dano intencional aos fundos públicos.
A análise da sentença demonstra que a confissão foi a pedra angular do caso contra Ibhais, e que a acusação não apresentou nenhuma evidência objetiva de que ele cometeu algum crime.
Leia também Secretário nacional de saúde britânico renuncia após escândalo de foto beijando assessora
Acusadores admitiram não ter provas
Em seu depoimento, o responsável pela investigação interna do Comitê Organizador da Copa do Catar, Khalid Al-Kubaisi, reconheceu que seu relatório não concluía que Ibhais tivesse cometido crimes.
Por sua vez, o policial encarregado de investigar as acusações apresentadas às forças de segurança pelo Comitê Organizador, disse em seu depoimento não ter investigado a autenticidade das gravações.
Quando questionado sobre os detalhes do que sua investigação havia descoberto em relação a supostos vazamentos de informações atribuídos a Ibhais, o policial respondeu: “Não sei”.
Por fim, indagado se suas investigações haviam comprovado que Ibhais teria vazado informações relativas ao caso em questão, o policial respondeu simplesmente: “Não.”
Apelo à FIFA
A FIFA tem uma relação de trabalho próxima com o Comitê Organizador da Copa do Catar, além de ter sociedade com ele em uma empresa dirigida pelos executivos seniores do Comitê.
A FIFA World Cup Qatar 2022 LLC é uma sociedade constituída no início de 2019 pela FIFA, que detém 51% do capital social, e pelo Comitê Organizador, que detém 49%. Hassan Al Thawadi, o secretário-geral do Comitê, é o presidente da empresa, e o secretário-geral adjunto, Nasser Al-Khater, é o CEO.
Em virtude dessa ligação entre a FIFA e seu ex-empregador, Ibhais apresentou queixa formal à entidade no dia 21 de setembro. Para isso, usou a plataforma disponibilizada para denúncias de violação de direitos durante trabalhos relacionados à FIFA.
A entidade emitiu uma resposta formal para Ibhais pela mesma plataforma, afirmando que “continuaremos a seguir isso de perto, com o objetivo de garantir que qualquer julgamento seja justo e que o devido processo seja respeitado. ”
Não houve mais comunicação com Ibhais, e ele disse que o gerente de direitos humanos da FIFA parou de responder às suas mensagens em 5 de outubro.
Leia também Monitoramento do futebol inglês mostra que há tecnologia para apontar autores de ofensas online
Prisão antes de falar sobre o caso à TV norueguesa
Em 15 de novembro, Ibhais foi levado sob custódia pela polícia, horas antes de ser entrevistado por jornalistas da emissora pública norueguesa NRK.
O canal produziu uma matéria investigativa sobre as condições a que os trabalhadores migrantes foram submetidos durante a construção dos estádios da Copa do Catar.
Para agravar a situação, o jornalista esportivo Halvor Ekeland e o cinegrafista Lokman Ehorbani, ambos da NRK, foram posteriormente detidos pelas forças de segurança no hotel em que se hospedavam e impedidos de sair do país. Só foram liberados 36 horas depois.
Um porta-voz do governo do Catar disse ao The Guardian na ocasião que o motivo da detenção foi “invasão de propriedade privada” e “filmagem sem autorização”.
O diretor da NRK, Thor Erikson, cobrou da FIFA respeito à liberdade de imprensa na cobertura de seu principal evento esportivo.
Greve de fome
Na prisão, Ibhais fez greve de fome enquanto aguardava o julgamento de seu recurso.
Em uma mensagem de áudio divulgada pelo jornal holandês NRC em 2 de dezembro, ele falou sobre sua greve e negou qualquer irregularidade:
“Para mim, esta foi a última medida, depois que me negaram a chance de um julgamento justo. A chance de ser ouvido foi negada. Eu não tive a chance de falar.”
O que dizem os responsáveis pela Copa do Catar
Um porta-voz da FIFA disse à BBC que “qualquer pessoa merece um julgamento justo, e que precisaria analisar a decisão antes de fazer qualquer comentário”.
O Comitê organizador da Copa do Catar afirmou que as alegações de que o caso estaria ligado à defesa de Ibhais dos trabalhadores migrantes eram “ridículas, difamatórias e absolutamente falsas”.
O Estado do Catar se manifestou afirmando que “rejeita nos termos mais veementes possíveis qualquer afirmação de que a decisão foi influenciada por outros fatores que não seu compromisso inabalável com a justiça e o Estado de Direito.”
Reputação da FIFA manchada
À medida que a Copa do Catar se aproxima, Nicholas McGeehan, diretor da FairSquare, diz que o caso tenderá a ser mais lembrado:
“A cada dia que Abdullah Ibhais permanece na prisão, mais pessoas saberão seu nome, saberão o que ele fez pelos trabalhadores migrantes que construíram a Copa do Catar e saberão o preço que pagou por isso.”
O vice-diretor da Human Rights Watch para o Oriente Médio, Michael Page, foi mais além e diz que o caso atinge a reputação da FIFA:
“Se a FIFA se recusar a intervir para que Ibhais receba um julgamento justo, não baseado em uma confissão forçada, sua política de direitos humanos não valerá o papel em que está escrita.”
Leia também
2021 tem recorde de jornalistas presos no mundo e quase uma morte por semana, mostra relatório