Londres – Para quem acha que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, o Reino Unido está aí para provar o contrário: duas crises graves abalam simultaneamente a monarquia e o governo, fato raro de acontecer. 

O motivo não é o mesmo – cada um arrumou um problema diferente. Boris Johnson tenta explicar o escândalo de festas na sede do governo quando o país estava em lockdown, que ganhou o apelido de “Partygate”. 

A realeza recebe os respingos do processo de agressão sexual movido contra o príncipe Andrew, que promete um circo de horrores este ano à medida em que testemunhas sejam convocadas e provas sejam apresentadas à corte americana, onde corre a ação. 

O que pode acontecer ou já aconteceu 

No entanto, há uma coisa comum nas duas crises:  o risco de consequências sérias para a confiança nas instituições e para alguns de seus representantes. 

Essa quebra de confiança em Boris Johnson já se refletiu em baixa intenção de cumprir as medidas de controle da Covid, devido ao mau exemplo, e pode custar o seu cargo.

Ele tenta de todo modo resistir às pressões para que renuncie, iniciando uma operação de medidas populistas que vem sendo criticada com o apelido de “carne vermelha”, simbolizando jogar carne para animais famintos.

Para a monarquia o drama não é apenas de uma pessoa, até porque o príncipe Andrew já foi “sacrificado” perdendo títulos e cargo. O pior é um possível efeito sobre o futuro da própria monarquia, que é considerada o símbolo de unidade do país. 

O sistema político do Reino Unido 

Formado por quatro países – Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte – o Reino Unido é uma monarquia parlamentar.

A rainha Elizabeth II é a chefe de Estado e completa este ano 70 anos na função. As comemorações pelo jubileu se estenderão ao longo do ano, mas certamente com alguns sobressaltos que devem estar tirando o sono de seus estrategistas de imagem.

Boris Johnson é o primeiro-ministro, encarregado de cuidar da administração do país, e vive seu momento mais impopular junto à opinião pública. 

A câmara baixa (Câmara dos Comuns) é composta por parlamentares eleitos diretamente em suas comunidades, que votam em leis e fiscalizam atos do governo. 

Embora a rainha não mande diretamente no país, como aconteceria se fosse uma monarquia absolutista, ela tem poderes institucionais, como o de aprovar o primeiro-ministro apontado pelo partido que vence as eleições. 

A soberana é também uma referência moral, além de funcionar como o mais poderoso instrumento do chamado soft power britânico – a influência exercida internacionalmente pelo país com base em seu exemplo, cultura e valores. 

Quem tem culpa pelas crises no Reino Unido?

Uma grande diferença entre as duas crises que ao mesmo tempo desabaram sobre os britânicos é que a rainha Elizabeth não teve culpa alguma nos fatos que abalam a monarquia, enquanto Johnson tem participação em  boa parcela do desastre do governo.

O  filho da soberana é o principal causador do pesadelo da monarquia. 

Se há alguma culpa a ser imputada à figura da carismática monarca de 95 anos é a de não ter agido a tempo para evitar a sangria quando a crise provocada por Andrew começou a se anunciar, há mais de dois anos. 

A família real é apelidada de “Firma”, por cuidar de sua imagem com extrema competência, manejando a imprensa e as redes sociais para assegurar seus índices de popularidade e uma idolatria que se espalha pelo mundo. 

No caso Andrew, no entanto, deixou de lado um mandamento básico da gestão de crises, que é o de agir antes que o problema tome proporções maiores, evitando assim a impressão de conivência. 

Foi apenas na última quinta-feira (13/1) que a rainha tomou uma medida concreta para tentar dissociar do núcleo da família o seu filho enrolado com a justiça. 

Com uma possível condenação que pode se tornar realidade até o final do ano, Andrew foi preventivamente despojado de seus cargos militares e dos títulos honoríficos, incluindo o de Sua Alteza Real, como os príncipes são chamados. 

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Elizabeth II e príncipe Andrew no Palácio de Buckingham admiram o show aéreo Troop the Colors, em 2019 (divulgação The Royal Family)

A demora pode ter uma explicação: antes de ser rainha, Elizabeth II é mãe. E consta que Andrew seria seu filho favorito. 

Outra explicação seria uma aposta errada da “Firma”, que teria acredita na possibilidade de que o processo contra Andrew não fosse tão longe.

Até a última quinta-feira, o duque de York vinha sendo mantido à parte das atividades oficiais à espera de que a poeira baixasse.

Com a recusa da justiça americana de arquivar o processo movido por Virginia Giuffre contra ele, foi necessária uma ação mais drástica.

Mexeu com a pandemia, mexeu comigo

Já Boris Johnson abusou do direito de viver perigosamente, flertando com o risco de destruir sua reputação com atos diretos ou praticados por assessores graduados, dificilmente sem o seu conhecimento.

Terminou comprometendo seriamente a confiança que a população tinha nele e em seu governo.

Em pouco mais de dois anos de mandato, o político já tinha enfrentado várias adversidades. Entre elas, as críticas à tumultuada saída do país da União Europeia e à gestão confusa da pandemia.

Houve também denúncias de troca de favores com empresários,  envolvendo o pagamento mal explicado de obras particulares em sua residência oficial em troca de acesso a ministros para negociação de projetos, no que ganhou o apelido de “wallpaper for access” (papel de parede por acesso).

Mas nada disso tinha chegado a abalar severamente a imagem pública, nem feito com que aliados e membros do partido começassem a enxergá-lo como uma companhia tóxica e indesejada. 

Até que veio o golpe de misericórdia: os desmandos realizados durante a pandemia. 

O primeiro-ministro atravessa uma tormenta que ganhou o apelido de Partygate, para denominar uma sequência de festas realizadas por seus assessores, algumas com a participação dele próprio, como admitiu ao Parlamento na semana passada. 

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Imagem: Mark Hillary / Twitter

Essas festas aconteceram enquanto o os britânicos comuns amargavam o isolamento dos parentes e a proibição de velar seus mortos. E, devido às proibições baixadas pelo próprio governo de Johnson, sonhavam em reencontrar os amigos para um drinque de fim de tarde. 

O que veio à tona nas últimas duas semanas é que enquanto o país inteiro estava privado de diversão, a cúpula do governo se esbaldava.

E que a melhor balada de Londres durante o lockdown não acontecia em nenhuma boate famosa, mas sim na casa de tijolinhos pintados de preto que fica no número 10 da Downing Street, onde funciona a sede do governo.

Foto: divulgação

Localizada perto do Parlamento e do Big Ben, Downing Street 10 é ao mesmo tempo a residência oficial do primeiro-ministro e a sede da administração pública nacional, abrigando os escritórios dos assessores principais. 

Ali ficam os profissionais de alto nível encarregados de cuidar da comunicação e das relações governamentais de uma das potências do planeta de maior influência global. 

E foi ali que tudo aconteceu. Enquanto o povo se isolava, o círculo mais próximo de Boris Johnson se reunia no jardim e dentro da casa para relaxar com queijos e vinhos, games e discoteca.

No início, as justificativas eram de que seriam encontros profissionais, ao ar livre para evitar contaminação. Mas não é exatamente comum reuniões profissionais serem regadas a vinho. 

A presença do álcool foi tema de debates e de críticas. Um jornal chegou a noticiar a compra uma adega, e a existência de uma mala com rodinhas de plantão para transportar garrafas discretamente entre a residência oficial e o supermercado mais próximo. 

Ela ficava justamente no departamento de imprensa, aquele encarregado de zelar pela boa imagem e de transmitir à população as decisões do governo, algumas impopulares, como a proibição de encontros sociais. 

reprodução

Até a mulher de Johnson, Carrie, que é do ramo e já dirigiu a comunicação do Partido Conservador, deu seus contribuição à via crucis do marido.

No domingo (16/1), jornais publicaram uma foto dela com uma amiga em uma comemoração no período de lockdown, sem máscara ou distanciamento.

Horas depois houve mais um pedido de desculpas, que se tornaram quase tão comuns no governo quanto desejar bom dia. 

No Reino Unido, desrespeito à rainha é pecado mortal

Para piorar as coisas, novas evidências comprovaram a realização de festas com música na véspera do velório do príncipe Philip. Uma afronta não só às regras de isolamento social, mas também ao luto oficial decretado pelo próprio governo e à dor da rainha. 

Poucas imagens de Elizabeth II são tão marcantes como a da solidão durante o velório do marido, sentada de cabeça baixa na ponta do banco da igreja, sem o consolo de seus parentes, que estavam do outro lado da capela, proibidos de se aproximar. 

Rainha Elizabeth II no funeral do príncipe Philip (reprodução transmissão oficial)

Foram apenas 30 convidados, contrariando o desejo do príncipe consorte, que tinha planejado seu funeral contando com 800 pessoas na despedida. 

Pode parecer puritanismo achar pecado mortal um grupo de funcionários se reunirem na sede do governo para uma festa de despedida de um colega. Mas o contexto faz toda a diferença. 

Não eram funcionários de uma empresa, e sim do governo que tinha estabelecido as proibições de festas. Não era um bar, e sim a sede do governo. E era um desrespeito à figura mais importante da nação. 

Johnson pediu desculpas à Rainha, mas isso não diminuiu em nada a revolta da população e dos meios políticos. 

A crise do Reino Unido nas redes sociais 

As redes sociais britânicas estão tomadas por comentários e memes sobre as duas crises de imagem que abalam o Reino Unido. 

No caso de Boris Johnson, os temas mais frequentes são a convicção de que ele mentiu ao falar sobre as festas, e a irritação com a animação que reinava na sede do governo enquanto estavam todos recolhidos. 

Mas há quem o defenda, destacando seu papel na condução da saída do país da União Europeia, uma batalha que poderia ter sido perdida.

Em 2019, diante das dificuldades da então primeira-ministra Theresa May de aprovar no Parlamento o acordo de saída, começou a ganhar corpo a ideia de um novo referendo popular. 

Boris pegou o touro na unha, tomou o lugar de May e conduziu a bandeira do Brexit em tom de batalha épica, sendo aclamado pelos nacionalistas. 

Andrew, sem defensores 

Já o agora “cidadão comum” Andrew virou motivo de chacota. Difícil achar quem o defenda, depois de a justiça americana decidir levar adiante o processo de agressão sexual contra ele, frustando a tentativa de arquivamento da causa.

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O problema para a imagem da realeza britânica  é que a conversa nas redes não se limita a bater no ‘cachorro morto’ em que o duque de York se transformou. 

Os grupos republicanos que defendem o fim da monarquia estão aproveitando a oportunidade para tentar convencer mais gente sobre a ideia de que Elizabeth II não tenha sucessores. 

Um dos principais movimentos é o do Republic, que explica como seria fácil fazer tal mudança. Um vídeo no YouTube detalha até o que seria feito com os palácios hoje ocupados pela realeza.

Crise na realeza não começou com Andrew 

Justiça seja feita, o Príncipe Andrew não foi o único a arranhar a imagem da família real ultimamente, embora o caso dele seja o mais grave. 

O problema é que essa imagem já vinha sendo desgastada com episódios como o rompimento de Harry e Meghan consolidado em uma entrevista à TV americana em 2021 e por denúncias envolvendo o príncipe Charles, herdeiro direto do trono. 

Em 2021, Charles teve que entregar a cabeça de seu braço-direito e gestor de sua fundação beneficente, acusado de trocar doações por comendas reais. 

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A “Firma” costuma rebater os ataques com sua tradicional contra-ofensiva de charme, em lances bem planejados. O mais recente foi a divulgação de fotos da duquesa de Cambridge, Kate Middleton, em pose de rainha na comemoração de seu aniversário de 40 anos. 

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Kate Middleton (foto: Paolo Roversi/divulgação The Duke and Duchess of Cambridge)

Vem aí também o jubileu de platina de Elizabeth II, com uma série de festejos e campanhas envolvendo a população. Uma das ações de marketing é um concurso para escolher a nova sobremesa real. 

Mas tudo isso pode não ser suficiente para reverter uma tendência que as pesquisas têm registrado. A hipótese de destituir a rainha é fora de cogitação. Mas a de não substituí-la não é de todo descartada, até porque a sangria na imagem promete continuar. 

O caso de Andrew para a realeza não acabou com a perda dos títulos e da tentativa de transformá-lo em um cidadão comum, que ele não é. 

O processo na justiça americana vai manter o duque de York em evidência, com depoimentos de testemunhas que acabarão respingando na coroa britânica, já que os fatos aconteceram quando ele, com toda pompa e circunstância, fazia parte dela.

No fim de semana circulou a notícia de que sua filha Beatrice poderia ser convocada, assim como a ex-mulher, Sarah Ferguson, duquesa de York, com quem Andrew divide uma casa até hoje mesmo após o divórcio- 

Mais ainda, naquela época Andrew representava oficialmente o Reino Unido. Era o encarregado de fazer encontros e missões comerciais para atrair investimentos, usando como apelo o poder de encantamento de membro da família real. 

O que dizem as pesquisas 

O futuro do Reino Unido tal como o conhecemos hoje pode não mais existir no futuro, assim como o poderoso império britânico do Século 18 se desfez quando as colônias começaram a decretar independência. 

O instituto de pesquisas YouGov constatou em maio do ano passado, bem antes de toda essa confusão, que as atitudes entre os jovens em relação à monarquia mudaram substancialmente desde 2019.

Os dados do YouGov de várias pesquisas de 2021 sobre a monarquia mostraram que 41% dos jovens de 18 a 24 anos diziam que a Grã-Bretanha deveria ter um chefe de Estado eleito, enquanto apenas 31% gostariam de ver a monarquia continuar.

Trata-se de uma reviravolta em relação às pesquisas de 2019 – o ano da aparição catastrófica do príncipe Andrew em um programa da BBC para tentar se explicar sobre a acusação de assédio.

Os resultados da época mostravam metade dos jovens de 18 a 24 anos (46%) a favor da monarquia. Apenas um quarto (26%) preferia um chefe de estado eleito.

A rainha continua com a popularidade alta, com aprovação de 76%, ligeiramente maior do que há um ano.

Mas ela não é eterna. E quando morrer deixará em seu lugar o filho Charles, que tem apenas 45% da aprovação do público. Na lanterna está Andrew, como seria de se esperar. 

Aprovação de Boris Johnson despenca 

Comparando a situação dos líderes da monarquia e do governo, Boris Johnson está bem pior.

Depois de sua fala no Parlamento no dia 12/1, em que pediu desculpas pelas festas e argumentou que não percebera que o evento ao qual compareceu se tratava de uma comemoração, as pesquisas mostram que seu pronunciamento não agradou os eleitores.

O encontro havia sido convocado pelo seu assessor principal, com um email usando a sigla BYOB (bring your own booze, ou traga a sua bebida), uma expressão típica de festas entre amigos. 

Segundo pesquisa do YouGov divulgada na sexta-feira (14/1), Johnson é reprovado por 72% da opinião pública e tem a seu favor apenas 20% da população, caindo a um nível de popularidade de 52 pontos negativos, o pior em sua gestão. 

Outra pesquisa do mesmo instituto para o jornal The Times constatou que 70% dos eleitores acham que Johnson mentiu ao Parlamento a respeito do conhecimento e da participação em festas. Apenas 6% acreditam que ele está sendo honesto na forma como tem lidado com as denúncias.

Nenhuma das pesquisas captou o efeito da notícia sobre as baladas um dia antes do velório do príncipe Philip, o que provavelmente aprofundará ainda mais a crise. 

Ainda assim, o primeiro-ministro resiste a todas as pressões para que renuncie.

Os jornais falam em uma “Operação Salve Boris”, chamada por outros de “Operation Save the Big Dog”, que envolveria aliados mais fiéis saindo em sua defesa, dança das cadeiras em cargos do governo e um pacote de medidas populistas, incluindo a derrubada da maior parte das restrições relacionadas à Covid. 

Mesmo sem renunciar, Johnson pode ter sua gestão desafiada pelo Partido Conservador. 

Pelas regras do parlamentarismo, o primeiro-ministro pode ser submetido ao chamado “voto de desconfiança”, uma votação interna.

Para que isso aconteça, é preciso que 54 parlamentares mandem cartas solicitando a votação.

Se ele perder, significando que não tem mais a confiança de seus pares para liderar o próprio partido, será obrigado a deixar o cargo. 

Nas últimas semanas o clima estava mais para o deixa-disso, com poucos parlamentares aliados se manifestando publicamente.

Com as novas revelações, isso vem mudando – em parte porque os próprios eleitores estão pressionando seus representantes pelas redes sociais.

Os jornais falam que alguns parlamentares estão apenas aguardando o relatório da investigação sobre as festas para então tomar uma atitude. 

Efeitos da crise para a monarquia e para o governo 

Johnson é conhecido por sua enorme habilidade política, tem carisma e pode conseguir reverter a situação.

Mas sob a perspectiva de imagem, os episódios das últimas semanas e a forma como lidou com eles dificilmente o farão escapar de uma mancha eterna. 

No fim das contas, porém, será uma mancha pessoal. E essa é o maior diferença das duas crises que mobilizam atualmente o Reino Unido.

A crise do governo pode resultar numa troca da pessoa que ocupa um cargo. 

Já a outra pode precipitar a tendência de o país se tornar uma república e fazer com que a monarquia e toda a família mais importante e mais rica do país virem uma página virada da história britânica.

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