Londres -O Brasil mereceu destaque em vรกrios relatรณrios internacionais sobre o estado da liberdade de imprensa no mundo em 2021, figurando entre os paรญses que mais desrespeitaram o jornalismo independente ou colocaram profissionais do setor sob risco. 

Todos atribuรญram diretamente ao presidente da Repรบblica e ao que algumas organizaรงรตes classificaram como “Sistema Bolsonaro” a responsabilidade por perseguiรงรตes e por insuflar seguidores contra jornalistas.

Jair Bolsonaro foi o รบnico governante escolhido como tema de uma campanha em 2021, feita pela organizaรงรฃo Repรณrteres Sem Fronteiras. Ele tambรฉm apareceu junto com outros lรญderes globais na lista de 37 predadores da liberdade de imprensa no mundo. 

Bolsonaro e “a verdade nua” 

A campanha “The Naked Truth” (A Verdade Nua) foi lanรงada em fevereiro do ano passado, quando o paรญs vivia o auge da crise da Covid-19, ocupando o terceiro lugar em nรบmero de mortes por coronavรญrus no mundo. 

A campanha era composta por banners para redes sociais em quatro idiomas (portuguรชs, espanhol, francรชs e inglรชs).

Uma fotomontagem mostrava o presidente nu atrรกs de uma placa exibindo os รบltimos nรบmeros de casos confirmados e mortes por Covid-19. 

 

De acordo com a RSF, sediada na Franรงa, o objetivo era “fazer Bolsonaro enfrentar simbolicamente a realidade em vez de fugir da responsabilidade por sua gestรฃo desastrosa da crise no Brasil”, alรฉm de valorizar o trabalho da imprensa, responsรกvel por levar fatos confiรกveis ร  populaรงรฃo. 

O diretor-geral da Repรณrteres Sem Fronteiras, Christophe Deloire, disse no lanรงamento: 

โ€œEsta campanha de โ€˜choqueโ€™ destina-se a aumentar a conscientizaรงรฃo e combater os constantes ataques do sistema Bolsonaro ร  mรญdia. Esses ataques sรฃo intolerรกveis do ponto de vista moral e perigosos para a populaรงรฃo brasileira, que รฉ privada de informaรงรตes vitais sobre a pandemia.

O trabalho dos jornalistas รฉ crucial para relatar os fatos e informar as pessoas sobre a realidade da crise de saรบde.

O direito ร  informaรงรฃo, que estรก intimamente ligado ao direito ร  saรบde, deve ser defendido mais do que nunca no Brasil.โ€

Jair Bolsonaro e as mulheres jornalistas 

No mรชs seguinte, em 8 de marรงo, o Brasil marcava presenรงa em um relatรณrio da Repรณrteres Sem Fronteiras em comemoraรงรฃo ao Dia Internacional da Mulher. 

O estudo mostrou os riscos corridos pelas jornalistas no exercรญcio da profissรฃo. Jair Bolsonaro foi citado nominalmente por sua perseguiรงรฃo ร  jornalista Patrรญcia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. 

Ela fez denรบncias sobre o uso ilegal de fundos privados pelo presidente Bolsonaro para financiar campanhas de desinformaรงรฃo.

O documento afirmou que a profissional foi “alvo de uma campanha de assรฉdio cibernรฉtico extremamente violenta, chegando a ser acusada por Jair Bolsonaro e seus filhos ocupantes de cargos eletivos de ter โ€œextorquidoโ€  informaรงรตes em troca de favores sexuais”. 

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Em marรงo de 2021, Patrรญcia saiu vitoriosa em uma aรงรฃo que moveu contra Bolsonaro. O governante foi condenado a indenizรก-la em R$ 20 mil por danos morais.

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Liberdade de imprensa sob Bolsonaro preocupou EUA

Menos de um mรชs depois, a mรก notรญcia para o Brasil veio do Departamento de Estado dos EUA.

No dia 30 de marรงo de 2021 foi publicado o relatรณrio anual da instituiรงรฃo sobre a situaรงรฃo dos direitos humanos no mundo, que registrou o crescimento das ameaรงas ร  liberdade de imprensa no Brasil.

Problemas crรดnicos do Brasil na esfera dos direitos humanos, como a situaรงรฃo carcerรกria e o trabalho anรกlogo ร  escravidรฃo, continuaram embaรงando a imagem do paรญs como em anos anteriores. 

Mas no que diz respeito ร  liberdade de imprensa, a ediรงรฃo 2021 do relatรณrio pela primeira vez atribuiu ao prรณprio presidente “atos antidemocrรกticos e ataques ร  imprensa”.

No volume relativo a 2019, publicado em 2020, havia menรงรตes a ameaรงas ร  liberdade de imprensa, mas nรฃo eram associadas diretamente ao presidente ou ao governo federal. 

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O relatรณrio referiu-se diretamente ร  violรชncia e ao assรฉdio a profissionais de imprensa diante do Palรกcio do Planalto logo apรณs o inรญcio da pandemia: 

โ€œVรกrios jornalistas foram submetidos a agressรตes verbais, com indivรญduos sem mรกscara gritando na cara deles apรณs o inรญcio da Covid-19. 

O incidente de maior visibilidade ocorreu fora do Palรกcio presidencial em Brasรญlia, levando uma coalizรฃo de organizaรงรตes da sociedade civil a abrir um processo civil contra o governo por nรฃo proteger os jornalistas no local.

Vรกrios veรญculos importantes pararam de enviar jornalistas para cobrir eventos fora do Palรกcio. E o Palรกcio tomou medidas adicionais para manter os jornalistas separados dos civis reunidos do lado de fora.โ€

O Departamento de Estado citou o acompanhamento da Repรณrteres Sem Fronteiras sobre agressรตes ร  mรญdia, destacando que “o presidente Jair Bolsonaro criticou a imprensa 53 vezes, verbalmente ou por meio das redes sociais, durante o primeiro semestre de 2020”

O relatรณrio anual do governo americano รฉ produzido com base em fontes diversas: embaixadas e consulados dos Estados Unidos no exterior, funcionรกrios de governos estrangeiros, organizaรงรตes nรฃo governamentais, juristas, jornalistas, acadรชmicos e ativistas. 

As missรตes diplomรกticas preparam os levantamentos iniciais, que depois sรฃo revisados, verificados e aprofundados pelo Departamento de Estado. O documento รฉ submetido ao Congresso dos EUA.

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Quatro casas para trรกs no ranking de liberdade de imprensa global 

Em abril, um retrocesso jรก era esperado. O Brasil caiu quatro posiรงรตes e passou ร  111ยช colocaรงรฃo entre 180 paรญses no ranking anual de liberdade de imprensa global da organizaรงรฃo Repรณrteres sem Fronteiras.

Saiu da zona laranja, onde estรฃo as naรงรตes cuja situaรงรฃo รฉ considerada sensรญvel, e entrou para a vermelha, um clube formado por aqueles onde a situaรงรฃo da liberdade de imprensa รฉ classificada como difรญcil. 

Foi o quarto ano consecutivo de queda do Brasil, que em 2018 estava na 102ยช posiรงรฃo. Coube ao paรญs a oitava pior colocaรงรฃo das Amรฉricas e a terceira pior da Amรฉrica do Sul.

O presidente Bolsonaro รฉ citado no texto de apresentaรงรฃo do estudo, ao lado de Nicolรกs Maduro, como exemplo de lรญder que promove desinformaรงรฃo. Somente trรชs governantes foram destacados na abertura (o outro รฉ o presidente do Egito, Abdel Fattah).

E a Agรชncia Pรบblica, mencionada como exemplo do trabalho de veรญculos que vรชm desmascarando a desinformaรงรฃo, foi a รบnica organizaรงรฃo jornalรญstica do mundo citada na abertura do relatรณrio, em um sinal da crise de fake news no Brasil na percepรงรฃo das entidades globais. 

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Bolsonaro entre os ‘predadores da liberdade de imprensa’

Em julho de 2021, Jair Bolsonaro entrou para um clube nada honroso: a lista dos predadores da liberdade de imprensa compilada pela RSF.

A lista reuniu 37 governantes que reprimem fortemente a liberdade de imprensa, como o presidente da Sรญria, Bashar al-Assad, Ali Khamenei, o lรญder supremo da Revoluรงรฃo Islรขmica do Irรฃ, Vladimir Putin, da Rรบssia e Alexander Lukashenko, de Belarus.

Segundo a organizaรงรฃo, โ€œtodos sรฃo chefes de Estado ou de governo que espezinham a liberdade de imprensa criando um aparato de censura, prendendo jornalistas arbitrariamente ou incitando a violรชncia contra eles, quando nรฃo tรชm sangue nas mรฃos porque, direta ou indiretamente, pressionaram para que jornalistas fossem assassinadosโ€.

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Novamente a Covid-19 foi apontada como motivo para ataques ร  imprensa no Brasil. 

A organizaรงรฃo afirmou que a โ€œretรณrica agressiva e rude [de Bolsonaro] sobre a mรญdia atingiu novos patamares apรณs o inรญcio da pandemia.โ€

“Desde que ele assumiu o cargo, o trabalho da imprensa brasileira tornou-se extremamente difรญcil. Sua marca registrada รฉ insultar, denegrir e humilhar jornalistas considerados muito crรญticos.

Para ele, a imprensa โ€œnรฃo serve para nadaโ€ e equivale a โ€œrumores e mentiras permanentesโ€.

O trecho sobre o presidente do Brasil detalha perseguiรงรตes ร  Rede Globo, ataques misรณginos a profissionais de imprensa e o que os autores classificaram como “retรณrica combativa e desbocada”.

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Seis meses de ataques do ‘Sistema Bolsonaro’ ร  imprensa

Tambรฉm em julho, a Repรณrteres Sem Fronteiras fez um balanรงo dos primeiros seis meses do ano, constatando o tamanho da ofensiva contra a imprensa por parte de Jair Bolsonaro e seus filhos

Segundo o levantamento, no primeiro semestre de 2021 o nรบmero de ataques do chefe de Estado brasileiro contra a imprensa aumentou 74% em relaรงรฃo ao mesmo perรญodo do ano anterior.

Individualmente, o presidente atacou a imprensa verbalmente 87 vezes no perรญodo. 

O documento apontou as lives semanais transmitidas via Facebook como principal via escolhida para atacar a mรญdia. Em 24 lives semanais do primeiro semestre de 2021, o presidente atacou frontalmente a mรญdia em 19 delas, de acordo com o registro da RSF. 

A conta incluiu tambรฉm ataques feitos pelos seus filhos, Carlos e Eduardo Bolsonaro.

Vereador do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro foi autor de 83 ataques ร  imprensa no perรญodo, o que significa um aumento de 84,4% em relaรงรฃo ao segundo semestre de 2020.

Jรก o deputado federal Eduardo Bolsonaro diminuiu o ritmo de 2020 e atacou a mรญdia nacional 85 vezes em 2021, registrando uma queda de 41,37% em relaรงรฃo ao fim do ano anterior, quando havia feito 145 ataques.

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Confianรงa na imprensa x Aprovaรงรฃo do presidente Bolsonaro

Em setembro de 2021 foi a vez do Instituto Reuters para Estudos do Jornalismo da Universidade de Oxford destacar o Brasil em um estudo sobre confianรงa na imprensa em quatro paรญses (tambรฉm participaram Estados Unidos, Reino Unido e รndia).

Uma caracterรญstica em comum entre as quatro naรงรตes foi o perfil dos que nรฃo acreditam na imprensa: geralmente sรฃo mais velhos, homens e brancos.

Apenas no Brasil a confianรงa na imprensa foi maior do que nos governos, o que รฉ uma boa notรญcia para a mรญdia, demonstrando que os ataques tiveram efeito limitado. 

Mas esse efeito existe, e foi observado pelos pesquisadores ao compararem a opiniรฃo sobre a imprensa e a aprovaรงรฃo do presidente. 

Quanto maior a confianรงa na imprensa, menor a aprovaรงรฃo do presidente Jair Bolsonaro, e vice-versa.

O percentual de aprovaรงรฃo do presidente entre os que geralmente nรฃo confiam nas notรญcias da imprensa รฉ quase o dobro do verificado entre os que geralmente confiam.

Isso indica que ao recriminar publicamente jornalistas e veรญculos, a sensaรงรฃo de desconfianรงa na instituiรงรฃo do jornalismo como um todo aumenta. 

Na รฉpoca da pesquisa, enquanto 53% dos que nรฃo confiavam na imprensa aprovavam o lรญder da naรงรฃo, esse รญndice foi de apenas 28% entre os que confiavam. 

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O preรงo da gestรฃo da Covid-19 para a marca Brasil 

A animosidade do presidente Bolsonaro com a imprensa foi atribuรญda pela maioria dos estudos ao desconforto com crรญticas sobre a gestรฃo da Covid pela mรญdia. 

Entretanto, nรฃo foram apenas os jornalistas a terem percepรงรฃo negativa sobre isso. 

O Relatรณrio Brand Nations 2021, publicado em outubro pela consultoria britรขnica Brand Finance, revelou que o paรญs perdeu 12% do valor de sua marca nacional, o que equivale a uma queda de US$ 93 bilhรตes.

A principal causa, segundo a consultoria, foi a resposta falha ร  Covid-19. 

A marca do paรญs, que era a 16ยช mais valiosa do mundo em 2020, perdeu cinco posiรงรตes no ranking global e assim deixou de integrar o clube das 20 mais valiosas do mundo, que continua liderado por Estados Unidos e China. 

No caminho inverso ao do Brasil, o valor da marca do Mรฉxico aumentou US$ 23 bilhรตes (3,6%), o que fez o paรญs subir uma posiรงรฃo e passar a integrar o Top 20. 

Com a ultrapassagem mexicana, a marca do Brasil passou a ser apenas a quarta mais valiosa das Amรฉricas, atrรกs de Mรฉxico, Estados Unidos e Canadรก.

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