Londres – Em um espaço de um mês, dois casos separados na Itália mostram que mesmo na Europa jornalistas são vítimas de assédio judicial em tentativas de intimidar e cercear o trabalho da imprensa.

Paolo Mondani, do programa de jornalismo investigativo Report, comandou um especial sobre os 30 anos do assassinato do juiz Giovanni Falcone, marco no combate à máfia. Depois da exibição, o Ministério Público de uma cidade siciliana emitiu uma ordem de busca e apreensão em sua casa e na redação.

Semanas depois foi a vez do jornalista Francesco Pesante, diretor do site L’Immediato, ser convocado pelas autoridades para depor sobre uma reportagem do portal. Nas duas situações, a justiça italiana buscava a mesma coisa: quebrar o sigilo da fonte, um princípio fundamental do jornalismo.

Jornalista italiano teve telefone confiscado 

No último Ranking de Liberdade de Imprensa da RSF, a Itália ficou em 58º em uma avaliação que inclui 180 países, com destaque justamente para riscos a que estão expostos jornalistas que investigam o crimes, em especial o de grupos organizados.

No entanto, no caso de Pesante, a ameaça não veio de criminosos e sim do sistema judiciário, que praticou assédio judicial contra o jornalista após uma reportagem que usou imagens de câmera de segurança de uma prisão.

No dia 22 de junho, o jornalista do L’Immediato foi interrogado pela polícia da cidade de Foggia, no sul do país, após ser notificado pelas autoridades apenas um dia antes.

Os agentes de segurança disseram a Pesante que ele era suspeito em uma “investigação de vazamento” de informações do Estado. A acusação foi baseada em uma matéria publicada no site comandado pelo jornalista de 18 de maio.

A reportagem usou imagens de câmeras de segurança de uma prisão de Foggia para noticiar o assassinato de um homem no local. A vítima cumpria pena, mas tinha permissão para sair para trabalhar. O crime aconteceu quando o homem foi baleado ao retornar para a detenção.

No interrogatório, os policiais questionaram Pesante sobre suas fontes e como o L’Immediato adquiriu essas imagens. Em entrevista ao Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), ele disse que se recusou a responder, alegando privacidade jornalística.

E acrescentou que seu veículo não foi o único a usar as imagens, publicadas também por outros meios de comunicação italianos.

O jornalista foi liberado pelas autoridades horas depois sem acusação, mas teve o celular confiscado a pedido da promotoria local.

O advogado dele, Michele Vaira, afirma que as autoridades pesquisaram mensagens armazenadas no telefone relacionadas às imagens das câmeras de segurança.

O aparelho foi devolvido a Pesante um dia depois. Se acusado e condenado por revelar segredos de Estado, o profissional de imprensa pode pegar até cinco anos de prisão, segundo o código penal italiano.

Segundo o jornalista a imprensa local, as autoridades também investigam a participação de dois policiais não identificados no vazamento das imagens.

O CPJ condenou a ação das autoridades italianas, que representa assédio judicial contra o exercício da profissão de jornalista: 

“A apreensão do telefone de Pesante violou princípios básicos de liberdade de imprensa e ameaçou sua capacidade de proteger suas fontes.

Tais medidas não têm lugar em um país da UE, e as autoridades devem encorajar e apoiar os jornalistas que reportam sobre o crime organizado.”

Outro jornalista foi assediado pela justiça, e não pela máfia

Em outro caso, um crime que traumatizou a Itália há 30 anos voltou a desafiar as autoridades que combatem a máfia do país, a ponto de a justiça ter adotado uma medida extrema de assédio judicial contra a imprensa: a tentativa de quebrar o sigilo das fontes de um importante jornalista da maior rede de TV italiana, a estatal RAI. 

Paolo Mondani é uma celebridade da mídia italiana, repórter do programa de jornalismo investigativo Report.

Em maio, uma reportagem exibida foi alvo de investigação da polícia por reconstituir o assassinato do juiz Giovanni Falcone, vítima de um ataque a bomba perpetrado pela máfia siciliana em 23 de maio de 1992, na cidade de Capaci.

O atentado matou Falcone, sua mulher e os três membros de sua escolta policial. 

O magistrado atuava em processos contra os integrantes da Cosa Nostra, organização criminosa que opera na Sicília. A operação Mãos Limpas, uma caçada a mafiosos, foi iniciada após sua morte. 

O programa de autoria do jornalista é intitulado La Bestia Nera (A besta negra), em alusão a uma casa que teria servido de bunker para a operação da máfia.

São apresentados documentos e personagens “capazes de lançar uma nova luz sobre os fatos”, afirmando que políticos da extrema-direita e mafiosos teriam agido em conjunto para silenciar Falcone e outro juiz assassinado depois dele, Paolo Borsellino.

O assédio judicial ao jornalista do Report da RAI começou um mês antes de a reportagem sobre o crime praticado pela máfia ir ao ar.

Mondani havia sido intimado pela promotoria de Caltanissetta, que solicitou detalhes sobre as entrevistas que ele estava fazendo a respeito do caso, algumas com ex-policiais. 

A autorização de busca e apreensão após a exibição do episódio partiu do Ministério Público de Caltanissetta, cidade na Sicília, segundo informações da agência ANSA e do jornal La Repubblica.

Em 24 de maio, a redação do “Report” e a casa do jornalista Paolo Mondani foram revistadas por equipes da Direção de Investigação Anti-máfia Italiana (DIA).

Em entrevista ao CPJ, o jornalista disse que os agentes estavam autorizados a confiscar documentos digitais e em papel.

O apresentador do Report, Sigfrido Ranucci, publicou no Facebook no momento da ação da polícia na redação do programa, relatou a agência de notícias ANSA.

Segundo o jornalista, os policiais procuravam por “documentos e depoimentos de testemunhas [do atentado da máfia em 1992] em celulares e computadores”.

Mondani disse ao CPJ que enquanto a busca estava em andamento, o mandado foi revogado pela promotoria antes que a polícia confiscasse quaisquer materiais seus ou da RAI3.

Mas segundo o jornalista, isso ocorreu porque as autoridades encontraram um documento confidencial que procuravam na casa de um ex-policial, em ação separada que acontecia simultaneamente.

A polícia não acessou os dispositivos privados de Mondani.

Mas os mandados apresentados revelaram que ele e sua equipe de reportagem foram seguidos e filmados secretamente pelos agentes durante o encontro com uma fonte importante sobre o atentado ao juiz Falcone. A polícia anti-máfia também interceptou os telefonemas do jornalista.

Attila Mong, representante do CPJ na Europa, condenou a ação da justiça italiana contra a redação e o jornalista do Report:

“Invadir e fazer buscas em redações e casas de jornalistas e monitorar as atividades de coleta de notícias não tem lugar em um estado-membro da União Europeia.

As autoridades devem se abster de ações que ponham em risco a confidencialidade de fontes, o que pode ter um efeito assustador no trabalho dos jornalistas”.

Salvatore De Luca, promotor público de Caltanissetta, disse à agência ANSA que o jornalista não estava sob investigação e que as buscas estavam sendo realizadas para verificar a autenticidade das fontes.

Em nota publicada no site do programa, Mondoni criticou a repressão sofrida pela polícia, pois disse que os depoimentos de duas fontes, Alberto Lo Cicero e Maria Romeo, exibidos na reportagem eram “conhecidos há muito tempo” pela DIA e pelo Ministério Público de Caltanissetta.

“É surpreendente que 30 anos após o crime essas declarações só agora estejam sendo investigadas”, afirmou.

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