Londres – O Novaya Gazeta, jornal dirigido por Dmitry Muratov, vencedor do Nobel da Paz em 2021, suspendeu as atividades em março depois do segundo aviso do órgão regulador de mídia, porém não se dobrou à censura do regime Putin, com o lançamento de uma versão a partir da Europa.
Na semana passada, editores que ficaram na Rússia também resolveram dar a volta por cima e lançaram uma revista, mas o sonho durou pouco: ela foi bloqueada em território russo neste domingo (24).
“Duramos sete dias e nove horas. A carta do órgão regulador informando “não éramos residentes”, chegou no sábado à noite. Duas horas depois, o bloqueio começou”, disseram os editores.
Nobel da Paz não participa diretamente de jornal e revista
Com o nome oficial de NH, de Nova História, ela acabou ficando conhecida como NO, as duas primeiras letras do nome do jornal. A publicação continua acessível de fora da Rússia.
O projeto foi anunciado dias antes de Muratov leiloar sua medalha de ouro do Nobel por US$ 103,5 milhões (R$ 537,1 milhões), em Nova York. O dinheiro, que poderia ter sido aplicado no próprio jornal, foi dedicado pelo jornalista a crianças ucranianas refugiadas por meio do Unicef.
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O jornalista Nobel da Paz não está à frente da visão europeia do Novaya Gazeta ou da revista No, produzida e impressa na Rússia, pelo menos oficialmente. Isso reduziria os riscos de perseguição direta. Mas não adiantou.
Mesmo paralisado, o jornal foi multado no início desse mês em 300.000 rublos (cerca de R$ 25 mil) por um vídeo crítico à guerra na publicado em fevereiro. E Muratov foi atacado com uma mistura de tinta vermelha e acetona durante uma viagem de trem no país.
A versão russa do Novaya Gazeta continua no ar fora da Rússia, exibindo um aviso de que não tem seu conteúdo atualizado desde 28 de março, quando chegou a segunda notificação do Roskomnadzor. Com a terceira, o jornal perderia a licença de mídia.
A plataforma é usada para continuar em evidência e para dar acesso a uma área do site onde está o programa de doações, a lojinha online e desde a semana passada a revista, No, anunciada na home page do site.
Mas isso não foi suficiente para evitar o bloqueio pelo governo da Rússia, que não deve ter gostado da proposta editorial. Na apresentação, a equipe diz que os editores do Novaya Gazeta russo “não poderiam ficar calados por muito tempo”:
“Permanecemos na Rússia, onde está nosso público, e abrimos uma nova revista.”
“Se o Novaya Gazeta, com qual todos nós, é claro, estamos envolvidos e ao qual permanecemos fiéis, abordou questões de poder, guerra e paz, corrupção e elite, a No é sobre nós, sobre a sociedade. Por que estamos onde estamos e por que somos do jeito que somos.”
Ironicamente, o texto diz que “tem gente chamando de anexo do Novaya Gazeta temporariamente suspenso”. Mas admite que isso é verdade. O governo achou o mesmo.
Um resumo do conteúdo da primeira edição destaca o que cada jornalista produziu:
“Ulitskaya explora a liberdade individual e o totalitarismo, Kolesnikov explica a ideologia da Rússia de Putin, Minkin leu os protocolos da polícia (investigadores modernos em russos deformados acusaram Tolstoi de crimes! ), Taroshchina investiga por que eles pegaram em armas contra Galkin, o favorito do público, e Britskaya comparou a lealdade de Mikhalkov aos hectares de suas terras e interesses comerciais.
Prokofiev nos perturbou com previsões econômicas: será difícil para nós, e Genis nos garantiu: sobreviveremos. Como sempre.”
Há ainda reportagens sobre o ataque a Muratov no trem; o resgate de mais de 200 gatos por voluntários russos em uma fábrica abandonada e o dilema enfrentado pelos cinemas do país que não recebem mais filmes de Hollywood.
A revista tem uma diagramação moderna e artística. Em algumas reportagens usa pinceladas vermelhas remetendo ao ataque com tinta praticado contra Dmitry Muratov.
Ela pode ser folheada gratuitamente no site porque está fora da Rússia. Mas na apresentação, a equipe pedia que o leitor fosse além:
“Você vai querer comprá-la! Primeiro, porque é linda. Você poderá fazer uma coleção desde a primeira edição!
Em segundo lugar e mais importante, esta é uma ótima maneira de apoiar a equipe editorial, que simplesmente não pode ficar em silêncio por tanto tempo!”
Os editores anunciaram que estavam trabalhando em parcerias de revendas em quiosques, livrarias e supermercados, “embora isso não seja fácil nas novas condições”, destacam. Com o bloqueio, isso se tornou impossível.
Quem não lê russo para aproveitar a versão em pdf pode ter acesso aos artigos pelo site da revista, utilizando ferramentas de tradução online como o Google Translate diretamente na barra de navegação.
Merchandising para apoiar jornalismo
Ao clicar no link para comprar a revista, o visitante chega a uma loja online com produtos variados além da publicação.
A exemplo de organizações não-governamentais que utilizam merchandising para levantar recursos, o Novaya Gazeta criou uma série de itens com a sua grife, que se tornou um símbolo de jornalismo independente.
São três coleções: livros, roupas e recordações. O destaque são as peças assinadas pelo diretor de arte do jornal, Pyotr Sarukhanov.
Há t-shirts, moletons, chaveiros, ímãs, canecas, bolsas e cintos, a maioria com desenhos de Sarukhanov.
O jornal é uma organização sem fins lucrativos, e também tem um programa estruturado de recebimento de doações regulares. Com a guerra, pessoas poderiam deixar de contribuir de forma regular ou mesmo evitar fazer doações pontuais por medo ou falta de recursos.
Não é o que está acontecendo. O site apresenta gráficos mostrando que a média de doadores aumentou em relação a 2021. Em junho, foram quase 15 mil, a maioria contribuintes regulares. O recorde foi batido em março, quando explodiu a guerra, com mais de 27 mil colaboradores.