Londres – O sepultamento de Mikhail Gorbachev, neste sábado (3), sem honras de chefe de Estado e sem a presença do presidente de seu país, Vladimir Putin, é o capítulo final de uma história de diferenças em quase tudo, incluindo na teoria e na prática sobre liberdade de expressão e de imprensa marcada pela palavra “glasnost”.

Gorby, como o mundo ocidental passou a chamar de forma quase carinhosa o corpulento líder da União Soviética entre 1985 e 1991, deixou como um de seus legados a “abertura” que inaugurou uma era de liberdades impensáveis nos tempos repressivos do stalinismo. 

O ex-presidente, que morreu no dia 30 aos 91 anos em um hospital em Moscou, doou parte do prêmio em dinheiro recebido quando foi reconhecido com o Nobel da Paz em 1990 para equipar o jornal que viria a se tornar um exemplo de desafio à censura e a repressão do regime de Vladimir Putin, o Novaya Gazeta – cujo editor, Dmitry Muratov, ganhou o mesmo prêmio em 2021. 

Glasnost de Gorbachev e o momento Putin

Mas o que foi exatamente a glasnost? Quais eram seus objetivos? E o seu real legado no momento em que Vladimir Putin utiliza todas as armas para silenciar vozes dissidentes e assegurar que narrativas como chamar a guerra com a Ucrânia de “operação especial” sejam seguidas? 

A perseguição de Vladimir Putin à mídia independente, tanto local quanto internacional, não começou com a invasão da Ucrânia.

Ela é um processo que foi se intensificando durante os últimos dois anos, com a inclusão de profissionais e veículos de imprensa no cadastro de agentes estrangeiros criando obstáculos ao seu trabalho, e expulsão de correspondentes.

Ao mesmo tempo, redes de mídia estatais passaram a sofrer mais escrutínio no exterior, com a maioria bloqueadas depois da guerra, gerando uma onda de revanches. 

Tudo isso é diametralmente oposto ao que Mikhail Gorbachev praticou. Mas não era tão simples, e nem tudo pode ter sido planejado. 

Jennifer Mathers, professora de política internacional na Universidade britânica Aberystwyth, analisa em um artigo no portal acadêmico The Conversation o que aconteceu com distanciamento histórico – mais de 30 anos depois do fim do governo Gorbachev, do fim da União Soviética e durante o pior momento da liberdade de expressão e de imprensa da história recente da Rússia.

Ela afirma que embora as reformas de Gorbachev fossem profundas e de longo alcance, nunca ficou claro na época se elas seriam bem-sucedidas na mudança dos sistemas políticos e econômicos soviéticos. 

“O progresso era muitas vezes incerto e sujeito a reversão. A oposição de pessoas poderosas com interesses adquiridos em manter o status quo foi responsável por alguns atrasos.

Em outros momentos, o ritmo do progresso foi afetado pelas próprias incertezas de Gorbachev sobre o quão rápido e até onde a reforma deveria ir, diz ela. 

Na opinião de Mathers, este foi o caso do glasnost, que ela considera a mais ousada de todas as mudanças políticas que Gorbachev introduziu. Porém havia um interesse. 

“Embora ele falasse da importância de confiar informações aos cidadãos soviéticos comuns, também ficou claro que ele pretendia que as informações fossem usadas de maneira direcionada – para chamar a atenção para problemas específicos identificados pela liderança política.

Gorbachev precisava de tal publicidade para gerar o apoio popular que o ajudaria a superar a resistência à reforma dos conservadores no partido comunista.”

A acadêmica acha que a glasnost falhou em seu primeiro teste em abril de 1986, quando a usina nuclear de Chernobyl sofreu um acidente catastrófico.

“O politburo demorou a autorizar a mídia soviética a documentar a verdadeira escala do desastre, impedindo medidas como a evacuação e expondo as pessoas na Ucrânia e na Bielorrússia a altos níveis de radiação.”

Glasnost e o jornalismo investigativo russo 

Mas no verão de 1986, lembra Mathers, Gorbachev “renovou seu compromisso com a glasnost nomeando jornalistas que eram a favor da reforma para editar jornais, revistas e revistas literárias”.

Ela analisa que a prática de Gorbachev de nomear editores que pensavam da mesma forma fazia parte do que o estudioso da União Soviética Archie Brown descreve em seu livro O Fator Gorbachev como “glasnost guiada”.

E foi acompanhada por outro processo de interseção que Brown chama de “glasnost de baixo”.

“Embora a glasnost tenha sido imaginada por Gorbachev como uma ferramenta em vez de uma informação livre para todos, ela rapidamente assumiu uma vida própria.

Os próprios jornalistas que haviam sido nomeados pelo estado usaram suas novas posições para ultrapassar os limites do que era possível.”

A professora afirma que o Kremlin admitia que as personalidades e políticos ligados ao governo de Leonid Brezhnev da década de 1970 fossem criticadas por criar as condições para a estagnação econômica.

Mas e outros períodos da história soviética? Stalin poderia ser criticado? Lenin poderia? E as críticas a Gorbachev e à própria perestroika?

“A falta de limites entre o permitido e o proibido permitiu que os jornalistas se arriscassem e marcou o início do jornalismo investigativo na União Soviética.

Mas a própria ausência dessas linhas vermelhas que criaram oportunidades também significou que não havia uma maneira real para os próprios jornalistas saberem exatamente quando entraram na zona de perigo”.

Assumindo riscos pela liberdade de expressão

Jennifer Mathers acha que todos os envolvidos na tentativa de tornar a glasnost no jornalismo soviético uma realidade sabiam que havia perigo. E compartilha uma história pessoal:

“Quando eu era estudante da Brown University no final da década de 1980, tive a sorte de ouvir o jornalista Vitaly Korotich falar sobre sua experiência na edição da revista semanal Ogonek. Korotich foi um daqueles jornalistas de risco nomeados por Gorbachev.

A revista logo ganhou reputação por publicar críticas ao sistema soviético. Korotich falou sobre os riscos que ele e outros jornalistas assumiram diariamente e observou que nunca soube se o Estado o elogiaria como herói ou o prenderia como traidor.”

As lutas públicas sobre os limites da liberdade jornalística abriram o caminho para o exercício da liberdade de expressão pela sociedade de forma mais ampla, afirma a professora.

Ela lembra que foram lançados filmes que tratavam de tópicos controversos, como Retenção, que mostrava alguns dos horrores da repressão do período Stalin.

Organizações da sociedade civil foram criadas, como o Memorial, fundado em 1987 pelo físico nuclear e dissidente Andrei Sakharov para liderar investigações honestas sobre os abusos dos direitos humanos.

Os debates televisionados do recém-eleito Congresso dos Deputados do Povo em 1989 apresentaram questionamentos abertos a Gorbachev e a outros membros da liderança soviética, especialmente sobre a guerra no Afeganistão.

A partir do final da década de 1980, houve protestos populares pedindo independência nas repúblicas soviéticas, incluindo a Lituânia e a Geórgia.

Mas houve um preço. Segundo a professora, alguns protestos foram duramente reprimidos pelas forças de segurança soviéticas, que mataram muitos dos manifestantes.

“Mesmo em um ponto alto do glasnost, Gorbachev viu limites à liberdade de expressão, e foram os povos das repúblicas que pagaram o preço”

Ela analisa que a evolução da glasnost revelou um paradoxo: Gorbachev precisava da participação ativa da sociedade na política para alcançar suas reformas, o que significava conceder certas liberdades políticas.

Mas uma vez dadas, as liberdades políticas podem ser muito difíceis de controlar.

Aí veio Putin, e o fim do que sobrou da glasnost de Gorbachev 

A professora afirma que Vladimir Putin não levou muito tempo para retomar o controle do Estado sobre as liberdades políticas introduzidas por Gorbachev assim que chegou ao poder em 1999 – e controlar a mídia independente que florescia na Rússia estava no topo da agenda.

O acesso dos jornalistas à Chechênia foi severamente restrito durante a segunda guerra da Rússia naquele país (1999-2009), “em nítido contraste com a cobertura da primeira guerra em meados da década de 1990, que tinha sido extensa e sem censura”.

A campanha de Putin para exercer maior controle sobre os oligarcas permitiu que ele lidasse com os impérios da mídia que muitos deles possuíam.

Vladimir Gusinsky perdeu o canal de televisão NTV para a empresa estatal de energia Gazprom em 2001.

Em 2002, a NTV cancelou um de seus programas mais populares, Kukly, que foi inspirado na comédia satírica britânica Spitting Image e que retratava Putin como um bebê de ‘boca suja'”.

A partir daí, é o que o mundo do jornalismo passou a acompanhar com atenção, e o mundo inteiro tomou conhecimento após a guerra: noticiar os fatos tornou-se cada vez mais perigoso. 

Um dos fatos lembrados por Jeniffer Matthers foi o assassinato da jornalista investigativa Anna Politkovskaya, do jornal Novaya Gazeta, em 2006, atribuído ao estado russo.

Em 2021, a organização Repórteres Sem Fronteiras fez um protesto no dia do aniversário de Vladimir Putin para lembrar os 15 anos do crime. 

Para a professora, o “golpe final para a mídia independente da Rússia” foi a legislação aprovada no início deste ano, tornando ilegal distribuir “notícias falsas” sobre a guerra da Rússia na Ucrânia.

O que se assiste nos últimos seis meses é um pesadelo de jornais fechados, jornalistas exilados, processados e presos e um cerco implacável a fontes de informação confiáveis. 

Infelizmente, no espaço de uma geração, a Rússia viajou da censura do Estado para a liberdade de expressão e voltou ao mesmo local da partida”.